Odiados, discriminados e reprimidos, protagonizam o êxodo humano mais rápido e dramático desde o genocídio do Ruanda

Há um genocídio em curso no mundo e — por ignorância, indiferença ou desinteresse — não se vislumbra esforço para o travar. Manifesta-se há décadas, como água a ferver em lume brando. No centro dessa ebulição está o povo rohingya, a minoria muçulmana de Myanmar (antiga Birmânia), que, ano após ano, tem vindo a ser despojada de direitos, dignidade e perspetiva de sobrevivência.
Para as Nações Unidas e a comunidade internacional em geral, a perseguição aos rohingya atingiu contornos de “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de determinada região. Organizações internacionais no terreno vão mais longe, denunciando um processo de “genocídio” — a destruição completa de um grupo.
AS EXECUÇÕES, VIOLAÇÕES E EXPULSÃO DO POVO ROHINGYA SÃO UMA ESTRATÉGIA DE LONGO PRAZO DO ESTADO BIRMANÊS
“Uma campanha brutal de violência, violações em massa e a destruição parcial ou completa de mais de 350 aldeias forçaram 700 mil rohingya a procurar refúgio no Bangladesh desde 25 de agosto de 2017. Foi o êxodo humano mais rápido desde o genocídio do Ruanda”, diz ao Expresso, desde Rangum, a neozelandesa Alicia de la Cour Venning.
Esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, assenta convicções em visitas aos campos de refugiados e nos relatos de sobreviventes do terror orquestrado por forças do Estado birmanês, com a cumplicidade das autoridades de Arracão (estado costeiro também conhecido pelas designações inglesas Rakhine ou Arakan) — de onde têm fugido os rohingya —, monges budistas e ativistas da sociedade civil.
OS ROHINGYA VIVEM NUMA ESPÉCIE DE APARTHEID QUE NÃO LHES PERMITE ESTUDAR, TRABALHAR, CASAR OU VIAJAR
“Temos provas de que este genocídio foi planeado”, diz a investigadora da Iniciativa Internacional para os Crimes de Estado (ISCI, sigla inglesa). “As execuções, violações e a expulsão do povo rohingya foram concebidas como estratégia de longo prazo por parte do Estado birmanês.” Um longo “processo de engenharia social”, por fases, que começou com a estigmatização da comunidade e continuou com o seu enfraquecimento gradual e sistemático visando a sua extinção total.
ESTIGMATIZAÇÃO
Os rohingya enfrentam perseguições há gerações, mas o seu processo de desumanização escalou irreversivelmente a partir de 1982, quando uma nova Lei da Cidadania os excluiu da lista de 135 minorias oficialmente reconhecidas. Passaram a ser “os outros”, bodes expiatórios úteis em contextos de crise. Essa segregação confirmou-se aquando da realização do último censo, em 2014, em que apenas puderam participar os rohingya registados como “bengalis” — entre os birmaneses, são vistos como imigrantes ilegais.
Em Myanmar, “rohingya” é palavra proibida. “Julgo que decorre de rohang, que é a palavra bengali para Arracão”, explica ao Expresso Justin Watkins, professor de língua birmanesa na Universidade de Londres. “Quererá dizer ‘povo do Arracão’, que é uma das razões por que não são aceites pelo Governo.”
Na segunda-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou-se “chocado” após o general U Min Aung Hlaing, chefe de Estado-maior do Exército birmanês, se ter referido aos rohingya como “bengalis”, sem “características ou cultura em comum com as etnias de Myanmar”. Em 2009, as palavras de outro general teriam merecido condenação mais vigorosa… após comparar a “pele clara e macia” do povo de Myanmar e a tez “castanha escura” dos rohingya, Ye Myint Aung, em missão no consulado birmanês de Hong Kong, descreveu-os como “ogres horríveis”.
ASSÉDIO
Em paralelo com a privação de direitos, os rohingya têm sido alvo de campanhas de intimidação que levam, com frequência, ao acendimento do rastilho da violência. À semelhança das fases iniciais do genocídio no Ruanda, quando se espalhou na rádio o medo e se alimentou o ódio contra os tutsis, chamados “baratas”, “serpentes” e “diabos que comem os órgãos vitais dos hutus”, esse tipo de propaganda teve eco em Myanmar, com órgãos de informação estatais a retratarem os muçulmanos como “pulgas humanas detestáveis”.
Também proeminentes monges budistas contribuíram para essa demonização. “Os muçulmanos são como a carpa africana: reproduzem-se depressa e são muito violentos, comem os da própria espécie”, defendeu Ashin Wirathu. Em 2013 foi capa da revista “Time” com o título: “O rosto do terror budista”.
Do assédio físico e psicológico às políticas públicas discriminatórias, os rohingya foram acumulando frustração e desespero. O surto mais recente de violência rebentou a 25 de agosto de 2017, depois de rohingya armados terem atacado postos da polícia, matando 12 agentes. A retaliação fez-se sentir ao estilo de uma punição coletiva: aldeias inteiras foram queimadas e quem tentou pôr-se a salvo foi alvejado. Em serviço nos campos do Bangladesh, os Médicos Sem Fronteiras denunciaram, em outubro, que metade das violações ocorridas durante a fuga dos rohingya envolvia menores.
ISOLAMENTO
O pesadelo dos rohingya começa, desde logo, na região onde vivem. Encurralado entre o golfo de Bengala e a cadeia montanhosa de Arakan Yoma, o Arracão é dos estados mais pobres de Myanmar. Para os seus 3,2 milhões de habitantes — 2,1 milhões de budistas e mais de um milhão de muçulmanos —, ir à escola ou ao médico é mais difícil do que no resto do país.
Excluídos da sociedade e alvo de violência organizada, os rohingya foram sendo encurralados em “áreas de segurança”, que mais não são do que campos de detenção, “uma espécie de regime de apartheid que não lhes permite estudar, trabalhar, casar, viajar ou professar a sua religião”, explica ao Expresso Daniela Nascimento, professora de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Ali vivem dependentes da ajuda do Programa Alimentar Mundial e dos Médicos Sem Fronteiras.
De tempos a tempos a violência empurra-os na direção da fronteira. Em janeiro de 2017 foi conhecido um plano polémico do Governo do Bangladesh para recolocar dezenas de milhares de rohingya na ilha de Thengar Char, no golfo de Bengala. É que a ilha é inabitável: remota, vulnerável a inundações e um paraíso para piratas.
ENFRAQUECIMENTO
Acantonados em guetos e impedidos de circular livremente, os rohigya vivem em situação de grande fragilidade: sobrelotação, subnutrição, epidemias, falta de cuidados de saúde, violência, tortura e assassínios esporádicos. Fugindo da perseguição e da miséria, em 2015, milhares lançaram-se ao mar de Andamão em caixões flutuantes”, como a ONU designou os barcos. Andaram semanas à deriva, disputando comida e bebendo urina, sem que nenhum país abrisse fronteiras para os acolher. Muitos morreram afogados ou famintos, outros acabaram nas mãos de traficantes.
EXTERMÍNIO
Corresponde à matança final. A ela escaparam, por agora, os rohingya que conseguiram chegar ao Bangladesh mas alimentam o sonho de regressarem à terra que consideram sua. A 23 de novembro passado, os governos do Bangladesh e de Myanmar assinaram um acordo de repatriamento para ser concretizado em dois anos. “A não ser que haja uma mudança real das condições de acolhimento e integração no país, creio que se manterão elevadas as probabilidades de continuação das políticas de perseguição, exclusão e segregação dos rohingya”, diz Nascimento. Com a agravante de que, como na Alemanha nazi ou no Ruanda, a população birmanesa está “virada” contra os rohingya e pouco recetiva a tê-los de volta. Restará às autoridades procurar uma “solução final”.
REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA
A denúncia foi feita este mês pela Amnistia Internacional, que a comprovou com imagens de satélite: no norte do Arracão, onde existiam aldeias rohingya, há agora terrenos arrasados por bulldozers e edifícios em construção. “O Governo está a tentar redesenhar a paisagem social da região, apropriando-se de terras ‘abandonadas’ pelos rohingya, gado e propriedades, estabelecendo novas zonas económicas e destruindo as casas que restam, estruturas religiosas e até vegetação, tornando a paisagem irreconhecível, para impedir o regresso dos rohingya às suas terras de origem”, conclui Venning. “No lugar onde viveu uma próspera comunidade rohingya o Estado está a criar novas infraestruturas militares, residenciais e económicas e a alterar a demografia, transferindo populações budistas do centro para o norte.” Eliminando a memória de como os rohingya um dia ali viveram.
QUANDO A DEMOCRACIA TRAI A OBRIGAÇÃO MORAL
Reconhecer o genocídio obriga a comunidade internacional a intervir. Mas ninguém parece disposto a perturbar a democratização em curso
A “questão dos rohingya” destruiu a reputação de uma Nobel da Paz, silenciou um Papa conhecido por “colocar o dedo na ferida” e expôs o medo da comunidade internacional em relação à palavra genocídio. “O crime de genocídio implica responsabilidades de ação muito específicas por parte dos Estados signatários da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, e do próprio Tribunal Penal Internacional, que, na maioria dos casos, aqueles não estão dispostos a assumir”, defende Daniela Nascimento, professora de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra.
Reconhecido um processo de genocídio, os Estados ficariam legal e moralmente obrigados a intervir. A docente recorda que já em 2003 se multiplicaram alertas de genocídio em relação às populações não-árabes da região sudanesa do Darfur e “também nada aconteceu”.
Há, contudo, uma segunda e forte razão que justifica a inação internacional em relação ao drama dos rohingya: o processo de democratização em curso num país que, entre 1962 e 2011, foi governado por uma junta militar. “O argumento de segurança usado pelo Governo birmanês [que nega qualquer envolvimento na repressão aos rohingya e justifica alguma perseguição com a necessidade de responder a “ataques terroristas”] é uma razão muito forte num sistema internacional pautado pela agenda securitária dos Estados, que acabam por se rever nesse argumento, e por parte de um Estado soberano que se encontra num processo de transição política para a democracia, apoiado internacionalmente há várias décadas”, refere a especialista em questões humanitárias e de direitos humanos.
Em outubro de 2016, ainda com Barack Obama na Casa Branca, os Estados Unidos levantaram sanções económicas impostas a Myanmar em 1997, em virtude dos avanços registados ao nível da “promoção da democracia”. Os generais tinham entregue o poder aos civis e o partido de Aung San Suu Kyi, a líder da oposição que passara 15 anos em prisão domiciliária, e com isso ganhara o reconhecimento internacional como lutadora contra a opressão na Birmânia, tinha arrebatado as eleições parlamentares em 2015. O decreto executivo de Obama data de 7 de outubro; dois dias depois, no noroeste de Arracão, começou mais uma vaga de repressão contra os rohingya que provocou cerca de 1000 mortos — e não reverteu a posição norte-americana.
“Tem havido alguma condenação internacional relativamente à ação do Governo birmanês, algumas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e do Conselho de Direitos Humanos apelando ao fim da violência”, recorda Daniela Nascimento. “Mas a aplicação de medidas ou sanções mais ‘robustas’ tem sido claramente evitada.”
Novo Presidente, a mesma líder
Na quarta-feira, o Parlamento birmanês elegeu um novo Presidente. Win Myint, apoiado pela Liga Nacional para a Democracia, de Aung San Suu Kyi, recebeu 403 votos das duas câmaras, enquanto Myint Swe, apoiado pelos militares, não foi além dos 211. À semelhança do titular anterior, Htin Kyaw, que se demitiu por razões de saúde, o novo Presidente é muito próximo de Suu Kyi, a líder “de facto” do país, constitucionalmente impedida de assumir a presidência por ter filhos com nacionalidade estrangeira (em concreto, britânica).
“Temos de olhar para este processo de democratização com cautela, na medida em que a ‘abertura’ a que se assistiu com a subida de Suu Kyi a Conselheira de Estado [cargo criado para contornar o impedimento legal] não foi acompanhada por uma abertura real no que diz respeito às estruturas de poder e de decisão, que estão ainda muito dependentes e sob controlo das autoridades militares”, alerta a docente de Coimbra.
“A própria Suu Kyi referira, em 2014, que a democratização no país não tinha sido atingida nem era irreversível, pelo que as várias dinâmicas políticas, sociais, económicas e até religiosas e étnicas são muito mais complexas do que parecem, criando desafios extraordinários num país que é, histórica e politicamente, instável”, prossegue Nascimento.
Talvez Suu Kyi quisesse, implicitamente, justificar o seu silêncio em relação aos rohingya. Mas o mundo não lhe perdoa. A 9 de janeiro de 2016, o influente “The New York Times” alertava: “Em breve o mundo testemunhará algo notável: uma Nobel da Paz adorada a presidir a campos de concentração do século XXI”. Nascimento vai mais longe: “A atuação de Aung San Suu Kyi colocou em cima da mesa um cenário impensável: o de uma Nobel da Paz [1991] ser, um dia, indiciada e condenada no Tribunal Penal Internacional.”
(Fotos: Rohingyas acabados de chegar ao campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh, em novembro de 2017 OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)
Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de março de 2018 e republicado no “Expresso Online”, a 1 de abril de 2018. Pode ser consultado, parcialmente, aqui









