As guerreiras de Gaza

Estão na “linha da frente” dos protestos contra Israel. Numa sociedade conservadora como é a da Faixa de Gaza, as mulheres desdobram-se em formas de luta para reclamar um direito histórico — o regresso às terras que outrora foram palestinianas e que agora são território de Israel. “Somos todos terra”, diz ao Expresso uma jovem envolvida nos protestos

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Voluntariam-se para prestar assistência aos feridos, lançam balões e papagaios de papel com as cores da Palestina, fazem pão para matar a fome a quem esgota o corpo a “dar luta” a um dos exércitos mais poderosos do mundo, aproximam-se corajosamente da fronteira para gritar a sua revolta contra a ocupação israelita que transformou o território onde vivem num gueto de onde é difícil sair.

São as mulheres da Faixa de Gaza que, por estes dias, passam grande parte do tempo “em serviço” junto à fronteira com Israel para lembrar, a Telavive e ao mundo, que há algo em dívida para com os palestinianos — o direito do regresso às terras que já foram suas.

“Se queremos alguma coisa, o melhor é fazermos barulho. E quando aquilo que queremos é a nossa terra? O nosso direito? É por essa razão que participo na Grande Marcha do Regresso”, diz ao Expresso Samah, uma palestiniana de 26 anos. “Tenho conhecimentos na área de primeiros socorros, o que me permite ajudar os feridos. Saio de casa às oito horas da manhã e regresso às sete da tarde.”

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Na Faixa de Gaza, a vida está refém da falta de soluções para o conflito israelo-palestiniano. Em entrevista ao Expresso, o historiador israelita Ilan Pappé defendeu que “a guetização de Gaza é uma forma de apartheid” promovida por Israel, que aplica no território “políticas genocidas”.

Ocupada por Israel na Guerra dos Seis Dias (1967) e entregue à Autoridade Palestiniana após a retirada israelita, em 2005, a Faixa de Gaza viu a sua situação complicar-se após o Hamas tomar o poder pela força, em meados de 2006. A 25 de janeiro desse ano, os islamitas venceram as eleições legislativas palestinianas, mas viram o resultado não ser reconhecido nem pela rival Fatah, nem por Israel nem pela comunidade internacional. O golpe do Hamas motivou, então, um bloqueio às fronteiras do território onde, hoje, para se entrar e sair está-se dependente da boa vontade das autoridades israelitas e egípcias.

“As mulheres veem os seus filhos sem trabalho e ficam desesperadas. Então, participam muito nos protestos, talvez não a pensar nelas próprias mas na terra e nos filhos”, diz Samah. “As mulheres mais jovens também participam. Aqui, na Palestina, quando o assunto é a terra ninguém fica indiferente, seja-se homem ou mulher. Somos todos terra.”

Pressão psicológica de Israel sobre as mulheres

A 5 de abril passado, já com a Grande Marcha do Regresso nas ruas — começou a 30 de março e terminará esta terça-feira, 15 de maio —, Avichay Adraee, o porta-voz do Exército israelita, tentou falar ao coração dos setores mais conservadores de Gaza. Ao estilo de um fanático talibã, escreveu na sua conta em língua árabe no Twitter: “Uma boa mulher é a mulher honrada que se importa com o interesse da sua casa e dos seus filhos, sendo um bom exemplo para que eles a sigam. Quanto à mulher má e sem honra, essa não se importa com nada disso, age como uma selvagem que não tem nada a ver com a feminilidade e não se preocupa com o olhar de desprezo com que a sociedade a olha”.

Nesta como noutras guerras, a psicologia é uma arma e, com este “post”, o militar israelita, ironica e propositadamente, adotou o discurso do mais fundamentalista dos militantes do Hamas para tentar fechar as mulheres de Gaza em suas casas.

“Ser uma sociedade conservadora nunca foi um problema. Gaza pode continuar a ser uma sociedade conservadora mesmo que homens e mulheres, juntamente com os seus filhos, saiam de casa para participarem na Marcha”, diz Samah. “Ser ‘conservador’ não quer dizer ficar em casa e não participar em eventos. Nunca poderá significar que as mulheres não possam gritar pela verdade e que tenham de ficar de lado. Significa apenas saber comportar-se e respeitar a sua fé quando se está fora.”

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Samah estudou Literatura na Universidade Islâmica de Gaza e fez formação na área da segurança e proteção. Hoje trabalha como tradutora e coloca os seus conhecimentos de socorrista ao serviço do seu ativismo pelo futuro da Palestina.

Entre as cerca de 50 pessoas mortas desde o início dos protestos — a maioria atingida a tiro por “snipers” israelitas posicionados do outro lado da fronteira — não consta nenhuma mulher. Mas muitas estão entre os milhares de feridos. “Houve apenas ferimentos ligeiros, nada de grave”, diz Samah. “Quando as mulheres participam, os homens estão sempre lá para as proteger.”

Com uma pedra numa mão, o telemóvel na outra e carteira a tiracolo, esta palestiniana mostra que a revolta contra Israel faz parte do quotidiano da população de Gaza MOHAMMED SALEM / REUTERS
Uma jovem carrega um pneu em chamas, uma das “armas” usadas nos protestos em Gaza MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
Balões de esperança com duas bandeiras palestinianas presas à corda SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
“Derrubar” a fronteira com papagaios de papel, alguns com as cores da bandeira palestiniana MOMEN FAIZ / GETTY IMAGES
Zona de leitura numa área mais afastada da “linha da frente” dos protestos MUSTAFA HASSONA / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Palestinianas “de serviço” às redes sociais, outra frente importante da Grande Marcha do RegressoSAMAR ABO ELOUF / REUTERS
A bandeira da Palestina que, neste contexto, vale mais do que 1000 slogans MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Arrojadas e destemidas, junto a uma cerca de arame farpado separando Gaza de Israel MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
Um cordão de quatro rapazes “protege” uma rapariga, enquanto se afastam da fronteira a correr SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
Mulheres que inspiram as palestinianas: a cantora Rim Banna, recentemente falecida, voz de temas patrióticos, e Ahed Tamimi, a cumprir pena de prisão por esbofetear um soldado israelita SAMAR ABO ELOUF
Uma máscara feita com um pedaço de uma garrafa plástica e, sobre o nariz, uma proteção com odor de cebola resguardam esta mulher da inalação de gás lacrimogéneo IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Perfume, vinagre, limão, cebola são cheiros fortes a que os manifestantes recorrem para se defenderem dos gases tóxicos lançados por Israel MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
Palestiniana com dificuldades respiratórias atingida por uma nuvem de gás lacrimogéneo MOHAMMED SALEM / REUTERS
No terreno para assistir as vítimas, esta médica palestiniana sofre com os efeitos do gás lacrimogéneo IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Azáfama no interior de um posto de primeiros socorros SAMAR ABO ELOUF / REUTERS
A Marcha mobiliza sucessivas gerações de palestinianos, como o prova esta idosa, sentada numa das “tendas do regresso” MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
Jovens de Gaza, com a máscara associada ao movimento de hacktivismo internacional anonymous, tiram uma “selfie” ALI JADALLAH / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Duas palestinianas fazem pão, num dos acampamentos erguidos junto à fronteira IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Uma artista pinta um quadro em memória de Yasser Murtaja, um dos jornalistas palestinianos mortos durante a Grande Marcha SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
Acarinhada por outras mulheres, uma palestiniana de Khan Yunis chora a morte de um filho de 15 anos, atingido a tiro pelas forças israelitas MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
O silêncio e a tranquilidade propiciados pela noite trazem à “cidade das tendas” momentos de oração MOHAMMED SALEM / REUTERS
Montadas propositadamente para a Grande Marcha, as tendas foram batizadas com o nome das aldeias de onde palestinianos foram expulsos em 1948, após a criação de Israel IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Uma pilha de pneus, que, depois de incendiados, vão criar uma cortina de fumo negro com que os palestinianos esperam perturbar a mira dos atiradores israelitas MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
Vozes que não se calam, apesar de esbarrarem num muro de indiferença MOHAMMED SALEM / REUTERS
MOHAMMED SALEM / REUTERS

Artigo publicado no Expresso Online, a 14 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

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