Bancos israelitas fazem negócio às custas da ocupação

Os bancos israelitas são cúmplices da ocupação da Palestina. Financiando projetos de construção, concedendo empréstimos ou simplesmente abrindo balcões — aos quais a população palestiniana não pode aceder — contribuem para perpetuar uma situação ilegal e discriminatória. Um relatório da Human Rights Watch, divulgado esta terça-feira, põe o dedo na ferida

Judeus usam o multibanco, fora de uma agência bancária no colonato de Modi’in Ilit, Cisjordânia HUMAN RIGHTS WATCH

O que de ilegal pode ter uma caixa multibanco num aglomerado populacional? Tudo, se o terminal pertencer a um banco israelita e a povoação em causa for um colonato judeu no território palestiniano da Cisjordânia. Ao abrigo do direito internacional, os colonatos são ilegais, pelo que o financiamento de projetos de construção, a concessão de empréstimos a autoridades locais ou a abertura de agências bancárias nos colonatos tornam os bancos israelitas cúmplices de crimes de guerra.

“Fazer negócios com ou nos colonatos contribui para graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário”, defende ao Expresso Sari Bashi, diretora do programa da Human Rights Watch (HRW) para Israel e a Palestina. “Infelizmente, as empresas não podem mitigar esses abusos, porque eles são inerentes aos colonatos”, que se desenvolvem em terras confiscadas ilegalmente e em condições de discriminação.

Esta terça-feira, a HRW divulgou o Relatório “Bankrolling abuse: Israeli banks in West Bank settlements” no qual defende que os maiores bancos de Israel fornecem serviços que “apoiam e ajudam a manter e a expandir os colonatos na Cisjordânia”.

“Os serviços prestados nos colonatos são intrinsecamente discriminatórios, porque os palestinianos da Cisjordânia não podem entrar nos colonatos, exceto se forem trabalhadores e tiverem licenças especiais”, explica Sari Bashi. “Por isso, os palestinianos não podem obter hipotecas para comprar casas nos colonatos — porque não podem aceder às terras dos colonatos. Não podem usar os multibancos nos colonatos — porque não podem lá entrar. Não desfrutam dos empréstimos dos bancos aos colonatos para a construção de piscinas e centros recreativos — porque o acesso a essas instalações está-lhes vedado.”

Os bancos israelitas defendem-se alegando estarem obrigados pela lei do Estado. A HRW contesta, dizendo que os bancos podiam cessar muitas das suas operações nos colonatos sem consequências legais adversas. “Contrariamente ao que dizem os bancos israelitas, eles não estão obrigados à maioria dos serviços que prestam nos colonatos”, diz Sari Bashi, que antes de trabalhar na HRW cofundou o grupo israelita de direitos humanos Gisha — Centro Legal para a Liberdade de Movimento. “Para cumprir as suas responsabilidades ao nível dos direitos humanos, os bancos deveriam cessar as suas atividades nos colonatos.”

Num relatório publicado em setembro, a HRW já tinha feito um levantamento das atividades bancárias nos colonatos. “É um mapeamento muito parcial, porque os sete grandes bancos contactados recusaram-se a divulgar publicamente o âmbito e a extensão das suas operações nos colonatos”, diz Sari Bashi. “Esse levantamento sugere que os serviços são prestados mediante oportunidades de negócios.”

Por exemplo, os bancos optam por estabelecer balcões em colonatos grandes, onde potencialmente têm mais clientes. Concorrem entre si na concessão de empréstimos às autoridades locais. E escolhem os projetos de construção que querem “acompanhar”. “Os bancos fazem negócios, mas na opinião da HRW essas decisões são contrárias às suas responsabilidades relativas aos direitos humanos” — que constam dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, adotados pelas Nações Unidas em 2011.

Segundo a HRW, quatro grandes bancos israelitas — Bank Hapoalim, Bank Leumi, Bank Discount e Mizrahi Tefahot — subscreveram o Pacto Global da ONU, uma iniciativa que encoraja as empresas a adotarem políticas sustentáveis e de responsabilidade social e que inclui um compromisso no sentido do respeito pelos direitos humanos proclamados internacionalmente. “Cada banco publica um relatório anual sobre responsabilidade social empresarial”, lê-se no documento da HRW. Porém, “nenhum deles, nas edições de 2016, as mais recentes, aborda especificamente atividades nos colonatos israelitas”.

O relatório divulgado esta terça-feira concretiza a cumplicidade entre bancos e ocupação. Na aldeia palestiniana de Azzun, atravessada pelo chamado “muro da Cisjordânia”, o Leumi é parceiro num projeto de construção de cinco novos edifícios no colonato de Alfei Menashe, que cresceu em terras que anteriormente pertenciam à aldeia.

Noutro caso, o Mizrahi Tefahot “acompanha” dois novos projetos residenciais, nos arredores da aldeia palestiniana de Mas-ha, num total de 251 casas. Basicamente, estes planos expandem o colonato de Elkana na direção de Mas-ha, restringindo o acesso dos palestinianos às terras e forçando a deslocalização de populações.

“A transferência, por parte do ocupante [Israel], de membros da sua população civil para o território ocupado [Cisjordânia] e a deportação ou transferência de membros da população do território são crimes de guerra”, conclui o relatório. “As atividades dos bancos financiam um passo perigoso” desse processo. Ao viabilizarem a expansão dos colonatos, facilitam a transferência ilegal de população.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 29 de maio de 2018 e republicado no “Expresso Diário” no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

Falsa partida. Trump e Kim tentarão outra vez?

Washington cancelou a cimeira. Mas não fechou a porta do diálogo

Durante cerca de dois meses e meio, o mundo viveu na crença de que seria possível, por fim, enterrar o machado de guerra na península da Coreia. A 8 de março, Donald Trump recebeu e aceitou um convite de Kim Jong-un para um encontro entre ambos — o primeiro de sempre entre Presidentes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte. Esta quinta-feira, o americano cancelou a cimeira prevista para 12 de junho, em Singapura.

“Infelizmente, com base na tremenda raiva e hostilidade aberta expressas na vossa mais recente declaração, sinto que não é apropriado ter essa reunião, neste momento”, lê-se na carta de Trump a Kim, na qual lhe agradece “o tempo, paciência e esforço despendido nas recentes negociações”. “Estou muito ansioso por conhecê-lo qualquer dia”, diz Trump. “Se mudarem de ideias em relação a esta importante cimeira, por favor, não hesitem em telefonar-me ou escrever-me.”

Apanhada de surpresa e talvez pelo tom, a Coreia do Norte abdicou de palavras duras na reação. Lamentou o cancelamento da cimeira e afirmou-se na “disposição de resolver questões através do diálogo, sempre e por qualquer meio”.

Bate-boca agressivo

Nas últimas semanas o processo de aproximação entre Pyongyang e Washington foi acumulando tropeções, fruto de “um bate-boca” cada vez menos diplomático entre as partes. O último episódio, que rebentou com a paciência de Trump, envolveu o seu vice-presidente. Na segunda-feira Mike Pence avisou a Coreia do Norte de que poderia acabar como a Líbia se não chegasse a acordo com os Estados Unidos sobre o seu programa nuclear. Pyongyang chamou-lhe “marioneta política, ignorante e estúpido”.

O enunciar de uma “solução líbia” para a Coreia do Norte teve o condão de gerar grande nervosismo no regime de Kim. É que o ditador líbio Muammar Kadhafi, que aceitou desmantelar o seu embrionário programa nuclear, foi, anos depois, derrubado e assassinado por forças apoiadas pelo Ocidente. Desde sempre que Pyongyang tem pesadelos com planos ocidentais no sentido de uma mudança de regime.

Em paralelo, a realização esta semana do exercício militar anual Max Thunder, envolvendo forças dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, foi sentida pelos norte-coreanos como “uma provocação”. Numa demonstração de boa-fé, a Coreia do Norte agendou para esta semana a destruição das instalações nucleares de Punggye-ri, para a qual convidou um grupo restrito de jornalistas americanos, britânicos, russos e chineses.

Um dos repórteres, Will Ripley, da CNN, disse que o anúncio de Trump surpreendera os norte-coreanos. “Íamos no comboio, após testemunharmos a destruição dos túneis em Punggye-ri, quando recebi um telefonema. Os norte-coreanos com quem estava ficaram chocados. Tinham acabado de destruir um recinto nuclear para demonstrarem o seu compromisso com a desnuclearização.”

Trump mostra os dentes

O fim da cimeira pôs a Coreia do Norte “às aranhas”. “Estamos a tentar descobrir qual é a intenção do Presidente Trump e o seu real significado”, reagiu Kim Eui-kyeom, porta-voz da Casa Azul, a sede da presidência. A decisão de Trump surgiu menos de 24 horas após ter recebido Moon Jae-in, que cumpriu a sua parte no processo ao encontrar-se com Kim a 27 de abril, em Panmunjom, e que deve sentir-se não mais do que um figurante à mercê de líderes inconstantes. Na carta ao norte-coreano, entre muitos salamaleques, Trump não baixou a guarda: “Vocês falam das vossas capacidades nucleares, mas as nossas são tão grandes e poderosas que eu rezo a Deus para que nunca sejam usadas.”

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

A caminho da Coreia do Norte “de olhos bem abertos”

Um grupo de jornalistas ocidentais e chineses viajou para a Coreia do Norte para cobrir o encerramento de um local onde se realizaram testes nucleares. Apesar de previamente convidados, os repórteres sul-coreanos ficaram em terra

Cerca de 20 jornalistas ocidentais e chineses embarcaram, esta terça-feira, rumo à Coreia do Norte para testemunharem o desmantelamento do sítio de Punggye-ri, onde foram realizados seis testes com armas nucleares. Para Pyongyang, o encerramento do local é uma demonstração de boa fé e seriedade em relação à desnuclearização da península coreana.

Entre os órgãos de informação que receberam visto da Coreia do Norte estão a agência Associated Press, as televisões americanas CNN e CBS, a agência russa TASS, a televisão Russia Today e a televisão chinesa CCTV.

“Vamos entrar com os olhos bem abertos e veremos o que acontece”, disse o repórter da CNN Will Ripley, no Aeroporto Internacional de Pequim, de onde partiu o voo da Air Koryo rumo à Coreia do Norte. “Esperamos que os norte-coreanos sejam transparentes como dizem que são e nos mostrem o local de testes nucleares e o seu desmantelamento.”

Previamente, os Estados Unidos apelaram a “um encerramento permanente e irreversível que possa ser inspecionado e totalmente contabilizado”, mas a comitiva não inclui técnicos que possam, com o seu conhecimento específico, atestar que o que efetivamente acontece é aquilo que Pyongyang apregoa.

A 12 de maio, a Coreia do Norte endereçou convites a jornalistas de cinco países — Coreia do Sul, China, Rússia, Estados Unidos e Reino Unido. Cinco Estados apenas, “devido ao espaço confinado do local”, informou, no Twitter, um dos repórteres bafejados com um visto.

https://twitter.com/willripleyCNN/status/995298752213565440?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E995298968077680640%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es2_&ref_url=https%3A%2F%2Fexpresso.pt%2Finternacional%2F2018-05-22-A-caminho-da-Coreia-do-Norte-de-olhos-bem-abertos

Chegados à hora de embarque, porém, os sul-coreanos ficaram em terra, sem autorização para subirem a bordo.

Em comunicado, o Ministério da Unificação da Coreia do Sul lamentou o revés na decisão de Pyongyang. “No entanto, o Governo [de Seul] presta a devida atenção ao facto de a promessa do Norte em desmantelar o local de testes nucleares de Punggyeri, uma primeira medida no sentido da desnuclearização, estar a decorrer como planeado, e espera que tal ação conduza à realização com sucesso da cimeira entre a Coreia do Norte e os EUA”.

Apesar da histórica cimeira entre as duas Coreias, a 27 de abril passado, a relação bilateral continua vulnerável. A realização, esta semana, dos exercícios militares anuais conjuntos entre os EUA e a Coreia do Sul foi sentida, em Pyongyang, como uma provocação. Os norte-coreanos endureceram o discurso e ameaçaram cancelar a anunciada cimeira entre os líderes dos EUA e da Coreia do Norte, Donald Trump e Kim Jong-un, a 12 de junho em Singapura.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

Kim ao ataque, Trump à defesa

O encontro entre os líderes da Coreia do Norte e dos EUA está tremido. Pyongyang está sem paciência para pressões e provocações

Os Estados Unidos não fazem mais ameaças vazias. Quando prometo uma coisa, cumpro-a.” No dia em que rasgou o acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão, a 8 de maio passado, Donald Trump invocou — como exemplo contrário ao extremar de posições entre EUA e Irão — o processo de aproximação à Coreia do Norte. “Tenho esperança de que se vá celebrar um acordo e, com a ajuda da China, da Coreia do Sul e do Japão, alcançaremos um futuro de grande prosperidade e segurança para todos.”

Ao devolver a relação com o Irão aos tempos de tensão e de desconfiança, o chefe de Estado norte-americano pode, inadvertidamente, ter gerado receios junto dos norte-coreanos. “Pessoalmente, acredito que foi dada uma mensagem muito problemática em termos de credibilidade e confiança nos Estados Unidos”, afirmou, quarta-feira, o sul-coreano Ban Ki-moon, ex-secretário-geral das Nações Unidas, numa entrevista à televisão norte-americana CNBC. “Que tipo de mensagem tirará a Coreia do Norte disto? Posso confiar no Presidente dos Estados Unidos? Esta poderá ser a primeira pergunta que se coloca ao líder da Coreia do Norte.”

Esta semana, os preparativos para a anunciada cimeira entre os líderes dos Estados Unidos e a Coreia do Norte — a 12 de junho, em Singapura — sofreram um revés, quando Pyongyang cancelou “indefinidamente” as conversações com os sul-coreanos visando a organização do encontro. A decisão apanhou de surpresa os meandros diplomáticos, já que, ainda na semana passada, Pyongyang dera mostras de boa vontade ao libertar três cidadãos norte-americanos detidos no país por “atividades hostis”. Estes foram recebidos por Trump numa base militar do Estado de Maryland.

Exercícios provocadores

Na origem deste endurecimento da posição norte-coreana está a realização de exercícios militares conjuntos entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos, iniciados segunda-feira e que se prevê que durem duas semanas. Habitual entre os dois aliados, por alturas da primavera, o exercício Max Thunder envolve cerca de 100 aeronaves de ambos os países, em manobras que o Pentágono qualifica de “defensivas”.

Também caíram em Pyongyang afirmações de altos responsáveis norte-americanos a pressionar a Coreia do Norte no sentido de uma “desnuclearização unilateral”. “Se os Estados Unidos estão a tentar pôr-nos a um canto para nos forçarem a abandonar o nuclear de forma unilateral, deixaremos de estar interessados nesse diálogo e não poderemos deixar de reconsiderar o nosso compromisso em relação à cimeira Coreia do Norte-Estados Unidos”, afirmou, quarta-feira, Kim Kye-gwan, o vice-ministro norte-coreano dos Negócios Estrangeiros.

“Já declarámos a nossa posição favorável à desnuclearização da península coreana”, acrescentou o governante. “Já deixámos claro, em várias ocasiões, que as condições prévias para a desnuclearização são o fim da política hostil à Coreia do Norte, das ameaças nucleares e da chantagem por parte dos Estados Unidos.”

“Kim Jong-un pretende afirmar a sua posição na mesa das negociações. Pretende mostrar que não vai a Singapura numa atitude de total submissão a Trump e aos Estados Unidos”, explica ao Expresso Rui Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei, Japão. “Simultaneamente, tendo em conta as recentes declarações de John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, o líder norte-coreano está a rejeitar veementemente o modelo líbio de desnuclearização [ver descodificador nesta página]. A mensagem de Pyongyang é que o nível de cedências norte-coreanas tem o seu limite.”

Esta posição de força tem, naturalmente, consequências internas. “A lógica que guia o líder norte-coreano é a sobrevivência do regime e da sua liderança. As recentes ameaças de cancelamento da cimeira podem servir também para consumo interno”, acrescenta Saraiva. “Se a imagem externa de Kim saiu beneficiada a nível internacional com o recente clima de desanuviamento, não sabemos ao certo que impacto teve junto das elites e da população.”

Um país, dois sistemas

Esta semana Moon Jae-in, Presidente da Coreia do Sul, irá a Washington para transmitir a Trump as fronteiras negociais do Norte e articular uma posição conjunta que volte a sentar os norte-coreanos à mesa do diálogo. Para o professor de Ciência Política, a China — o grande aliado da Coreia do Norte e sua porta de saída para o mundo — tem um papel fundamental na resolução deste impasse.

“O que está em causa é a integração da Coreia do Norte no sistema internacional e a transformação da Coreia do Norte de um sistema totalitário num sistema autoritário, através da sua ‘dengxiaopingzação’: um país, dois sistemas, em conjunto com a desnuclearização. Se isso se concretizar, passamos de um ‘jogo de soma zero’ [o ganho de um jogador representa a perda do outro] para um jogo onde todos ganham (win-win) a nível local, regional e global.”

Teorias e jogos à parte — aos quais Trump não parece ser sensível —, o Presidente dos Estados Unidos parece já ter tido rédea mais folgada no processo de diálogo com a Coreia do Norte. É que depois de retirar os EUA do acordo com o Irão e de provocar o mundo árabe transferindo a embaixada dos Estados Unidos em Israel de Telavive para Jerusalém — com consequências trágicas na Faixa de Gaza (ver páginas seguintes) —, Trump precisa de um sucesso diplomático para provar que, contra tudo e quase todos, a sua América está no caminho certo.

DESCODIFICADOR

Como desnuclearizar?

O fim do programa nuclear norte-coreano está no coração do processo de aproximação entre Washington e Pyongyang

1. Que poder tem o Norte?
A Coreia do Norte é uma das nove potências nucleares em todo o mundo. É também uma das quatro que não fazem parte do Tratado de Não-Proliferação Nuclear — as restantes são Índia, Paquistão e Israel. Pyongyang chegou a assinar o documento, em 1985, mas retirouse em 2003. Na era de Kim Jong-un (no poder desde 2011), sucessivos testes com mísseis balísticos, cada vez mais ameaçadores, desvendaram uma capacidade bélica para atingir território norte-americano. Para o nervosismo global que se seguiu, muito contribuiu o profundo
desconhecimento sobre o país, último reduto marxista-leninista e onde se vive segundo a ideologia juche (autossuficiência), introduzida por Kim Il-sung, o “pai fundador” do Estado e avô do líder atual.

2. O que é o modelo líbio?
Quando, em 2003, na Líbia, um embrionário programa de armas de destruição em massa causava dores de cabeça, o ditador Muammar Kadhafi aceitou eliminá-lo em troca do levantamento de sanções e do fim do estatuto de pária na comunidade internacional. O material perigoso seguiu para o Laboratório Nacional de Oak Ridge, no Tennessee. Recentemente, John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional de Trump, defendeu um “modelo líbio” para pôr fim à ameaça norte-coreana. Quinta-feira, o jornal japonês “Asahi Shimbum” noticiou que os EUA exigiram que a Coreia do Norte envie ogivas nucleares, um míssil balístico intercontinental e material nuclear, dentro de seis meses, para tirarem Pyongyang da lista negra do terrorismo.

3. Os EUA têm alternativas?
Perante a repugnância que provocou, em Pyongyang, a possibilidade de uma solução “à líbia” para o nuclear norte-coreano — até pelo fim trágico que teve Kadhafi, anos depois, em 2011, assassinado nas ruas na sequência de um bombardeamento ocidental ao país —, os Estados Unidos apressaramse a desvalorizar essa fórmula. “Não vi [o modelo líbio] ser discutido, por isso não estou consciente de que seja aquele que estamos a usar”, disse esta semana Sarah Sanders, porta-voz da Casa Branca, preferindo falar num “modelo Trump”, sem concretizar em que consiste. Citado pelo jornal “The Korea Herald”, Kim Yeol-su, do Instituto para os Assuntos Militares da Coreia, comentou: “A ideia de um modelo Trump é como oferecer um kit de primeiros socorros à cimeira EUACoreia do Norte”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

Ataque aéreo a Gaza. “Qualquer lugar pode ser um alvo de Israel a qualquer momento. Por isso o ataque é em todo o lado”

Perto da uma da manhã (23h00 em Portugal continental), Israel terá lançado uma série de ataques aéreos contra posições do Hamas na Faixa de Gaza. Este tipo de ataques já aconteceram outras vezes e o último foi há menos de uma semana. “O hotel abanou, as janelas abanaram. Dezenas de mísseis foram lançados por drones e F-16”, conta Jomma Sommarstrom, jornalista sueco da Swedish Radio em Gaza. Já Ahmed Salama, fotografo em Gaza, diz que os ataques devem ter atingido zonas descampadas mas como Gaza é tão pequeno, “há pessoas e edifícios perto dos locais atacados”

Na madrugada desta quinta-feira (quando passava pouco das 23h00 em Portugal), Israel voltou a bombardear a Faixa de Gaza. Sexta-feira passada tinha ficado marcada como o dia mais violento em Gaza desde 2014. Mais de 50 palestinianos foram mortos pelo exército israelita em protestos na Faixa de Gaza contra o bloqueio económico e social que sofrem há mais de dez anos — e pelo direito de regressarem a um território que consideram ocupado por Israel. No sábado, Israel fechou um dos principais postos fronteiriços com Gaza e destruíram um dos túneis construídos pela milícia palestiniana Hamas construidos numa tentativa de continuar a trazer bens essenciais para Gaza.

O jornal “Times of Israel” confirmou que Israel conduziu uma série de ataques a bases militares no norte da Faixa de Gaza e cita fontes da imprensa palestiniana avançando ainda que estes ataques terão sido uma reposta aos alegados ataques da milícia palestiniana Hamas à cidade israelita de Sderot, que fica perto da fronteira com Gaza. De acordo com o jornal, seis alvos foram atacados.

Nisreen Ashabrawi, estudante de Gaza de 21 anos, ouviu as explosões e conta uma revolta que não é só contra Israel mas também contra o armamento fornecido pelos Estados Unidos. “As forças israelitas estão a bombardear Gaza não apenas com F-16 norte-americanos como também nos estão a atingir com gás lacrimógeneo”. Em Gaza, diz, “qualquer lugar pode ser um alvo de Israel a qualquer momento. Por isso o ataque é em todo o lado”.

Ahmed Salama é fotógrafo em Gaza e descreveu ao Expresso, através de uma conversa no serviço de mensagens instantâneas do Twitter, os primeiros momentos depois do ataque: “Ouvi três fortes explosões a cerca de quinze quilómetros de onde estou. Penso que os ataques tenham atingido zonas descampadas e até agora não me chegaram notícias de que tenha havido mortos”. Ainda assim, salienta, “há pessoas e edifícios perto dos locais atacados”. Não há registo de vítimas até ao momento e, por isso, Ahmed ironiza: “Não há mortos ou feridos por isso isto é tudo normal”.

Alguns palestinianos, contudo, preferem não dramatizar, apesar de também falar de uma normalidade que não tem nada de normal. “Este ataque não foi mais forte que os outros, teve a mesma intensidade e não creio que tenha sido o início de uma ação prolongada, foi só mais um ataque”, diz por seu lado Mohamed Halabi, funcionário público em Gaza.

Cerca de cinco horas antes do ataque, as Forças de Defesa israelitas confirmaram, através da sua conta no Twitter, que tinham atingido dois postos militares do Hamas no Sul de Gaza. As informações agora parecem ser que os ataques divergiram para o ocidente e norte da pequena faixa de terra que, no total, tem 41 quilómetros de comprimento.

As mortes de sexta-feira elevaram para 112 o número de palestinianos mortos na Faixa de Gaza desde o início, a 30 de março, de um movimento de contestação em massa, a “Marcha do Retorno”. Entre os 60 civis palestinianos hoje abatidos a tiro pelo exército israelita, contavam-se “oito crianças com menos de 16 anos”, afirmou o embaixador palestiniano na ONU, Riyad Mansour, em conferência de imprensa, acrescentando que “mais de 2.000 palestinianos ficaram feridos” durante os protestos.

Jomma Sommarstrom, jornalista sueco da Swedish Radio em Gaza, também partilhou o que viu — e sentiu. Estava no quarto de hotel em Gaza quando as explosões aconteceram e ouviu quatro, duas delas muito próximas de onde está. “O hotel abanou, as janelas abanaram. Dezenas de mísseis foram lançados por drones e F-16”, conta ao Expresso. As informações que recolheu no local, e que partilhou, dão conta de seis ataques a fábricas de armamento e posições militares do Hamas.

Artigo escrito com Ana França, Helena Bento e Marta Gonçalves.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui