A participação de atletas norte-coreanos nos Jogos Olímpicos de Inverno, que começam, esta sexta-feira, em PyeongChang (Coreia do Sul), salva um evento que ameaçava passar despercebido. Mais importante, abre a porta do diálogo a dois países desavindos há mais de 70 anos

Dez meses antes dos Jogos Olímpicos de Seul, já lá vão quase 30 anos, um avião da Korean Air que descolara de Bagdade (Iraque) com destino à capital sul-coreana explodiu nos céus do Mar de Andamão, perto da costa oeste da Tailândia. A bordo do voo 858 seguiam 104 passageiros e 11 tripulantes, na sua esmagadora maioria cidadãos sul-coreanos. Naquele fatídico 29 de novembro de 1987, ninguém sobreviveu.
A explosão foi provocada por uma bomba deixada num compartimento de bagagem por um casal de espiões norte-coreanos, que fintou a morte desembarcando na escala em Abu Dabi, Emirados Árabes Unidos. Intercetados no Bahrain, ingeriram cianeto quando sentiram que a sua captura estava iminente. O homem morreu, a mulher sobreviveu. Numa conferência de imprensa, em janeiro de 1988 — forçada a confessar, tolhida pelos remorsos ou simplesmente dizendo a verdade —, a terrorista, Kim Hyon-hui, afirmou que aquele atentado tinha sido ordenado “pessoalmente e por escrito” por Kim Jong-il (pai do atual líder norte-coreano, Kim Jong-un), e que um dos objetivos era assustar os países que tencionavam participar nos Jogos Olímpicos de Seul.
Quinze anos depois, um outro grande evento desportivo organizado pela Coreia do Sul coincidiria com mais um episódio sangrento envolvendo as duas Coreias. Com o Mundial de Futebol a decorrer — coorganizado com o Japão —, quatro marinheiros sul-coreanos foram mortos durante uma intensa batalha naval, no Mar Amarelo, envolvendo embarcações do Norte e do Sul. (Não há informação sobre vítimas do lado norte-coreano.)
“Estes eventos desportivos atraem atenção mediática e política a nível internacional, o que confere à Coreia do Norte uma oportunidade para captar a atenção da comunidade internacional e demonstrar posições de força ou de diplomacia consentâneas com o seu interesse nacional”, explica ao Expresso Rui Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei (Japão). “A intenção da Coreia do Norte não é necessariamente minar eventos desportivos, apenas reafirmar o seu interesse nacional. No caso do Mundial de Futebol de 2002, essa ligação não pôde ser totalmente comprovada.”

Edição após edição, os Jogos Olímpicos, em especial, vêm sendo uma espécie de barómetro de uma relação conflituosa que dura desde o fim da Segunda Guerra Mundial — agravada por uma guerra (1950-1953) que terminou com a assinatura de um armistício, mas nunca com um tratado de paz. Nos Jogos de Inverno que começam, esta sexta-feira, na cidade sul-coreana de PyeongChang, é inequívoca a vontade bilateral numa trégua. Após meses de provocações verbais belicistas entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte — que levaram Donald Trump a prometer, nas Nações Unidas, a “destruição total da Coreia do Norte” e Pyongyang a ameaçar os EUA com “um mar de fogo inimaginável” —, a Coreia do Norte substituiu a retórica do confronto pela do diálogo e anunciou a sua participação nos Jogos de PyeongChang.
Haverá em competição 10 atletas norte-coreanos, mais 12 hoquistas que integrarão a equipa conjunta feminina de Hóquei no Gelo, que participará sob bandeira da Coreia Unificada — um facto inédito na História dos Jogos Olímpicos e do conflito coreano.

Igualmente sem precedentes, na delegação norte-coreana irá um membro da família Kim, que governa o país desde 1948 ao estilo de uma república dinástica. Kim Yo-jong, 28 anos, a irmã mais nova do líder norte-coreano e sua discreta assessora, será o primeiro membro da família a atravessar o paralelo 38, a fortificada fronteira entre as duas Coreias.
“A presença da irmã de Kim Jong-un confere uma importância acrescida à delegação norte-coreana”, refere Rui Saraiva. “E permitirá, mais facilmente, a abertura de canais diplomáticos formais e informais entre a Coreia do Norte e os líderes de várias nações que vão estar presentes no evento.”
Para a “festa” coreana que se projeta, na quarta-feira atravessou a fronteira um dos maiores grupos de norte-coreanos em tempos de paz. Nele vieram “cheerleaders”, desportistas, jornalistas, representantes do comité olímpico e o ministro dos Desportos, Kim Il-guk, num total de 280 pessoas. Na véspera, chegou de “ferry” uma orquestra de 137 músicos, que vai atuar durante os Jogos.
Da delegação norte-coreana, faz parte um grupo de “cheerleaders”, com a missão de animar as bancadas em PyeongChang e mostrar a beleza, juventude e felicidade de quem vive a norte
No plano diplomático ou militar, a Coreia do Norte tem sempre uma mesma linha condutora — “a sobrevivência do regime”, diz o docente da Universidade de Hosei. “A política externa norte-coreana guia-se por considerações pragmáticas ou realistas. Aliás o pragmatismo é, no meu entender, um ‘princípio’ comum dos países da Ásia Oriental. Nos próximos anos, o Ocidente vai surpreender-se mais com o que une estes países do que com aquilo que os separa.”
Mas há algo de que Pyongyang não abdica — “o princípio da não intervenção nos seus assuntos internos por parte de outros Estados”, acrescenta o professor português. “Enquanto os outros atores relevantes num possível processo de diálogo não aceitarem esta condição, esse processo estará condenado ao fracasso.”

A curto prazo, porém, a relação intracoreana está destinada ao sucesso. “Antes da decisão da participação da Coreia do Norte, a curiosidade dos sul-coreanos em relação ao evento era muito baixa”, diz ao Expresso Lee Dae-teak, professor de Convergência de Engenharia Desportiva, na Universidade Kookmin, Seul. “Com essa decisão, os Jogos podem ser verdadeiramente designados de ‘Olimpíadas da Paz’.”
Para que assim seja, a Coreia do Sul está disposta a fazer cedências… Em PyeongChang, será — conscientemente — ignorada uma lei de 1948 que visa “restringir atos contra o Estado que ponham em perigo a segurança nacional”, tais como… acenar com bandeiras norte-coreanas. Em contexto de desanuviamento, como o que se pretende em PyeongChang, tudo é relativo. Nos sítios de competição, a bandeira norte-coreana ondulará ao lado das dos restantes 92 países participantes — Portugal compete com Ke Quyen Lam, em Esqui Cross Country, e Arthur Hanse, em Esqui Alpino —, içada não por militares sul-coreanos, mas por voluntários. E em caso de vitória, subirá no mastro com glória, ao som do hino nacional.
Em PyeongChang, as duas Coreias competirão separadas, mas, sexta-feira, na cerimónia de abertura, desfilarão juntas, atrás da bandeira da Coreia Unificada — como já aconteceu nos Jogos de Sydney (2000) e de Atenas (2004). O desporto a dar o exemplo à política.
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 8 de fevereiro de 2018. Pode ser consultado aqui