Radiografia de um genocídio

Odiados, discriminados e reprimidos, protagonizam o êxodo humano mais rápido e dramático desde o genocídio do Ruanda

Há um genocídio em curso no mundo e — por ignorância, indiferença ou desinteresse — não se vislumbra esforço para o travar. Manifesta-se há décadas, como água a ferver em lume brando. No centro dessa ebulição está o povo rohingya, a minoria muçulmana de Myanmar (antiga Birmânia), que, ano após ano, tem vindo a ser despojada de direitos, dignidade e perspetiva de sobrevivência.

Para as Nações Unidas e a comunidade internacional em geral, a perseguição aos rohingya atingiu contornos de “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de determinada região. Organizações internacionais no terreno vão mais longe, denunciando um processo de “genocídio” — a destruição completa de um grupo.

AS EXECUÇÕES, VIOLAÇÕES E EXPULSÃO DO POVO ROHINGYA SÃO UMA ESTRATÉGIA DE LONGO PRAZO DO ESTADO BIRMANÊS

“Uma campanha brutal de violência, violações em massa e a destruição parcial ou completa de mais de 350 aldeias forçaram 700 mil rohingya a procurar refúgio no Bangladesh desde 25 de agosto de 2017. Foi o êxodo humano mais rápido desde o genocídio do Ruanda”, diz ao Expresso, desde Rangum, a neozelandesa Alicia de la Cour Venning.

Esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, assenta convicções em visitas aos campos de refugiados e nos relatos de sobreviventes do terror orquestrado por forças do Estado birmanês, com a cumplicidade das autoridades de Arracão (estado costeiro também conhecido pelas designações inglesas Rakhine ou Arakan) — de onde têm fugido os rohingya —, monges budistas e ativistas da sociedade civil.

OS ROHINGYA VIVEM NUMA ESPÉCIE DE APARTHEID QUE NÃO LHES PERMITE ESTUDAR, TRABALHAR, CASAR OU VIAJAR

“Temos provas de que este genocídio foi planeado”, diz a investigadora da Iniciativa Internacional para os Crimes de Estado (ISCI, sigla inglesa). “As execuções, violações e a expulsão do povo rohingya foram concebidas como estratégia de longo prazo por parte do Estado birmanês.” Um longo “processo de engenharia social”, por fases, que começou com a estigmatização da comunidade e continuou com o seu enfraquecimento gradual e sistemático visando a sua extinção total.

ESTIGMATIZAÇÃO

Os rohingya enfrentam perseguições há gerações, mas o seu processo de desumanização escalou irreversivelmente a partir de 1982, quando uma nova Lei da Cidadania os excluiu da lista de 135 minorias oficialmente reconhecidas. Passaram a ser “os outros”, bodes expiatórios úteis em contextos de crise. Essa segregação confirmou-se aquando da realização do último censo, em 2014, em que apenas puderam participar os rohingya registados como “bengalis” — entre os birmaneses, são vistos como imigrantes ilegais.

Em Myanmar, “rohingya” é palavra proibida. “Julgo que decorre de rohang, que é a palavra bengali para Arracão”, explica ao Expresso Justin Watkins, professor de língua birmanesa na Universidade de Londres. “Quererá dizer ‘povo do Arracão’, que é uma das razões por que não são aceites pelo Governo.”

Na segunda-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou-se “chocado” após o general U Min Aung Hlaing, chefe de Estado-maior do Exército birmanês, se ter referido aos rohingya como “bengalis”, sem “características ou cultura em comum com as etnias de Myanmar”. Em 2009, as palavras de outro general teriam merecido condenação mais vigorosa… após comparar a “pele clara e macia” do povo de Myanmar e a tez “castanha escura” dos rohingya, Ye Myint Aung, em missão no consulado birmanês de Hong Kong, descreveu-os como “ogres horríveis”.

ASSÉDIO

Em paralelo com a privação de direitos, os rohingya têm sido alvo de campanhas de intimidação que levam, com frequência, ao acendimento do rastilho da violência. À semelhança das fases iniciais do genocídio no Ruanda, quando se espalhou na rádio o medo e se alimentou o ódio contra os tutsis, chamados “baratas”, “serpentes” e “diabos que comem os órgãos vitais dos hutus”, esse tipo de propaganda teve eco em Myanmar, com órgãos de informação estatais a retratarem os muçulmanos como “pulgas humanas detestáveis”.

Também proeminentes monges budistas contribuíram para essa demonização. “Os muçulmanos são como a carpa africana: reproduzem-se depressa e são muito violentos, comem os da própria espécie”, defendeu Ashin Wirathu. Em 2013 foi capa da revista “Time” com o título: “O rosto do terror budista”.

Do assédio físico e psicológico às políticas públicas discriminatórias, os rohingya foram acumulando frustração e desespero. O surto mais recente de violência rebentou a 25 de agosto de 2017, depois de rohingya armados terem atacado postos da polícia, matando 12 agentes. A retaliação fez-se sentir ao estilo de uma punição coletiva: aldeias inteiras foram queimadas e quem tentou pôr-se a salvo foi alvejado. Em serviço nos campos do Bangladesh, os Médicos Sem Fronteiras denunciaram, em outubro, que metade das violações ocorridas durante a fuga dos rohingya envolvia menores.

ISOLAMENTO

O pesadelo dos rohingya começa, desde logo, na região onde vivem. Encurralado entre o golfo de Bengala e a cadeia montanhosa de Arakan Yoma, o Arracão é dos estados mais pobres de Myanmar. Para os seus 3,2 milhões de habitantes — 2,1 milhões de budistas e mais de um milhão de muçulmanos —, ir à escola ou ao médico é mais difícil do que no resto do país.

Excluídos da sociedade e alvo de violência organizada, os rohingya foram sendo encurralados em “áreas de segurança”, que mais não são do que campos de detenção, “uma espécie de regime de apartheid que não lhes permite estudar, trabalhar, casar, viajar ou professar a sua religião”, explica ao Expresso Daniela Nascimento, professora de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Ali vivem dependentes da ajuda do Programa Alimentar Mundial e dos Médicos Sem Fronteiras.

De tempos a tempos a violência empurra-os na direção da fronteira. Em janeiro de 2017 foi conhecido um plano polémico do Governo do Bangladesh para recolocar dezenas de milhares de rohingya na ilha de Thengar Char, no golfo de Bengala. É que a ilha é inabitável: remota, vulnerável a inundações e um paraíso para piratas.

ENFRAQUECIMENTO

Acantonados em guetos e impedidos de circular livremente, os rohigya vivem em situação de grande fragilidade: sobrelotação, subnutrição, epidemias, falta de cuidados de saúde, violência, tortura e assassínios esporádicos. Fugindo da perseguição e da miséria, em 2015, milhares lançaram-se ao mar de Andamão em caixões flutuantes”, como a ONU designou os barcos. Andaram semanas à deriva, disputando comida e bebendo urina, sem que nenhum país abrisse fronteiras para os acolher. Muitos morreram afogados ou famintos, outros acabaram nas mãos de traficantes.

EXTERMÍNIO

Corresponde à matança final. A ela escaparam, por agora, os rohingya que conseguiram chegar ao Bangladesh mas alimentam o sonho de regressarem à terra que consideram sua. A 23 de novembro passado, os governos do Bangladesh e de Myanmar assinaram um acordo de repatriamento para ser concretizado em dois anos. “A não ser que haja uma mudança real das condições de acolhimento e integração no país, creio que se manterão elevadas as probabilidades de continuação das políticas de perseguição, exclusão e segregação dos rohingya”, diz Nascimento. Com a agravante de que, como na Alemanha nazi ou no Ruanda, a população birmanesa está “virada” contra os rohingya e pouco recetiva a tê-los de volta. Restará às autoridades procurar uma “solução final”.

REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA

A denúncia foi feita este mês pela Amnistia Internacional, que a comprovou com imagens de satélite: no norte do Arracão, onde existiam aldeias rohingya, há agora terrenos arrasados por bulldozers e edifícios em construção. “O Governo está a tentar redesenhar a paisagem social da região, apropriando-se de terras ‘abandonadas’ pelos rohingya, gado e propriedades, estabelecendo novas zonas económicas e destruindo as casas que restam, estruturas religiosas e até vegetação, tornando a paisagem irreconhecível, para impedir o regresso dos rohingya às suas terras de origem”, conclui Venning. “No lugar onde viveu uma próspera comunidade rohingya o Estado está a criar novas infraestruturas militares, residenciais e económicas e a alterar a demografia, transferindo populações budistas do centro para o norte.” Eliminando a memória de como os rohingya um dia ali viveram.

QUANDO A DEMOCRACIA TRAI A OBRIGAÇÃO MORAL

Reconhecer o genocídio obriga a comunidade internacional a intervir. Mas ninguém parece disposto a perturbar a democratização em curso

A “questão dos rohingya” destruiu a reputação de uma Nobel da Paz, silenciou um Papa conhecido por “colocar o dedo na ferida” e expôs o medo da comunidade internacional em relação à palavra genocídio. “O crime de genocídio implica responsabilidades de ação muito específicas por parte dos Estados signatários da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, e do próprio Tribunal Penal Internacional, que, na maioria dos casos, aqueles não estão dispostos a assumir”, defende Daniela Nascimento, professora de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra.

Reconhecido um processo de genocídio, os Estados ficariam legal e moralmente obrigados a intervir. A docente recorda que já em 2003 se multiplicaram alertas de genocídio em relação às populações não-árabes da região sudanesa do Darfur e “também nada aconteceu”.

Há, contudo, uma segunda e forte razão que justifica a inação internacional em relação ao drama dos rohingya: o processo de democratização em curso num país que, entre 1962 e 2011, foi governado por uma junta militar. “O argumento de segurança usado pelo Governo birmanês [que nega qualquer envolvimento na repressão aos rohingya e justifica alguma perseguição com a necessidade de responder a “ataques terroristas”] é uma razão muito forte num sistema internacional pautado pela agenda securitária dos Estados, que acabam por se rever nesse argumento, e por parte de um Estado soberano que se encontra num processo de transição política para a democracia, apoiado internacionalmente há várias décadas”, refere a especialista em questões humanitárias e de direitos humanos.

Em outubro de 2016, ainda com Barack Obama na Casa Branca, os Estados Unidos levantaram sanções económicas impostas a Myanmar em 1997, em virtude dos avanços registados ao nível da “promoção da democracia”. Os generais tinham entregue o poder aos civis e o partido de Aung San Suu Kyi, a líder da oposição que passara 15 anos em prisão domiciliária, e com isso ganhara o reconhecimento internacional como lutadora contra a opressão na Birmânia, tinha arrebatado as eleições parlamentares em 2015. O decreto executivo de Obama data de 7 de outubro; dois dias depois, no noroeste de Arracão, começou mais uma vaga de repressão contra os rohingya que provocou cerca de 1000 mortos — e não reverteu a posição norte-americana.

“Tem havido alguma condenação internacional relativamente à ação do Governo birmanês, algumas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e do Conselho de Direitos Humanos apelando ao fim da violência”, recorda Daniela Nascimento. “Mas a aplicação de medidas ou sanções mais ‘robustas’ tem sido claramente evitada.”

Novo Presidente, a mesma líder

Na quarta-feira, o Parlamento birmanês elegeu um novo Presidente. Win Myint, apoiado pela Liga Nacional para a Democracia, de Aung San Suu Kyi, recebeu 403 votos das duas câmaras, enquanto Myint Swe, apoiado pelos militares, não foi além dos 211. À semelhança do titular anterior, Htin Kyaw, que se demitiu por razões de saúde, o novo Presidente é muito próximo de Suu Kyi, a líder “de facto” do país, constitucionalmente impedida de assumir a presidência por ter filhos com nacionalidade estrangeira (em concreto, britânica).

“Temos de olhar para este processo de democratização com cautela, na medida em que a ‘abertura’ a que se assistiu com a subida de Suu Kyi a Conselheira de Estado [cargo criado para contornar o impedimento legal] não foi acompanhada por uma abertura real no que diz respeito às estruturas de poder e de decisão, que estão ainda muito dependentes e sob controlo das autoridades militares”, alerta a docente de Coimbra.

“A própria Suu Kyi referira, em 2014, que a democratização no país não tinha sido atingida nem era irreversível, pelo que as várias dinâmicas políticas, sociais, económicas e até religiosas e étnicas são muito mais complexas do que parecem, criando desafios extraordinários num país que é, histórica e politicamente, instável”, prossegue Nascimento.

Talvez Suu Kyi quisesse, implicitamente, justificar o seu silêncio em relação aos rohingya. Mas o mundo não lhe perdoa. A 9 de janeiro de 2016, o influente “The New York Times” alertava: “Em breve o mundo testemunhará algo notável: uma Nobel da Paz adorada a presidir a campos de concentração do século XXI”. Nascimento vai mais longe: “A atuação de Aung San Suu Kyi colocou em cima da mesa um cenário impensável: o de uma Nobel da Paz [1991] ser, um dia, indiciada e condenada no Tribunal Penal Internacional.”

(Fotos: Rohingyas acabados de chegar ao campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh, em novembro de 2017 OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigo publicado no Expresso, a 30 de março de 2018 e republicado no “Expresso Online”, a 1 de abril de 2018. Pode ser consultado, parcialmente, aqui

O faraó que despiu a farda para mandar mais

Apesar de já se saber quem vai ganhar as presidenciais no Egito, vale a pena ver este vídeo. Fique a perceber como Abdel Fattah el-Sisi se tornou líder sem rival num país milenar que é um peso-pesado do Médio Oriente. 2:59 PARA EXPLICAR O MUNDO

Há um motivo de peso para estarmos atentos ao que se passa no Egito. Todos os anos milhares de portugueses fazem férias no país dos Faraós, e muitos outros sonham, um dia, ver de perto as Pirâmides de Gizé.

Hoje, muitas fotografias tiradas por todo o Egito correm o risco de captar o rosto de um só homem. Abdel Fattah al-Sisi é o Presidente do Egito e o vencedor anunciado das eleições que se avizinham.

Nasceu no Cairo há 63 anos, tem uma carreira militar de quase 40 e chefiava os serviços secretos militares quando, em 2011, os ventos da Primavera Árabe sopraram no Cairo, enchendo a Praça Tahrir de manifestações antirregime.

Hosni Mubarak, que governava há 30 anos, caiu ao fim de 18 dias de protestos.

A seguir à revolução, Sisi deu-se a conhecer aos egípcios na sombra da Irmandade Muçulmana, a força política então dominante. Foi nomeado ministro da Defesa e chefe de Estado-Maior das Forças Armadas por Mohamed Mursi, o Presidente islamita democraticamente eleito em 2012.

Face às derivas autoritárias de Mursi, Sisi liderou um golpe militar e substituiu-o no cargo. Depois despiu a farda de general e sujeitou-se à vontade popular, vencendo as presidenciais de forma esmagadora.

Entre 26 e 28 de março, 60 milhões de egípcios estão convocados para escolher o futuro Presidente. No boletim de voto, além de Sisi, haverá apenas mais um nome: Moussa Mostafa Moussa. Arquiteto de formação, formalizou a sua candidatura sete minutos antes do fim do prazo.

A sua presença dá um ar democrático a estas eleições, mas transforma-as numa farsa: é que o partido de Moussa tinha declarado apoio a Sisi e até ajudado na recolha de assinaturas.

A ausência de adversários dignos desse nome revela como, sete anos depois, as liberdades reclamadas pela Primavera Árabe são uma ilusão. Em janeiro e favereiro, vários potenciais candidatos foram saindo de cena. Um ex-chefe de Estado do Exército, um coronel do Exército, um advogado de Direitos Humanos, um ex-deputado.

Mas mesmo com um vencedor anunciado à partida, o Egito não perde interesse, dada a sua dimensão, localização e legado histórico.

É o mais populoso dos países árabes.

É o guardião do Canal do Suez, que encurta em mais de 10 dias a rota pelo Cabo da Boa Esperança.

É herdeiro de uma civilização milenar.

E acolhe a Universidade de Al-Azhar, grande centro do pensamento sunita, que lhe confere autoridade no mundo muçulmano.

E é um peso pesado da geopolítica do Médio Oriente.

Além da Jordânia, é o único país árabe que assinou um tratado de paz com Israel, com quem, de resto, coordena o bloqueio à Faixa de Gaza.

Foi um dos promotores do embargo ao Qatar.

Integra a coligação que bombardeia o Iémen.

E combate um dos maiores vespeiros mundiais do terrorismo, na Península do Sinai. A 29 de novembro de 2017, Sisi ordenou aos militares o uso de toda a força bruta para derrotar os terroristas e repor a segurança no Sinai dentro de três meses.

Bem a tempo das eleições…

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Vídeo publicado no Expresso Online, a 29 de março de 2018. Pode ser visto aqui

O pior erro de Trump… por agora

Observador atento — e preocupado — da atuação de Donald Trump na Casa Branca, o ex-Presidente Jimmy Carter diz que escolher John Bolton para conselheiro de Segurança Nacional foi imprudente

Sem papas na língua, o ex-Presidente norte-americano Jimmy Carter não hesita quando o assunto é Donald Trump. “Tenho-me preocupado com algumas das suas decisões. A sua última escolha para o cargo de conselheiro de Segurança Nacional foi muito imprudente. Julgo que [a escolha de] John Bolton foi o seu maior erro.”

As palavras de Carter constam de um excerto de uma entrevista concedida pelo ex-Presidente democrata à televisão CBS que será transmitida esta terça-feira. Carter vaticina igualmente que um eventual ataque contra a Coreia do Norte, como defende Bolton, “seria um desastre total”.

Ao contrário de Bolton — um “falcão” conservador que defende os benefícios da guerra preventiva —, Carter pautou o seu mandato como 39° Presidente dos Estados Unidos (1977-1981) como uma “pomba” pacifista. Em 1978, fez história ao assinar os Acordos de Camp David, que permitiram a normalização das relações diplomáticas entre Israel e o Egito.

Após um mandato muito marcado pelo fiasco da chamada “questão dos reféns” — 52 norte-americanos foram mantidos cativos durante 444 dias, na embaixada dos EUA em Teerão —, Carter falhou a reeleição (ainda com essa crise em curso), perdendo as eleições presidenciais de 1980 para o republicano Ronald Reagan.

Aos 93 anos, é um profuso escritor — acaba de publicar o seu 32º livro — e mantém-se ativo no Centro Carter, organização que fundou em 1982 e que trabalha em prol dos direitos humanos e da resolução de conflitos — dedicação que lhe valeu o Prémio Nobel da Paz, em 2002. Carter tem sido também uma voz incansável na defesa do reconhecimento do Estado palestiniano e denunciadora do sistema de “apartheid” praticado por Israel.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de março de 2018. Pode ser consultado aqui

“Mexeu com Marielle, atiçou o formigueiro”

Brasileiros e portugueses a uma só voz, em frente ao Consulado do Brasil no Porto. Mais do que uma manifestação de solidariedade para com Marielle Franco, a vereadora recentemente assassinada, foram apontadas soluções para o Brasil: “Não tem saída, só a educação salva”

“Alguém tem fita cola?” Terminada a manifestação “Marielle, Presente!”, em frente ao Consulado-Geral do Brasil, no Porto, houve quem sugerisse deixar os cartazes no local do protesto para que as mensagens chegassem a Brasília. Eram cerca das oito da noite de segunda-feira e a porta de entrada do edifício já estava encerrada. Colar os cartazes ao vidro parecia uma opção razoável, até se perceber que, por baixo da porta, havia uma ranhura suficiente larga para enfiar os cartazes. O chão da entrada do prédio rapidamente ficou coberto com algumas inquietações que assolam os brasileiros da Invicta: “Quem matou Marielle?” “Até quando vamos perguntar ‘até quando’?”

Para trás, ficava hora e meia de palavras de ordem, das quais a mais repetida foi “Marielle”, a vereadora do município do Rio de Janeiro assassinada a tiro, na semana passada, quando seguia de carro após um encontro com mulheres negras.

“Este caso diz-nos que, no Brasil atual, muito se faz mas nada se faz”, desabafa Sílvia Aline Ribeiro, uma baiana de 32 anos, a viver no Porto há dois anos e meio. “Ao invés de se investir em educação, e outras prioridades sociais, está-se a colocar o exército nas ruas para atacar os bandidos, só que eles não sabem quem é e quem não é bandido. Então, se você é negro ou pobre, você é bandido.”

Sílvia vai interrompendo a conversa para unir a sua voz às palavras de ordem que se vão sucedendo. “Há muitos assassínios, muita gente a morrer injustamente e a Marielle estava a investigar essas situações.”

Mulher, negra, lésbica e favelada

Marielle Franco, de 38 anos, investigava a violência policial nas ruas do Rio de Janeiro. A sua execução “revela o preconceito, o racismo e a dificuldade que o povo tem na luta pelos direitos humanos”, defende Pedro Valle, de 23 anos, estudante de Gestão de Património, no Porto.

“Há muita coisa que precisa de ser mudada, principalmente em relação à mulher: colocar a mulher no poder, aceitar a palavra da mulher, das pessoas negras, das pessoas faveladas. Essas pessoas precisam de ser ouvidas. Essa é a maioria dos brasileiros.”

Essa era também a realidade de Marielle – mulher, negra, lésbica, nascida na favela da Maré. A pulso, a ativista fintou um destino que parecia traçado à nascença, aproveitando as políticas de integração. Estudou Sociologia e Ciência Política e conquistou a confiança do povo para desempenhar um cargo público.

“A maioria dos brasileiros não é como os que vivem em Portugal, que têm opções e oportunidades”, continua Pedro. “Essa maioria não está a ser ouvida, precisa de ‘lugar de fala’”, conceito que surgiu, no debate público, como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados. “O povo negro precisa de ser ouvido, inclusive fora do Brasil.”

É o caso de Raísa Cabral, fisioterapeuta a trabalhar em Portugal há oito meses. “Nós somos a maioria da população”, recorda esta carioca de 26 anos. “Somos os que mais morrem de forma violenta, porque a maioria de nós é marginalizada, desde a escravatura. E isso não evoluiu ao ponto de, hoje, podermos ter uma vida equiparada à de uma pessoa branca. Somos a maioria que está nas favelas, a maioria que estão nas escolas públicas, a maioria que não tem acesso a educação, a saúde e aos direitos básicos…”

O frio que pontuou a chegada da noite na Invicta não desmobilizou as centenas de pessoas que se concentraram em frente ao n.º 20 da Avenida de França, próximo da Rotunda da Boavista. Nas mãos, muitas erguiam pequenos papéis onde, no verso do rosto de Marielle, estava transcrita a letra do “Canto das Três Raças”, de Clara Nunes, tema que fala do povo indígena, dos negros e da luta pela liberdade.

Ao ritmo de um grupo de percussão, que ia marcando o compasso, as mensagens foram ganhando criatividade – “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem mexeu com Marielle atiçou o formigueiro”.

“Os brasileiros não estão a viver num estado de direito, mas num estado de exceção”, continua Raísa. “Mais do que uma execução, foi deixado um recado: se a gente continuar a falar, eles vão continuar a matar quem se levantar contra o que está a acontecer no nosso governo. Eu acredito que o Brasil tem um governo golpista, o Presidente não foi eleito pelo povo. Isso eles deixaram bem claro.”

A intervenção militar decretada por Michel Temer, que fez o Rio regressar aos tempos da ditadura e colocar o exército nas ruas, até ao fim do ano, para controlar a violência, mereceu muitas vaias. “Não acabou, tem de acabar, eu quero o fim da polícia militar”, gritou-se.

“Eu vivi no Rio de Janeiro a minha vida inteira”, diz Pedro. “Nunca vi tal coisa, é um absurdo, para mim, imaginar que a cidade está a ser tomada por militares. Acredito que isso aconteça por interesses políticos e financeiros, já que antes de isso acontecer nenhuma medida foi tomada. Falaram que não tinha mais jeito, que era preciso ajuda federal, mas não tomaram nenhuma medida antes disso.”

A carioca Raísa concorda. “A priori, os militares nas ruas do Rio não é útil. Eles têm ordem para entrar nas comunidades e agem com violência. Essa não é a melhor medida. A principal medida devia ser a descriminalização das drogas, retirar esse poder aos traficantes.”

“O povo não é bobo!”

Paralelamente à violência gratuita da polícia, os manifestantes criticaram alguma cobertura noticiosa do caso – “Abaixo a Rede Globo! O povo não é bobo!” “A Globo filtra as notícias que são dadas ao povo”, explica Sílvia. “É do interesse só de uma classe branca, que está no poder. Na primeira notícia, a Globo disse que Marielle tinha sido executada. Depois corrigiu a notícia e disse que se tinha tratado de um assalto.”

Mais do que uma demonstração de solidariedade para com Marielle Franco, os brasileiros a viver no norte de Portugal procuraram apontar soluções para alguns dos problemas do Brasil.

“Deveria ser dada mais atenção à classe pobre”, defende Sílvia. “Não tratá-la como bandidos, mas tentar melhorar a desigualdade social para que os negros percebam que podem ter voz e podem ser mais ativos politicamente.”

“Não tem saída, só a educação salva”, concorda Raísa. “Seria positivo um maior investimento na educação, uma diminuição dessa militarização da polícia, uma consciencialização do povo em relação aos seus direitos e deveres.”

Todos esperam que a morte de Marielle não tenha sido em vão e que os protestos que ela inspira continuem e que deles frutifique uma maior consciência cívica. Como se lia num dos cartazes erguidos à porta do Consulado brasileiro: “Não sabiam que eras semente!”

(Foto: Marielle Franco, em agosto de 2016 MÍDIA NINJA / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso Online, a 20 de março de 2018. Pode ser consultado aqui

Cimeira sueca para Kim e Trump?

O chefe da diplomacia norte-coreana esteve, esta semana, na Suécia, país que representa os Estados Unidos em Pyongyang

A Coreia do Norte reagiu com silêncio ao “sim” de Donald Trump a um encontro com Kim Jong-un e logo surgiram receios de que o convite de Pyongyang pudesse não passar de uma cortina de fumo para afastar a tensão da Península Coreana. Esta semana, porém, foram dados passos que indiciam que esse encontro está a ganhar forma. Ontem, o ministro norte-coreano dos Negócios Estrangeiros, Ri Yong-ho, foi recebido, em Estocolmo, pelo primeiro-ministro sueco. “Não vamos divulgar sobre que falaram”, disse o porta-voz de Stefan Lofven à AFP.

Na ausência de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte, é a Suécia — um dos poucos países ocidentais com embaixada em Pyongyang — que presta apoio consular aos norte-americanos. O Ministério dos Negócios Estrangeiros sueco concretizou a natureza da visita de Ri Yong-ho e fez saber que as conversações visaram “as responsabilidades consulares da Suécia enquanto poder protetor dos Estados Unidos, Canadá e Austrália”.

A anteceder o encontro entre Trump e Kim (previsto para maio), trabalha-se no sentido de uma cimeira intercoreana, em abril, entre este último e Moon Jae-in. Será a terceira de sempre a reunir presidentes das Coreias. Ontem reuniu-se, pela primeira vez, o comité sul-coreano de preparação da cimeira. “A desnuclearização e a paz permanente na Península Coreana serão os pontos principais da agenda. A resolução desses assuntos levará a soluções para outros nas relações intercoreanas”, disse fonte da Casa Azul, sede da presidência sul-coreana, citada por “The Korea Times”.

As reuniões preparatórias entre grupos de trabalho do Norte e do Sul poderão arrancar na próxima semana. Será discutida também a possibilidade de criar uma linha direta entre Moon e Kim.

Outra vez o desporto

Em paralelo com o trabalho diplomático, o desporto continua a desbravar terreno à política. Em abril uma equipa sul-coreana de taekwondo (arte marcial coreana) irá à Coreia do Norte. Há que manter acesa a chama da paz na península, já que o diálogo é complexo, envolve vários atores e pode ruir ao mínimo desentendimento.

Se, a 9 de fevereiro, as duas Coreias desfilaram juntas — sob bandeira da Coreia unificada — na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, em PyeongChang, isso não se repetiu na abertura dos Paralímpicos, fez ontem uma semana. O Norte queria assinalar na bandeira as Dokdo (ilhas sul-coreanas disputadas pelo Japão) mas o Sul opôs-se. A discórdia ficou por ali, até porque, nesse dia, a grande notícia era o “sim” de Trump.

Artigo publicado no “Expresso”, a 17 de março de 2018