Seul e Pyongyang querem assinar um tratado de paz e desnuclearizar a península. A cimeira entre Trump e Kim dirá se é sonho ou realidade
A cimeira de Panmunjom foi um passo importante no sentido da paz definitiva na península coreana, mas o ponto final no conflito que permanece em aberto desde 1953 não pode ser colocado sem a concordância dos Estados Unidos, signatários do Armistício, em representação das Nações Unidas. Daí que o histórico encontro, ontem, entre Moon Jae-in e Kim Jong-un tenha ficado aquém daquilo que ambos os líderes desejariam — o enterro do machado de guerra através da assinatura de um tratado de paz.
“Durante este ano em que se assinala o 65º aniversário do Armistício, Coreia do Sul e Coreia do Norte concordaram em procurar ativamente encontros a três, envolvendo as duas Coreias e os Estados Unidos, ou encontros a quatro, envolvendo as duas Coreias, os Estados Unidos e a China, com vista à declaração do fim da guerra e ao estabelecimento de uma paz permanente e sólida”, consagra a “Declaração de Panmunjom para a Paz, Prosperidade e Unificação na Península Coreana”, assinada por Kim e Moon.
Tal como o Presidente sul-coreano desejara há dias, a cimeira — a terceira de sempre, ao mais alto nível, entre Norte e Sul — é, acima de tudo, um trampolim para um desejado encontro entre Estados Unidos e Coreia do Norte — esse, sim, inédito —, o único fórum com autoridade política para ditar decisões sobre os grandes diferendos.
O maior deles é a desnuclearização da península. Sobre o assunto, a “Declaração de Panmunjom” — dirigida a “80 milhões de coreanos”, sem distinção de Norte e Sul — confirmou “o objetivo comum” de uma “completa desnuclearização” do território. A interpretação do que isso significa, em termos práticos, é uma frente da próxima batalha diplomática entre Washington e Pyongyang: os norte-americanos serão tentados a pensar que desnuclearizar a península é acabar com o arsenal nuclear norte-coreano, à semelhança do que aconteceu com a Líbia de Kadhafi. “Devíamos insistir que se o encontro se realizar deve ser similar às discussões que tivemos com a Líbia há 13 ou 14 anos: como arrumar o programa de armas nucleares deles e levá-lo para [o Laboratório Nacional de] Oak Ridge, no Tennessee”, defendeu recentemente John Bolton, conselheiro de Trump para a Segurança Nacional.
Sem data nem local, a cimeira Trump-Kim recebe de Panmunjom o melhor legado: a vontade comum do início de uma nova era
Já os norte-coreanos, que sentem há décadas a presença militar dos Estados Unidos na Coreia do Sul como uma ameaça direta, poderão exigir o regresso a casa dos cerca de 28 mil militares norte-americanos estacionados no Sul. Num comunicado surpresa, a 20 de abril, durante uma reunião do Partido dos Trabalhadores da Coreia, Kim Jong-un anunciou a suspensão dos testes nucleares e de mísseis balísticos intercontinentais e o desmantelamento das instalações usadas para os exercícios nucleares, em Punggye-ri, no norte do país. No Twitter, Donald Trump saudou a “muito boa notícia para a Coreia do Norte e para o mundo — um grande progresso! Aguardo a nossa cimeira”.
A CIA em Pyongyang
Com um fuso horário de 13 horas entre Washington D.C. e Seul, o staff da Casa Branca manteve-se acordado madrugada fora, reagindo como parte interessada às imagens que chegavam de Panmunjom e que faziam notícia em todo o mundo. Num comunicado, a Presidência desejou que as conversações progridam no sentido de “um futuro de paz e prosperidade em toda a península” e desejou “a continuação de discussões robustas na preparação do planeado encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un”.
Na sua conta oficial no Twitter, a Casa Branca aproveitou a confirmação, no Congresso, de Mike Pompeo como novo secretário de Estado para publicar duas fotos de um recente encontro, em Pyongyang, entre o então diretor da CIA e o líder da Coreia do Norte. Pompeo “fará um excelente trabalho ajudando o Presidente Trump a liderar os nossos esforços no sentido da desnuclearização da Península Coreana”, diz o post.
Sem data nem local anunciados, a cimeira Trump-Kim recebe de Panmunjom o melhor dos legados — sorrisos e uma vontade comum de iniciar uma nova era entre as Coreias. Mas o imprevisível Trump não tem o feitio do conciliador Moon. “Se quando eu lá estiver o encontro não for frutuoso”, já avisou o Presidente dos EUA, “levanto-me respeitosamente e abandono a sala”.
QUEM É MOON JAE-IN?
O encontro entre Moon Jae-in e Kim Jong-un foi, para o sul-coreano, muito mais do que uma questão de Estado — foi também um assunto do coração. Nascido a 24 de janeiro de 1953, a meio ano do fim da Guerra da Coreia, Moon Jae-in é filho de um casal oriundo do norte da península. Em fuga ao regime comunista de Kim Il-sung — avô do atual líder norte-coreano, que assumiu as rédeas do país em 1948 —, os pais deixaram Hungnam e fizeram-se ao mar durante três dias, no convés de um navio norte-americano repleto de refugiados. Desembarcaram na ilha de Geoje, no sul da península, onde passaram a viver e onde Moon Jae-in nasceu. Foi o primeiro de cinco filhos.
Naquela ilha, a família lutou para escapar à pobreza. Quando a mãe ia vender ovos, o filho ia amarrado às costas. Na sua autobiografia, lançada em 2011, Moon escreveu: “Quando a reunificação [coreana] pacífica chegar, a primeira coisa que quero fazer é pegar na minha idosa mãe e levá-la à sua terra natal.” “Moon Jae-in: O Destino” foi lançada em 2011, quando o autor ainda não tinha carreira política — fora apenas assessor do Presidente Roh Moo-hyun (2003-2008), de quem era amigo. Mas Moon já levava décadas de combate. Primeiro como líder estudantil, contra a ditadura militar, o que levaria a que fosse expulso da Universidade Kyung Hee, em Seul, onde estudava Direito, e fosse preso. E, posteriormente, na barra dos tribunais, com Moon a exercer advocacia na área dos direitos humanos e civis.
O suicídio de Roh, em 2009, afetado por um escândalo de corrupção que envolvia familiares do ex-Presidente — que Moon sentiu de forma particular —, foi o tiro de partida para se aventurar na política. Foi deputado entre 2012 e 2016 e líder do Partido Democrático (liberal). Aos poucos foi construindo a imagem de um político pragmático, que tocava os mais jovens e em quem se podia confiar. Perdeu as presidenciais da primeira vez que foi a votos, em 2012, para Park Geun-hye, a primeira mulher na Casa Azul, que seria destituída e condenada a 24 anos de prisão por corrupção. Cinco anos depois foi Moon Jae-in que o povo escolheu para virar essa página negra.
Na presidência, este católico, casado com a cantora Kim Jung-sook (que conheceu na universidade) e pai de um rapaz e de uma rapariga, sempre defendeu a aproximação aos norte-coreanos, mesmo quando de Pyongyang, em vez de palavras conciliatórias, só se ouviam ordens de lançamento de mísseis cada vez mais ameaçadores. “Não acho que seja desejável para a Coreia do Sul sentar-se no banco de trás e observar as discussões entre os Estados Unidos e a China e os diálogos entre a Coreia do Norte e os EUA”, defendeu numa entrevista ao jornal “The Washington Post” por alturas da sua eleição. Ontem, o lugar da frente foi seu, ao ser o anfitrião, pela primeira vez na História, de um líder da Coreia do Norte.
(Foto: Kim Jong-un e Moon Jae-in, a 27 de abril de 2018, em Panmunjom CASA AZUL (CHEONGWADAE) / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de abril de 2018






