Pingue-pongue para garantir a sobrevivência

Kim Jong-un convidou, Donald Trump aceitou. Primeira reunião de sempre entre Presidentes dos dois países pode ser já em maio

A realizar-se e a correr bem, a cimeira entre Donald Trump e Kim Jong-un — anunciada ontem e agendada para maio — pode valer a ambos… o Prémio Nobel da Paz. Nunca antes foi possível um encontro entre os líderes dos Estados Unidos da América e da Coreia do Norte. Atirados pela Guerra Fria para lados opostos da barricada, os dois países nunca conseguiram libertar-se desse estigma, mesmo após a queda do Muro de Berlim.

Nos últimos meses, Washington e Pyongyang mais pareciam à beira de uma guerra do que de qualquer entendimento. Em setembro passado, na tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas, e após sucessivos testes nucleares norte-coreanos que puseram o mundo à beira de um ataque de nervos, Trump prometeu a “destruição total da Coreia do Norte”. Em resposta, foi ameaçado com “um mar de fogo inimaginável”.

Até que, em Pyongyang, a realpolitik falou mais alto e Kim deu um passo no sentido da aproximação a Trump, fazendo chegar a Washington, na quinta-feira, um convite para um encontro cara a cara. O mensageiro foi o chefe do Gabinete de Segurança Nacional da Coreia do Sul, que se reunira com Kim Jong-un três dias antes, em Pyongyang (ver texto ao lado).

Ontem, numa declaração à saída da Casa Branca, Chung Eui-yong foi o porta-voz do líder norte-coreano: “Comuniquei ao Presidente Trump que, no nosso encontro [na capital norte-coreana], Kim Jong-un disse-nos que está comprometido com a desnuclearização [a Coreia do Norte é uma das nove potências nucleares mundiais], que prometeu que a Coreia do Norte vai conter-se na realização de novos testes com mísseis e nucleares e que entende que os exercícios militares conjuntos regulares entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos têm de continuar. E sublinhou o seu anseio por encontrar-se com o Presidente Trump, assim que for possível”.

No Twitter, o líder norte-americano reafirmou e comentou os termos: “Kim Jong-un falou de desnuclearização com os representantes sul-coreanos, e não apenas de um congelamento [do programa nuclear]. Além disso, a Coreia do Norte não fará testes com mísseis durante este período. Grandes progressos estão a ser feitos mas as sanções continuarão [em vigor] até ser alcançado um acordo. Está a ser planeado um encontro!”

70 anos sob a dinastia Kim

“Se o diálogo sobre a desnuclearização significa a sobrevivência do regime, então isso passa a ser uma prioridade do interesse nacional norte-coreano”, explica ao Expresso Rui Faro Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei, em Tóquio (Japão). Por muito caduco que possa parecer aos olhos da comunidade internacional, o regime de Pyongyang age motivado pela sua própria sobrevivência e, nesse sentido, o programa nuclear funciona como seguro de vida.

Em setembro completam-se 70 anos desde que os Kim governam a Coreia do Norte de forma ininterrupta. No país fundado em 1948, o poder tem passado de pai para filho, ao estilo de uma república dinástica, de costas voltadas para a metade sul da península e no respeito pela ideologia juche (autossuficiência), introduzida por Kim Il-sung, o “pai fundador” do Estado e avô do atual líder. Morreu em 1994 e sucedeu-lhe o filho Kim Jong-il, falecido em 2011. Ambos foram declarados “líderes eternos”.

Em nome da perpetuação no poder, a última coisa que os Kim querem é guerra. Daí que a provocações militares geradoras de grande tensão internacional — como nos últimos meses, em que sucessivos testes nucleares envolvendo mísseis cada vez mais potentes elevaram a Coreia do Norte ao patamar dos países mais ameaçadores à face da Terra — se sucedam gestos de boa vontade, que voltam a colocar na agenda a reunificação com o sul e a aproximação aos Estados Unidos.

Americanos no quintal

Por ironia, se é com o Sul que o Norte continua tecnicamente em guerra — após o conflito de 1950-1953 as duas Coreias nunca assinaram um tratado de paz —, é com os Estados Unidos que o diálogo tem sido mais difícil. Mais de 300 mil soldados norte-americanos combateram na Coreia, em apoio do Sul. Hoje, mais de 20 mil continuam no território. “Para a Coreia do Norte, ter os EUA no seu ‘quintal’ tem sido uma ameaça constante desde a Guerra da Coreia. O ponto de partida do regime norte-coreano foi, primeiro, a descolonização e independência em relação ao Japão [conquistada após a derrota nipónica na II Guerra] e, depois, tendo em contas os ventos da Guerra Fria, a prossecução desses objetivos mediante um modelo comunista”, diz Rui Saraiva.

“Há um jogo na Ásia Oriental, que decorre dos tempos da colonização japonesa e da Segunda Guerra Mundial, com atores externos, como os Estados Unidos, a quererem estar presentes”, conclui o académico. “O jogo pela sobrevivência do regime norte-coreano é como uma partida de pingue-pongue”, em que num segundo se está à defesa e no seguinte ao ataque. “E, neste momento, Kim Jong-un está a marcar pontos.” Se Trump lhe apertar a mão, marcará pontos também.

UM ‘MILAGRE’ APÓS MESES EM QUE A GUERRA PARECIA CERTA

Pyongyang estendeu a passadeira a Seul e propôs a realização de uma cimeira intercoreana, em abril, na “aldeia da paz”

O Muro de Berlim caiu há quase 30 anos mas, no longínquo Oriente, uma cicatriz da Guerra Fria continua a rasgar a península coreana em dois. Dos dois lados dessa fronteira, dois países independentes desde 1948, unidos pelo coração, separados pela política. Na segunda-feira, quando recebeu uma missão sul-coreana enviada pelo Presidente Moon Jae-in — a mais importante a viajar de Seul a Pyongyang desde que Kim Jong-un subiu ao poder, em 2011 —, o líder norte-coreano disse ter vontade de “escrever uma nova história da reunificação nacional”.

A delegação — liderada por Chung Eui-yong, chefe do Gabinete de Segurança Nacional da Coreia do Sul — culminou um mês de gestos aparentemente simbólicos mas politicamente muito relevantes, que envolveram também os EUA (ver cronologia) e foram desbravando o caminho do relançamento do diálogo entre as Coreias.

Além do convite a Trump, que os sul-coreanos trouxeram de Pyongyang, o líder norte-coreano estendeu a passadeira ao homólogo sul-coreano, propondo-lhe uma cimeira intercoreana, a realizar-se em maio (mês também apontado para a reunião com o líder americano) em Panmunjom, a chamada “aldeia da paz”, onde foi assinado o armistício de 1953. Nascido nesse ano, Moon Jae-in é filho de um casal de refugiados do Norte e, desde sempre, acérrimo defensor do diálogo entre as duas Coreias, que tem sido escasso.

“O encontro de maio será registado como um marco histórico que realizou a paz na península coreana”, reagiu ontem o chefe de Estado sul-coreano. “Se o Presidente Trump e o Presidente Kim se encontrarem na sequência se uma cimeira intercoreana, a desnuclearização completa da península coreana será posta no caminho certo.” Moon acrescentou que a Coreia do Sul tentará aproveitar esta “oportunidade que surgiu como um milagre”.

A realizar-se, será apenas a terceira cimeira de sempre entre Seul e Pyongyang — as anteriores aconteceram em 2000 e 2007, na capital norte-coreana, mandava em Pyongyang Kim Jong-il, pai do atual líder.

Sorrisos à mesa do jantar

Numa das fotografias tiradas no decurso da visita sul-coreana de segunda-feira a Pyongyang — de onde, geralmente, só chegam imagens de um Kim Jong-un confiante após mais uma conquista bélica norte-coreana —, doze pessoas sorridentes estão sentadas à volta de uma mesa posta, como que preparados para um jantar de amigos. Um deles é Kim Jong-un, sentado entre Chung Eui-yong, chefe da delegação sul-coreana, e a mulher, Ri Sol-ju, que raramente aparece. “Foi também a primeira vez que Ri se encontrou com sul-coreanos desde 2005, quando viajou ao sul como membro de um grupo de majoretes para os Campeonatos Asiáticos de Atletismo, em Incheon”, recorda o jornal “The Korea Times”. Houve outra mulher no jantar: Kim Yo-jong, irmã mais nova e próxima do líder norte-coreano, que assistiu à cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos de Pyeongchang.

Segundo a imprensa coreana, o jantar durou quatro horas e doze minutos, sem necessidade de tradutores… “Imaginemos Portugal divido em dois, no pós-Segunda Guerra”, sugere Rui Faro Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade japonesa de Hosei. “Passados 75 anos, independentemente das diferenças ideológicas, os portugueses do norte e do sul serão sempre portugueses, sangue do nosso sangue, com história e fronteiras partilhadas, a mesma língua.” Da mesma forma, “a afinidade entre norte e sul-coreanos será sempre maior do que com representantes de países de outros continentes, culturas, línguas.” Não fossem os interesses — os geopolíticos e os da família Kim — e talvez o paralelo 38 já se tivesse apagado.

A ROTA DA PAZ

9 DE JANEIRO
Delegações das duas Coreias encontram-se na zona desmilitarizada junto à fronteira entre ambas. O Norte concorda em enviar atletas aos Jogos Olímpicos de Inverno organizados pelo Sul

9 DE FEVEREIRO
Kim Yo-jong, irmã mais nova do líder norte-coreano, assiste à abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, em PyeongChang (Coreia do Sul). Na tribuna, a poucos centímetros, está o vice-presidente dos EUA, Mike Pence. Num encontro com o Presidente sul-coreano, a enviada de Kim entrega-lhe uma carta do irmão propondo um encontro

25 DE FEVEREIRO
Ivanka Trump, filha do Presidente dos Estados Unidos, marca presença na cerimónia de encerramento dos Jogos de PyeongChang

5 DE MARÇO
Uma delegação sul-coreana, liderada pelo chefe de Gabinete de Segurança Nacional, viaja até Pyongyang para um encontro inédito com Kim Jong-un. De lá traz propostas de uma cimeira intercoreana e outra entre Trump e Kim

8 DE MARÇO
Trump recebe, das mãos dos sul-coreanos, o convite enviado por Kim, que aceita

Artigos publicados no Expresso, a 10 de março de 2018

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