Norte e Sul cumpriram. A palavra aos EUA…

Seul e Pyongyang querem assinar um tratado de paz e desnuclearizar a península. A cimeira entre Trump e Kim dirá se é sonho ou realidade

A cimeira de Panmunjom foi um passo importante no sentido da paz definitiva na península coreana, mas o ponto final no conflito que permanece em aberto desde 1953 não pode ser colocado sem a concordância dos Estados Unidos, signatários do Armistício, em representação das Nações Unidas. Daí que o histórico encontro, ontem, entre Moon Jae-in e Kim Jong-un tenha ficado aquém daquilo que ambos os líderes desejariam — o enterro do machado de guerra através da assinatura de um tratado de paz.

“Durante este ano em que se assinala o 65º aniversário do Armistício, Coreia do Sul e Coreia do Norte concordaram em procurar ativamente encontros a três, envolvendo as duas Coreias e os Estados Unidos, ou encontros a quatro, envolvendo as duas Coreias, os Estados Unidos e a China, com vista à declaração do fim da guerra e ao estabelecimento de uma paz permanente e sólida”, consagra a “Declaração de Panmunjom para a Paz, Prosperidade e Unificação na Península Coreana”, assinada por Kim e Moon.

Tal como o Presidente sul-coreano desejara há dias, a cimeira — a terceira de sempre, ao mais alto nível, entre Norte e Sul — é, acima de tudo, um trampolim para um desejado encontro entre Estados Unidos e Coreia do Norte — esse, sim, inédito —, o único fórum com autoridade política para ditar decisões sobre os grandes diferendos.

O maior deles é a desnuclearização da península. Sobre o assunto, a “Declaração de Panmunjom” — dirigida a “80 milhões de coreanos”, sem distinção de Norte e Sul — confirmou “o objetivo comum” de uma “completa desnuclearização” do território. A interpretação do que isso significa, em termos práticos, é uma frente da próxima batalha diplomática entre Washington e Pyongyang: os norte-americanos serão tentados a pensar que desnuclearizar a península é acabar com o arsenal nuclear norte-coreano, à semelhança do que aconteceu com a Líbia de Kadhafi. “Devíamos insistir que se o encontro se realizar deve ser similar às discussões que tivemos com a Líbia há 13 ou 14 anos: como arrumar o programa de armas nucleares deles e levá-lo para [o Laboratório Nacional de] Oak Ridge, no Tennessee”, defendeu recentemente John Bolton, conselheiro de Trump para a Segurança Nacional.

Sem data nem local, a cimeira Trump-Kim recebe de Panmunjom o melhor legado: a vontade comum do início de uma nova era

Já os norte-coreanos, que sentem há décadas a presença militar dos Estados Unidos na Coreia do Sul como uma ameaça direta, poderão exigir o regresso a casa dos cerca de 28 mil militares norte-americanos estacionados no Sul. Num comunicado surpresa, a 20 de abril, durante uma reunião do Partido dos Trabalhadores da Coreia, Kim Jong-un anunciou a suspensão dos testes nucleares e de mísseis balísticos intercontinentais e o desmantelamento das instalações usadas para os exercícios nucleares, em Punggye-ri, no norte do país. No Twitter, Donald Trump saudou a “muito boa notícia para a Coreia do Norte e para o mundo — um grande progresso! Aguardo a nossa cimeira”.

A CIA em Pyongyang

Com um fuso horário de 13 horas entre Washington D.C. e Seul, o staff da Casa Branca manteve-se acordado madrugada fora, reagindo como parte interessada às imagens que chegavam de Panmunjom e que faziam notícia em todo o mundo. Num comunicado, a Presidência desejou que as conversações progridam no sentido de “um futuro de paz e prosperidade em toda a península” e desejou “a continuação de discussões robustas na preparação do planeado encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un”.

Na sua conta oficial no Twitter, a Casa Branca aproveitou a confirmação, no Congresso, de Mike Pompeo como novo secretário de Estado para publicar duas fotos de um recente encontro, em Pyongyang, entre o então diretor da CIA e o líder da Coreia do Norte. Pompeo “fará um excelente trabalho ajudando o Presidente Trump a liderar os nossos esforços no sentido da desnuclearização da Península Coreana”, diz o post.

Sem data nem local anunciados, a cimeira Trump-Kim recebe de Panmunjom o melhor dos legados — sorrisos e uma vontade comum de iniciar uma nova era entre as Coreias. Mas o imprevisível Trump não tem o feitio do conciliador Moon. “Se quando eu lá estiver o encontro não for frutuoso”, já avisou o Presidente dos EUA, “levanto-me respeitosamente e abandono a sala”.

QUEM É MOON JAE-IN?

O encontro entre Moon Jae-in e Kim Jong-un foi, para o sul-coreano, muito mais do que uma questão de Estado — foi também um assunto do coração. Nascido a 24 de janeiro de 1953, a meio ano do fim da Guerra da Coreia, Moon Jae-in é filho de um casal oriundo do norte da península. Em fuga ao regime comunista de Kim Il-sung — avô do atual líder norte-coreano, que assumiu as rédeas do país em 1948 —, os pais deixaram Hungnam e fizeram-se ao mar durante três dias, no convés de um navio norte-americano repleto de refugiados. Desembarcaram na ilha de Geoje, no sul da península, onde passaram a viver e onde Moon Jae-in nasceu. Foi o primeiro de cinco filhos.

Naquela ilha, a família lutou para escapar à pobreza. Quando a mãe ia vender ovos, o filho ia amarrado às costas. Na sua autobiografia, lançada em 2011, Moon escreveu: “Quando a reunificação [coreana] pacífica chegar, a primeira coisa que quero fazer é pegar na minha idosa mãe e levá-la à sua terra natal.” “Moon Jae-in: O Destino” foi lançada em 2011, quando o autor ainda não tinha carreira política — fora apenas assessor do Presidente Roh Moo-hyun (2003-2008), de quem era amigo. Mas Moon já levava décadas de combate. Primeiro como líder estudantil, contra a ditadura militar, o que levaria a que fosse expulso da Universidade Kyung Hee, em Seul, onde estudava Direito, e fosse preso. E, posteriormente, na barra dos tribunais, com Moon a exercer advocacia na área dos direitos humanos e civis.

O suicídio de Roh, em 2009, afetado por um escândalo de corrupção que envolvia familiares do ex-Presidente — que Moon sentiu de forma particular —, foi o tiro de partida para se aventurar na política. Foi deputado entre 2012 e 2016 e líder do Partido Democrático (liberal). Aos poucos foi construindo a imagem de um político pragmático, que tocava os mais jovens e em quem se podia confiar. Perdeu as presidenciais da primeira vez que foi a votos, em 2012, para Park Geun-hye, a primeira mulher na Casa Azul, que seria destituída e condenada a 24 anos de prisão por corrupção. Cinco anos depois foi Moon Jae-in que o povo escolheu para virar essa página negra.

Na presidência, este católico, casado com a cantora Kim Jung-sook (que conheceu na universidade) e pai de um rapaz e de uma rapariga, sempre defendeu a aproximação aos norte-coreanos, mesmo quando de Pyongyang, em vez de palavras conciliatórias, só se ouviam ordens de lançamento de mísseis cada vez mais ameaçadores. “Não acho que seja desejável para a Coreia do Sul sentar-se no banco de trás e observar as discussões entre os Estados Unidos e a China e os diálogos entre a Coreia do Norte e os EUA”, defendeu numa entrevista ao jornal “The Washington Post” por alturas da sua eleição. Ontem, o lugar da frente foi seu, ao ser o anfitrião, pela primeira vez na História, de um líder da Coreia do Norte.

(Foto: Kim Jong-un e Moon Jae-in, a 27 de abril de 2018, em Panmunjom CASA AZUL (CHEONGWADAE) / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 28 de abril de 2018

Cenas de ficção no lugar mais tenso do mundo

Na última fronteira da Guerra Fria, soldados norte e sul-coreanos ficam frente a frente num único local: a Área de Segurança Conjunta, na aldeia de Panmunjom, que esta sexta-feira acolhe uma histórica cimeira entre as duas Coreias. Ora preparados para uma guerra que parece iminente, ora fotografados por turistas em busca de emoções fortes no “lugar mais tenso do mundo”, mais parecem atores num parque temático

Três soldados sul-coreanos vigiam a fronteira com a Coreia do Norte, na Área de Segurança Conjunta, em Panmunjom HENRIK ISHIHARA GLOBALJUGGLER / WIKIMEDIA COMMONS

A fronteira mais fortificada do mundo — junto à qual, esta sexta-feira, terá lugar uma cimeira histórica entre as duas Coreias — é cenário digno de um filme de Hollywood. A cerca de 50 quilómetros para norte de Seul, na Área de Segurança Conjunta, militares norte e sul-coreanos ficam cara a cara em encontros de rotina e vigiam-se de forma quase teatral, trocando olhares ferozes, seguindo movimentos com binóculos e registando a atividade inimiga com máquinas fotográficas.

“Muitas vezes, os soldados sul-coreanos fazem movimentos de Taekwondo, a arte marcial coreana”, explica ao Expresso Kim Seong-Kon, professor visitante da Universidade George Washington (EUA). “Esses gestos permitem-lhes melhores posições para desembainhar a arma mais rapidamente” e reagir com eficácia a tudo o que aconteça.

Entre as “armas psicológicas” a que os sul-coreanos recorrem para tentar fragilizar os do Norte constam também… óculos de sol. Há quem diga que os sul-coreanos usam-nos para esconder as emoções e evitar contacto visual com o inimigo. “Talvez haja outras razões”, diz o professor Kim. “Pode intimidar-se os inimigos e olhar para qualquer lado sem que os soldados norte-coreanos o percebam.”

Igualmente, a forma como os militares se posicionam na Área de Segurança Conjunta dá azo a interpretações várias. Muitas vezes, os sul-coreanos colocam-se à esquina dos edifícios e os norte-coreanos de costas para o Sul. Diz-se que os sul-coreanos preocupam-se especialmente com uma possível escalada da situação. Atentos e à esquina, podem antecipar qualquer confronto e ter cobertura atrás dos edifícios no caso de serem alvejados.

Quanto aos norte-coreanos, ao virarem as costas para Sul mostram lealdade ao Norte e revelam uma preocupação maior — as deserções de militares ou civis norte-coreanos. O último caso conhecido aconteceu a 13 de novembro de 2017, quando um militar norte-coreano lançou-se na direção do Sul — primeiro de jipe e depois a correr a pé —, foi ferido a tiro pelos compatriotas e acabou por ser resgatado pelos sul-coreanos.

De um lado e do outro, gigantescos altifalantes tentam desmoralizar os guardas fronteiriços e incentivar a deserções, debitando mensagens sobre a maravilha que é viver num e noutro lado. Os do Norte difundem música marcial, os do Sul respondem com K-Pop, o estilo sul-coreano mundialmente famoso mas proibido na Coreia do Norte.

“Há uns dez anos, levei o escritor norte-americano Robert Coover, que na altura vivia na Catalunha, à zona desmilitarizada”, conta o professor Kim. “A dada altura, ele disse: ‘Isto parece uma encenação de um espetáculo político’.” Como se os soldados fossem atores num parque temático.

A Área de Segurança Conjunta é o único troço da zona desmilitarizada (DMZ, sigla em inglês) onde não há arame farpado nem minas no solo. A DMZ é uma ampla “terra de ninguém”, de 248 quilómetros de comprimento por quatro de largura, fortificada com vedações, torres de vigia e campos minados, concebida para servir de tampão a grandes concentrações de tropas e armamento pesado.

Segundo o livro “The Two Koreas — A contemporary history”, de Don Oberdorfer e Robert Carlin (2014), “atrás das fortificações estão duas das maiores concentrações militares em todo o mundo — 1,1 milhões de norte-coreanos voltados para 660 mil sul-coreanos e 28 mil norte-americanos”. Coreia do Norte e Estados Unidos são potências nucleares.

Esse “buraco” na cerca que divide os dois países fica na aldeia de Panmunjom (hoje desabitada), onde foi assinado o Armistício que pôs fim a três anos de guerra entre Norte e Sul (1950-1953). É num dos seus edifícios — a Casa da Paz — que, esta sexta-feira, se encontrarão, cara a cara, o Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, e o líder norte-coreano, Kim Jong-un. Será a primeira vez que um líder norte-coreano atravessará o paralelo 38, a fronteira.

No chão da Área de Segurança Conjunta, uma linha em cimento assinala a fronteira política entre os dois países. Essa divisão tem na sua origem um episódio trágico, já lá vão mais de 40 anos. Na manhã de 18 de agosto de 1976, na borda oeste da Área de Segurança Conjunta, cinco trabalhadores sul-coreanos, protegidos por dez militares norte-americanos e sul-coreanos aproximaram-se de um álamo com o intuito de aparar os ramos que obstruíam a vista entre dois postos de vigia do Sul.

Militares norte-coreanos aproximaram-se e levantaram objeções. Um capitão americano, Arthur Bonifas, que estava a três dias de terminar missão na península coreana, ignorou o protesto, mesmo após os norte-coreanos chamarem reforços. Foi derrubado por um golpe de karaté e espancado até à morte por meia dúzia de norte-coreanos, tal como aconteceu ao tenente Mark Barrett. Foram as primeiras mortes na Área de Segurança Conjunta desde o seu estabelecimento, em 1953. Para evitar mais incidentes, as partes acordaram, então, a divisão do local por uma Linha de Demarcação Militar, que não pode ser ultrapassada.

Sobre a linha de cimento ergueram-se cinco edifícios que funcionam como salas de conferência. Pelos vidros das janelas, uns e outros observam e fotografam o que se passa no interior, especialmente em dias de visitas importantes.

Um dos edifícios sobre a linha de fronteira é a sala de Conferência da Comissão Militar de Armistício onde, pontualmente e ao sabor da conjuntura política, as partes se reúnem para discutir assuntos militares, políticos e logísticos. A mesa é atravessada pela Linha de Demarcação Militar.

Esta sala é de visita obrigatória para os muitos turistas que, vindos do Norte ou do Sul, acorrem a Panmunjom em busca de emoções fortes no “lugar mais tenso do mundo”. Na prática, no seu interior podem cruzar a fronteira, ainda que por pouco mais de um metro, andando apenas de um lado para o outro.

Aldeias para coreano ver

Ao longo dos anos, Panmunjom tem funcionado como um barómetro da relação entre Pyongyang e Seul. É lá que, pontualmente, se encontram emissários dos dois lados e é por lá também que têm cruzado a fronteira delegações oficiais, suprimentos de emergência (para responder a situações de fome ou catástrofes naturais, no Norte), prisioneiros entretanto libertados ou mediadores internacionais.

Nos termos do Armistício está proibida qualquer atividade civil dentro da zona desmilitarizada, exceto em duas pequenas localidades: do lado sul-coreano, Daeseong-dong, onde os moradores não pagam impostos, vivem sob rigoroso recolher obrigatório e saem para os arrozais com escolta armada; e, do lado norte-coreano, Kijongdong, construída nos anos 50 para aliciar desertores, com elegantes prédios de apartamentos, mas onde não vive vivalma. Os do Sul dizem tratar-se de uma “aldeia de propaganda”.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 26 de abril de 2018 e republicado no “Expresso Online”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui

Afeganistão, uma sepultura a céu aberto

Mais um domingo sangrento no Afeganistão revela uma ‘competição pelo terror’ entre grupos talibãs e os jiadistas do Daesh

Poucas horas após um atentado suicida ter devastado a capital do Afeganistão — esta segunda-feira de manhã as vítimas mortais subiram para 57 —, pelo menos 16 agentes das forças de segurança foram mortos no domingo à noite, em dois ataques talibãs, numa das províncias mais calmas do país, Badghis, no noroeste.

Nove soldados morreram na sequência de uma investida dos “estudantes” contra um posto de controlo, na cidade de Qala-e-Naw. Num outro ataque semelhante, sete polícias foram mortos na região de Qads.

Os mais recentes ataques visaram símbolos do poder de Cabul — um centro de recenseamento eleitoral (atacado pelo Daesh) e “checkpoints” das forças de segurança (alvejadas pelos talibãs). Revelam também uma “competição” pelo terror entre os dois grupos, num país massacrado por décadas de guerra.

Segundo a agência noticiosa afegã Khaama Press, no domingo à noite as forças armadas afegãs bombardearam túneis e esconderijos do Daesh, na província de Nangarhar (leste) — o principal bastião dos jiadistas no Afeganistão —, na fronteira com o Paquistão.

Derrotado na Síria e no Iraque, o Daesh parece ter encontrado no Afeganistão um porto seguro para realizar as suas atrocidades. Esta segunda-feira, vários órgãos de informação afegãos e internacionais dão conta da decapitação de três irmãos, este fim de semana, às mãos de militantes extremistas.

Viviam na área de Chaparhar, precisamente na província de Nangarhar, e todos estavam ligados à área da medicina: o mais velho, Nisar Tareliwal, de 27 anos, era médico numa clínica privada, o do meio, Nayeem, de 24, trabalhava para uma campanha de vacinação e o mais novo, Abdul Wahab, de 19, estudava medicina.

O pai dos três jovens tinha sido executado pelo Daesh, no ano passado. Os jiadistas acusaram-no — como aos três filhos — de ligações ao Governo e às instituições de segurança.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2018. Pode ser consultado aqui

Tiro de partida para o encontro Kim-Trump

A cimeira de Panmunjom vai desbravar terreno para a reunião EUA-Coreia do Norte. E talvez anunciar o fim da guerra na península

Sessenta e cinco anos depois, a Guerra da Coreia pode estar prestes a terminar — oficialmente. As armas calaram-se em 1953 e, na aldeia sul-coreana de Panmunjom, foi assinado um armistício, mas nunca as Coreias selaram a paz entre ambas com um tratado. “Com a possibilidade de uma cimeira entre Donald Trump [Presidente dos EUA] e Kim Jong-un [lí- der da Coreia do Norte], acredito que existam condições para, simbolicamente, se estabelecer o fim do conflito”, disse ao Expresso Rui Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei (Japão). “Esse gesto poderá desencadear novos entendimentos e ideias sobre como as Coreias poderão coexistir pacificamente.”

Na próxima sexta-feira, as lideranças das duas Coreias regressam à chamada “aldeia da trégua”. “O armistício que se arrasta há 65 anos deve acabar. Assim que o fim da guerra for declarado, devemos procurar assinar um tratado de paz”, defendeu, na quinta-feira, o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in. Nesse dia, foi criada uma “linha direta” entre o gabinete de Moon, no Sul, e a Comissão para os Assuntos de Estado, presidida por Kim, no Norte.

A cimeira de sexta-feira será apenas a terceira, ao mais alto nível, desde a divisão da península. A primeira realizou-se em 2000, entre Kim Jong-il, pai do atual líder norte-coreano, e Kim Dae-jung, que receberia o Nobel da Paz. A segunda ocorreu em 2007, entre Kim Jong-il e Roh Moo-hyun, um dos Presidentes sul-coreanos caídos em desgraça após deixarem a Casa Azul — terminou o mandato em 2008 e suicidou-se em 2009. Ambas se realizaram na capital norte-coreana, Pyongyang, o que faz com que Kim Jong-un esteja prestes a tornar-se o primeiro líder norte-coreano a atravessar o paralelo 38.

Sob o lema “Paz, um novo começo”, a cimeira em Panmunjom será “o pontapé de saída” de um jogo cuja segunda parte será “disputada” entre Coreia do Norte e EUA. “Temos de tentar que a cimeira intercoreana seja um bom começo, para que a cimeira entre Washington e Pyongyang tenha uma boa conclusão”, defendeu o chefe de Estado sul-coreano.

Virar costas, com respeito

Kim e Trump têm uma reunião apalavrada para fins de maio, inícios de junho. “Neste momento, discute-se o possível local da cimeira”, diz Rui Saraiva. “Falou-se de Pequim, que daria protagonismo à China, ou na zona desmilitarizada, que elevaria o papel da Coreia do Sul. Uma das opções favoritas dos americanos é uma embarcação em águas internacionais. Fala-se também no terreno neutro da Suíça, onde Kim Jong-un viveu e estudou. Trump vai querer um sítio que lhe dê o centro das atenções, mas Moon Jae-in e Xi Jinping [Presidente chinês] foram fundamentais em todo este processo.”

Esta semana, Trump confirmou contactos diretos “a um nível extremamente alto” entre Washington e Pyongyang. Foi noticiada uma visita à Coreia do Norte de Mike Pompeo — o diretor da CIA que aguarda confirmação como secretário de Estado — e um encontro com Kim Jong-un. “Não é algo impensável”, diz Rui Saraiva. “Em 2000, Madeleine Albright [secretária de Estado de Bill Clinton] visitou Pyongyang e encontrou-se com Kim Jong-il.”

Quando e onde quer que a cimeira aconteça, Trump já disse ao que vai. “Nunca estivemos numa posição como esta em relação àquele regime. Se vir que não vai ser um encontro frutuoso não vamos. Se durante o encontro não houver resultados abandonarei a reunião de forma respeitosa.”

(Foto: Donald Trump e Kim Jong-un, com os penteados trocados. Grafitis do artista australiano Lush Sux, nos pilares de uma ponte, em Viena BWAG / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 21 de abril de 2018

A Guernica da Palestina

Planeados para durar 45 dias, os protestos na Faixa de Gaza vão a meio. O número de mortos não esmorece um protestos que os palestinianos consideram justo e moral

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Na Faixa de Gaza, a Grande Marcha do Regresso vai sensivelmente a meio caminho. Iniciados a 30 de março e com fim previsto para 15 de maio, os protestos massivos junto à fronteira com Israel pelo direito de retorno dos refugiados palestinianos às terras de onde foram expulsos após a criação do Estado judeu cumpriram, esta sexta-feira, a sua 22º jornada. Pelo caminho já tombaram mortos 37 palestinianos, quatro deles nos protestos desta sexta-feira.

Uma das vítimas é Yaser Murtaja, um fotojornalista de 31 anos. Morreu há uma semana, atingido a tiro por um “sniper” israelita quando se preparava para continuar a disparar… fotografias. Na cabeça tinha um capacete protetor e no corpo um colete que o identificava com a palavra “press”. “Foi abatido a sangue frio apenas porque segurava uma câmara, com a qual transmitia imagens para o mundo”, diz ao Expresso Asad Abu Sharkh, de 65 anos, professor universitário na área de Linguísticas e porta-voz da Grande Marcha. “São as ordens que eles têm do chefe de Estado-Maior, Gadi Eizenkot: atirar a matar contra quem se aproximar da cerca. Matar o maior número possível de palestinianos para intimidar. Sentem-se apoiados pela política de ‘dois pesos’ dos países ocidentais e estão protegidos pelo veto dos Estados Unidos” nas Nações Unidas.

Nascido em Ashkelon (atual território de Israel), Asad é um dos milhões de palestinianos que sonham com o regresso à terra onde nasceram. Um tio seu foi o último presidente da Câmara da cidade, até 1948, ano da criação de Israel. “Esta Marcha é um grito para o mundo exterior. Um apelo à comunidade internacional para que aplique as resoluções adotadas na ONU em defesa dos refugiados palestinianos” — como a resolução 194, sobre o direito de regresso e de repatriamento.

“Não podemos esperar mais, sentimo-nos desumanizados, perseguidos. Israel está a fazer uma guerra genocida contra o povo da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Nega os nossos direitos e ignora as resoluções internacionais relativas à questão palestiniana. Intimida os palestinianos para forçá-los a abandonar as terras e traz judeus de todo o mundo para as ocupar. Isto é uma limpeza étnica.”

Asad Abu Sharkh, no uso da palavra, durante uma palestra sobre “formas de resistência popular”, numa das “tendas do regresso”, em Gaza HAIDAR EID

Os protestos em Gaza tornam-se notícia à sexta-feira — o “domingo” dos muçulmanos, dia em que estão mais disponíveis para ações de intervenção social, muitas vezes incentivados pela oração do meio-dia, nas mesquitas, a principal da semana. Mas a iniciativa “vive” durante toda a semana, especialmente no interior das tendas montadas próximo da fronteira.

Na quarta-feira, no interior de uma delas, Asad participou numa palestra intitulada “A Grande Marcha do Regresso e o Movimento BDS: Formas principais de resistência popular”. BDS significa “Boicote, Desinvestimento e Sanções” e alude a uma campanha internacional que visa isolar Israel a todos os níveis, sobretudo académico e cultural.

No dia seguinte, o movimento assinalaria uma vitória importante. Galardoada com o Prémio Genesis, que reconhece “pessoas extraordinárias que inspiram a próxima geração de judeus”, a atriz norte-americana e israelita Natalie Portman — nascida em Jerusalém, em 1981 — anunciou que não iria a Israel receber a distinção devido a “acontecimento recentes” no país. A cerimónia, marcada para junho, foi cancelada.

“Batalha” dos panfletos

Em antecipação a mais uma jornada forte de protestos, na quinta-feira, as Forças de Defesa de Israel (IDF) “bombardearam” Gaza com panfletos: “Residentes de Gaza: Vocês estão a participar em atos de violência. O Hamas usa-vos para os seus objetivos extremistas. As IDF estão preparadas para tudo”. A mensagem aconselhava os locais a não se aproximarem da cerca e a manterem-se “longe de terroristas que praticam atos de violência. As nossas forças de defesa farão tudo o que for necessário para travar qualquer ataque ou assalto”.

O Expresso perguntou a Asad Abu Sharkh se os manifestantes irão tentar derrubar a cerca. “Os palestinianos estão muito determinados em continuar com os protestos de forma pacífica, de forma pacífica”, repete, “sem violência”, realça, “usando meios e métodos legais nos termos do direito internacional e das resoluções da ONU”.

Os factos dizem que, desde o início da Grande Marcha, nenhum “rocket” foi disparado desde a Faixa de Gaza contra território israelita, como muitas vezes acontece em contextos de agitação.

Ao estilo de uma “guerra psicológica”, o Hamas divulgou panfletos em árabe e hebraico destinados aos israelitas: “Sionistas: Vocês não têm lugar na Palestina. Regressem ao lugar de onde vieram. Não respondam aos vossos líderes. Eles estão a enviar-vos para a morte”. A mensagem atravessou a fronteira em papagaios de papel.

Na quinta-feira, as chamadas “tendas do regresso” receberam ordem para avançar 50 metros no terreno, sentido da fronteira. A medida foi “uma mensagem de persistência por parte do nosso povo para o mundo de que estamos a movimentar-nos na direção dos nossos objetivos legítimos”, anunciou o comité organizador. As tendas estão agora entre 500 e 700 metros de distância de Israel.

Interior de uma “tenda do regresso”, montada próximo da fronteira, onde se assiste a uma conferencia sobre a questão palestiniana HAIDAR EID

Habitantes de um retângulo de território de 41 quilómetros de comprido por seis a doze de largura, cerca de dois milhões de pessoas vivem em Gaza ao estilo de “uma prisão a céu aberto”, diz Asad Abu Sharkh.

Se, no passado, Israel chegou a adotar uma política de assassinatos seletivos para “eliminar” alvos concretos — como o “sheikh” Ahmed Yassin, líder espiritual do Hamas, alvejado por um helicóptero da Força Aérea israelita na sua cadeira de rodas, em 2004 —, hoje a estratégia em Gaza passa por uma “punição coletiva”.

O bloqueio israelita e egípcio asfixia o território e condena a sua população ao desespero. O único posto de fronteira que permite a saída de pessoas de Gaza — Rafah, no sul, que dá para a Península do Sinai — tem estado quase sempre fechado: em 2016 abriu 42 dias e em 2017 apenas 36.

E, no domínio da política palestiniana, o interminável braço de ferro constante entre o Hamas (que controla a Faixa de Gaza) e a Fatah (a fação dominante na Autoridade Palestiniana) mina a tão desejada reconciliação nacional.

Nascido no campo de refugiados de Nusairat (centro da Faixa de Gaza), Haidar Eid cresceu sob ocupação israelita. A família é originária da aldeia de Zarnuqa, área de Ramla (centro de Israel), cidade com uma população predominante judia, mas onde ainda vive uma minoria de árabes. Na sua página no Facebook, Haidar tem como imagem principal a famosa pintura de Pablo Picasso que alude ao sofrimento humano em contexto de violência. Diz ao Expresso: “Gaza é a Guernica da Palestina”.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 20 de abril de 2018. Pode ser consultado aqui