Washington cancelou a cimeira. Mas não fechou a porta do diálogo
Durante cerca de dois meses e meio, o mundo viveu na crença de que seria possível, por fim, enterrar o machado de guerra na península da Coreia. A 8 de março, Donald Trump recebeu e aceitou um convite de Kim Jong-un para um encontro entre ambos — o primeiro de sempre entre Presidentes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte. Esta quinta-feira, o americano cancelou a cimeira prevista para 12 de junho, em Singapura.
“Infelizmente, com base na tremenda raiva e hostilidade aberta expressas na vossa mais recente declaração, sinto que não é apropriado ter essa reunião, neste momento”, lê-se na carta de Trump a Kim, na qual lhe agradece “o tempo, paciência e esforço despendido nas recentes negociações”. “Estou muito ansioso por conhecê-lo qualquer dia”, diz Trump. “Se mudarem de ideias em relação a esta importante cimeira, por favor, não hesitem em telefonar-me ou escrever-me.”
Apanhada de surpresa e talvez pelo tom, a Coreia do Norte abdicou de palavras duras na reação. Lamentou o cancelamento da cimeira e afirmou-se na “disposição de resolver questões através do diálogo, sempre e por qualquer meio”.
Bate-boca agressivo
Nas últimas semanas o processo de aproximação entre Pyongyang e Washington foi acumulando tropeções, fruto de “um bate-boca” cada vez menos diplomático entre as partes. O último episódio, que rebentou com a paciência de Trump, envolveu o seu vice-presidente. Na segunda-feira Mike Pence avisou a Coreia do Norte de que poderia acabar como a Líbia se não chegasse a acordo com os Estados Unidos sobre o seu programa nuclear. Pyongyang chamou-lhe “marioneta política, ignorante e estúpido”.
O enunciar de uma “solução líbia” para a Coreia do Norte teve o condão de gerar grande nervosismo no regime de Kim. É que o ditador líbio Muammar Kadhafi, que aceitou desmantelar o seu embrionário programa nuclear, foi, anos depois, derrubado e assassinado por forças apoiadas pelo Ocidente. Desde sempre que Pyongyang tem pesadelos com planos ocidentais no sentido de uma mudança de regime.
Em paralelo, a realização esta semana do exercício militar anual Max Thunder, envolvendo forças dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, foi sentida pelos norte-coreanos como “uma provocação”. Numa demonstração de boa-fé, a Coreia do Norte agendou para esta semana a destruição das instalações nucleares de Punggye-ri, para a qual convidou um grupo restrito de jornalistas americanos, britânicos, russos e chineses.
Um dos repórteres, Will Ripley, da CNN, disse que o anúncio de Trump surpreendera os norte-coreanos. “Íamos no comboio, após testemunharmos a destruição dos túneis em Punggye-ri, quando recebi um telefonema. Os norte-coreanos com quem estava ficaram chocados. Tinham acabado de destruir um recinto nuclear para demonstrarem o seu compromisso com a desnuclearização.”
Trump mostra os dentes
O fim da cimeira pôs a Coreia do Norte “às aranhas”. “Estamos a tentar descobrir qual é a intenção do Presidente Trump e o seu real significado”, reagiu Kim Eui-kyeom, porta-voz da Casa Azul, a sede da presidência. A decisão de Trump surgiu menos de 24 horas após ter recebido Moon Jae-in, que cumpriu a sua parte no processo ao encontrar-se com Kim a 27 de abril, em Panmunjom, e que deve sentir-se não mais do que um figurante à mercê de líderes inconstantes. Na carta ao norte-coreano, entre muitos salamaleques, Trump não baixou a guarda: “Vocês falam das vossas capacidades nucleares, mas as nossas são tão grandes e poderosas que eu rezo a Deus para que nunca sejam usadas.”
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui