O dia em que os palestinianos choraram duas catástrofes

A história registará que um dos dias mais importantes para Israel coincidiu com mais um banho de sangue na Faixa de Gaza. Esta terça-feira, começaram a ser enterrados os 60 palestinianos mortos durante protestos junto à fronteira no dia do 70º aniversário do Estado judeu. Entre eles está um homem que tinha ficado sem pernas num bombardeamento israelita anterior

ILUSTRAÇÃO DE JOÃO CARLOS SANTOS

É assim há 70 anos. Ano após ano, os palestinianos vivem cada 15 de maio como um dia de luto, em memória da “Nakba”, a “catástrofe” que para eles significou a fundação do Estado de Israel e o êxodo de mais de 700 mil palestinianos das terras onde sempre viveram. Este ano, a catástrofe foi sentida duplamente.

Esta terça-feira, na Faixa de Gaza, começaram a ser enterrados os 60 palestinianos abatidos na véspera por atiradores israelitas posicionados no outro lado da fronteira, naquele que foi o dia mais sangrento desde a última guerra entre Israel e o Hamas, em 2014. Munidos com o mais sofisticado equipamento militar, tinham ordem para alvejar quem ousasse aproximar-se da fronteira para reclamar o que é seu — as terras ocupadas por Israel.

No outro território palestiniano, a Cisjordânia, a solidariedade manifestou-se sob a forma de uma greve geral que parou lojas e escolas. Em várias cidades, as sirenes tocaram durante 70 segundos para assinalar a “Nakba” e homenagear as vítimas.

Na segunda-feira, morreram 60, mas desde o início da Grande Marcha do Regresso, a 30 de março, que tombaram pelo menos 108 palestinianos. “Parece que qualquer um está sujeito a ser morto”, reagiu o porta-voz do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, Rupert Colville. “Não é aceitável que [Israel] diga: ‘Isto é o Hamas, por isso [a nossa reação] está bem’”, acrescentou. “Que ameaça representa um duplo amputado para quem está do outro lado de uma cerca altamente fortificada?”

O Conselho de Segurança das Nações Unidas reuniu-se, esta terça-feira, para debater a situação em Gaza, e escutou a embaixadora dos Estados Unidos defender o indefensável: “Nenhum país nesta sala agiria com mais moderação do que Israel”, afirmou Nikki Haley. Na segunda-feira, nos corredores da ONU, os norte-americanos saíram em defesa dos israelitas e bloquearam uma declaração que apelava a uma “investigação independente e transparente” às ações de Israel junto à fronteira.

Aos microfones da rádio, a ministra da Justiça, Ayelet Shaked — defensora da pena de morte e da amputação de direitos à população árabe de Israel em nome da maioria de judeus —, tranquilizou os israelitas dizendo que Israel não tem medo do Tribunal Internacional de Justiça de Haia. “As Forças de Defesa de Israel estão a atuar muito, muito bem, ao abrigo dos protocolos de uso de fogo real e dentro da lei e do direito.”

O governo israelita considera que os protestos junto à fronteira constituem um “estado de guerra” pelo que a lei humanitária internacional não se aplica.

O mais recente massacre na Faixa de Gaza motivou reações em todo o mundo, mas poucas ações. África do Sul e Turquia mandaram regressar os seus embaixadores em Telavive e expulsaram os diplomatas israelitas nos seus países. “Netanyahu é o primeiro-ministro de um Estado de apartheid… Tem o sangue dos palestinianos nas suas mãos”, acusou o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.

Na Europa, a Bélgica convocou a embaixadora israelita no país para uma reunião, esta quarta-feira, no ministério dos Negócios Estrangeiros. Dos outros países ouviram-se as condenações vagas habituais. “Israel tem de respeitar o direito aos protestos pacíficos e o princípio da proporcionalidade no uso da força”, disse a chefe da diplomacia da União Europeia, Federica Mogherini. “França condena a violência”, disse a presidência. “Estamos preocupados com relatos de violência e perdas de vidas em Gaza”, reagiu o gabinete da primeira-ministra britânica.

“Chocada e profundamente preocupada”, a Alemanha disse que “Israel tem o direito a defender-se e a garantir a segurança da vedação [na fronteira] contra incursões violentas. Porém, deve aplicar-se o princípio da proporcionalidade.” O Governo português apelou “à contenção de todas as partes envolvidas, no sentido de pôr fim à violência”.

Portugal não se fez representar na inauguração da embaixada dos EUA, como a esmagadora maioria dos 28 Estados membros da UE. Entre os 32 países que assistiram à cerimónia, quatro europeus quebraram a unanimidade europeia: Áustria, Hungria, República Checa e Roménia.

Em Jerusalém, estiveram presentes também Angola e três países que, no rasto dos EUA, vão transferir as suas embaixadas de Telavive para Jerusalém: Guatemala, Paraguai e Honduras.

Esta terça-feira, o dia foi de ressaca também em Telavive. Ontem à noite, a capital de Israel recebeu em êxtase Netta Barzilai, a vencedora da Eurovisão que, acabada de chegar de Lisboa, subiu ao palco, apresentada pelo presidente da Câmara, Ron Huldai, e cantou “Toy” para dezenas de milhares de pessoas que encheram a Praça Rabin. A 70 quilómetros de distância, enquanto se choravam os mortos, crescia o ódio a Israel.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 15 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

Os palestinianos de Israel

A criação de Israel tornou-os uma minoria involuntária no território onde sempre viveram. Os israelitas árabes correspondem a um quinto da população, num país que ora reconhece o seu mérito ora os discrimina pela cultura a que pertencem

No norte de Israel, na cidade de Nazaré — de grande simbolismo para os cristãos —, o movimento à volta da Igreja da Anunciação é uma pequena montra do quão diversificada é a sociedade israelita. Aos domingos, é muito frequente ver-se chegar àquele templo cortejos matrimoniais de cidadãos israelitas árabes cristãos. Confuso para quem aterra em Israel pensando que ali só vivem judeus.

Cerca de 20% da população de Israel é árabe. Ali moravam ou descendem de quem ali vivia quando Israel foi fundado, e optaram por ficar apesar do êxodo de centenas de milhares de árabes aquando da Guerra da Independência. Involuntariamente, tornaram-se uma minoria. “A maior parte dos cidadãos árabes de Israel não celebra o aniversário do Estado, exceção feita à minoria drusa. Alguns até o consideram a ‘Nakba’, o desastre, como o sentem, que atingiu a comunidade árabe palestiniana” após a fundação de Israel, explica ao Expresso Frish Hillel, professor no Departamento de Estudos do Médio Oriente, da Universidade Bar-Ilan, arredores de Telavive. “Muitos árabes são ambivalentes, entre um sentimento de perda e a perceção de viverem muito melhor e num ambiente mais democrático enquanto cidadãos israelitas do que concidadãos seus em países árabes.”

Frish Hillel, um estudioso da comunidade árabe em Israel, diz que israelitas árabes e palestinianos dos territórios (Cisjordânia e Faixa de Gaza) têm uma perceção de Israel “totalmente diferente. A maioria dos israelitas árabes, de forma consistente, em sondagens, abomina tanto a violência dos palestinianos como a reação dos israelitas, e gostaria de ver o conflito resolvido. Nos territórios, perto de metade dos palestinianos ainda estão comprometidos com a destruição de Israel”.

Considerados, frequentemente, como uma “quinta coluna” — por força da sua identidade palestiniana, pelo facto de serem maioritariamente muçulmanos (há também cristãos e drusos) e dados os laços culturais que os ligam aos palestinianos dos territórios e de países árabes, alguns considerados “inimigos” por Israel —, vários israelitas árabes venceram o estigma e ganharam notoriedade e reconhecimento.

Há futebolistas árabes na seleção nacional; Lucy Aharish tornou-se, em 2007, a primeira árabe a apresentar o noticiário em horário nobre numa das principais televisões em língua hebraica; e, em 2009, Mira Awad tornou-se a primeira árabe a representar Israel na Eurovisão. Num dueto com a judia Noa, interpretou “There must be another way” (Tem de haver outro caminho), com algumas estrofes cantadas em árabe — tal como o hebraico, o árabe é língua oficial de Israel. “Os israelitas árabes estão envolvidos em todas as esferas da vida, do futebol às profissões médicas e científicas”, confirma Frish Hillel. “Porém, os símbolos do Estado são judaicos.”

Mas, em matéria de integração, há também o reverso da medalha. Segundo a polícia, os árabes estão envolvidos em 57% dos homicídios, 59% dos casos de fogo posto e 45% dos roubos. E estão especialmente na mira das autoridades de Telavive em questões de terrorismo. “O envolvimento de israelitas árabes em atos terroristas é alto quando comparado com terroristas islâmicos na Europa, mas muito menor do que os palestinianos nos territórios”, constata Frish Hillel. “Apesar de os israelitas árabes representarem 25% dos árabes sob domínio de Israel ou da Autoridade Palestiniana, eles estão envolvidos em menos de 5% dos atos terroristas.”

Contrariamente aos judeus e à minoria drusa, o serviço militar não é obrigatório para os árabes de Israel. Têm direito a votar e estão representados no Knesset (Parlamento, 120 assentos) com 13 deputados da Lista Árabe Unida, uma aliança de quatro partidos árabes que defende a solução de dois Estados e Jerusalém Leste como capital de uma Palestina independente, mas que nunca integrou o governo.

Dezenas de leis discriminatórias

Os “palestinianos de Israel”, como também são chamados, vivem sobretudo em cidades de maioria árabe — Nazaré é a maior de todas —, que estão entre as mais pobres do país, o que contribui para um sentimento de “cidadãos de segunda” partilhado por muitos deles.

Com sede em Haifa, norte de Israel, o Centro Legal para os Direitos da Minoria Árabe em Israel (Adalah) identificou 65 leis israelitas que, direta ou indiretamente, discriminam os cidadãos árabes de Israel e/ou palestinianos residentes nos territórios “com base na sua pertença nacional”. Se o cônjuge de um israelita árabe for um palestiniano residente nos territórios, por exemplo, não consegue obter cidadania israelita ou mesmo estatuto de residência.

Israel justifica os obstáculos à reunião familiar com razões de segurança — que passam também pela necessidade de garantir uma ampla maioria de judeus no país.

“Em tempos, a criação de novas cidades e aldeias era um grande problema em Israel, mas gradualmente o Estado tem vindo a abordar essa necessidade, especialmente em relação aos beduínos, que anteriormente eram nómadas e agora são sedentários”, conclui o professor.

Mas há domínios em que, dada a natureza do Estado de Israel, os árabes não devem esperar por conquistas. “Os árabes sentem-se discriminados na esfera pública: o hino refere-se exclusivamente ao povo judeu, tal como a bandeira de Israel.”

(Imagem: Bandeira fictícia da minoria árabe de Israel WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 14 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

As guerreiras de Gaza

Estão na “linha da frente” dos protestos contra Israel. Numa sociedade conservadora como é a da Faixa de Gaza, as mulheres desdobram-se em formas de luta para reclamar um direito histórico — o regresso às terras que outrora foram palestinianas e que agora são território de Israel. “Somos todos terra”, diz ao Expresso uma jovem envolvida nos protestos

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Voluntariam-se para prestar assistência aos feridos, lançam balões e papagaios de papel com as cores da Palestina, fazem pão para matar a fome a quem esgota o corpo a “dar luta” a um dos exércitos mais poderosos do mundo, aproximam-se corajosamente da fronteira para gritar a sua revolta contra a ocupação israelita que transformou o território onde vivem num gueto de onde é difícil sair.

São as mulheres da Faixa de Gaza que, por estes dias, passam grande parte do tempo “em serviço” junto à fronteira com Israel para lembrar, a Telavive e ao mundo, que há algo em dívida para com os palestinianos — o direito do regresso às terras que já foram suas.

“Se queremos alguma coisa, o melhor é fazermos barulho. E quando aquilo que queremos é a nossa terra? O nosso direito? É por essa razão que participo na Grande Marcha do Regresso”, diz ao Expresso Samah, uma palestiniana de 26 anos. “Tenho conhecimentos na área de primeiros socorros, o que me permite ajudar os feridos. Saio de casa às oito horas da manhã e regresso às sete da tarde.”

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Na Faixa de Gaza, a vida está refém da falta de soluções para o conflito israelo-palestiniano. Em entrevista ao Expresso, o historiador israelita Ilan Pappé defendeu que “a guetização de Gaza é uma forma de apartheid” promovida por Israel, que aplica no território “políticas genocidas”.

Ocupada por Israel na Guerra dos Seis Dias (1967) e entregue à Autoridade Palestiniana após a retirada israelita, em 2005, a Faixa de Gaza viu a sua situação complicar-se após o Hamas tomar o poder pela força, em meados de 2006. A 25 de janeiro desse ano, os islamitas venceram as eleições legislativas palestinianas, mas viram o resultado não ser reconhecido nem pela rival Fatah, nem por Israel nem pela comunidade internacional. O golpe do Hamas motivou, então, um bloqueio às fronteiras do território onde, hoje, para se entrar e sair está-se dependente da boa vontade das autoridades israelitas e egípcias.

“As mulheres veem os seus filhos sem trabalho e ficam desesperadas. Então, participam muito nos protestos, talvez não a pensar nelas próprias mas na terra e nos filhos”, diz Samah. “As mulheres mais jovens também participam. Aqui, na Palestina, quando o assunto é a terra ninguém fica indiferente, seja-se homem ou mulher. Somos todos terra.”

Pressão psicológica de Israel sobre as mulheres

A 5 de abril passado, já com a Grande Marcha do Regresso nas ruas — começou a 30 de março e terminará esta terça-feira, 15 de maio —, Avichay Adraee, o porta-voz do Exército israelita, tentou falar ao coração dos setores mais conservadores de Gaza. Ao estilo de um fanático talibã, escreveu na sua conta em língua árabe no Twitter: “Uma boa mulher é a mulher honrada que se importa com o interesse da sua casa e dos seus filhos, sendo um bom exemplo para que eles a sigam. Quanto à mulher má e sem honra, essa não se importa com nada disso, age como uma selvagem que não tem nada a ver com a feminilidade e não se preocupa com o olhar de desprezo com que a sociedade a olha”.

Nesta como noutras guerras, a psicologia é uma arma e, com este “post”, o militar israelita, ironica e propositadamente, adotou o discurso do mais fundamentalista dos militantes do Hamas para tentar fechar as mulheres de Gaza em suas casas.

“Ser uma sociedade conservadora nunca foi um problema. Gaza pode continuar a ser uma sociedade conservadora mesmo que homens e mulheres, juntamente com os seus filhos, saiam de casa para participarem na Marcha”, diz Samah. “Ser ‘conservador’ não quer dizer ficar em casa e não participar em eventos. Nunca poderá significar que as mulheres não possam gritar pela verdade e que tenham de ficar de lado. Significa apenas saber comportar-se e respeitar a sua fé quando se está fora.”

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Samah estudou Literatura na Universidade Islâmica de Gaza e fez formação na área da segurança e proteção. Hoje trabalha como tradutora e coloca os seus conhecimentos de socorrista ao serviço do seu ativismo pelo futuro da Palestina.

Entre as cerca de 50 pessoas mortas desde o início dos protestos — a maioria atingida a tiro por “snipers” israelitas posicionados do outro lado da fronteira — não consta nenhuma mulher. Mas muitas estão entre os milhares de feridos. “Houve apenas ferimentos ligeiros, nada de grave”, diz Samah. “Quando as mulheres participam, os homens estão sempre lá para as proteger.”

Com uma pedra numa mão, o telemóvel na outra e carteira a tiracolo, esta palestiniana mostra que a revolta contra Israel faz parte do quotidiano da população de Gaza MOHAMMED SALEM / REUTERS
Uma jovem carrega um pneu em chamas, uma das “armas” usadas nos protestos em Gaza MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
Balões de esperança com duas bandeiras palestinianas presas à corda SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
“Derrubar” a fronteira com papagaios de papel, alguns com as cores da bandeira palestiniana MOMEN FAIZ / GETTY IMAGES
Zona de leitura numa área mais afastada da “linha da frente” dos protestos MUSTAFA HASSONA / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Palestinianas “de serviço” às redes sociais, outra frente importante da Grande Marcha do RegressoSAMAR ABO ELOUF / REUTERS
A bandeira da Palestina que, neste contexto, vale mais do que 1000 slogans MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Arrojadas e destemidas, junto a uma cerca de arame farpado separando Gaza de Israel MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
Um cordão de quatro rapazes “protege” uma rapariga, enquanto se afastam da fronteira a correr SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
Mulheres que inspiram as palestinianas: a cantora Rim Banna, recentemente falecida, voz de temas patrióticos, e Ahed Tamimi, a cumprir pena de prisão por esbofetear um soldado israelita SAMAR ABO ELOUF
Uma máscara feita com um pedaço de uma garrafa plástica e, sobre o nariz, uma proteção com odor de cebola resguardam esta mulher da inalação de gás lacrimogéneo IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Perfume, vinagre, limão, cebola são cheiros fortes a que os manifestantes recorrem para se defenderem dos gases tóxicos lançados por Israel MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
Palestiniana com dificuldades respiratórias atingida por uma nuvem de gás lacrimogéneo MOHAMMED SALEM / REUTERS
No terreno para assistir as vítimas, esta médica palestiniana sofre com os efeitos do gás lacrimogéneo IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Azáfama no interior de um posto de primeiros socorros SAMAR ABO ELOUF / REUTERS
A Marcha mobiliza sucessivas gerações de palestinianos, como o prova esta idosa, sentada numa das “tendas do regresso” MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
Jovens de Gaza, com a máscara associada ao movimento de hacktivismo internacional anonymous, tiram uma “selfie” ALI JADALLAH / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Duas palestinianas fazem pão, num dos acampamentos erguidos junto à fronteira IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Uma artista pinta um quadro em memória de Yasser Murtaja, um dos jornalistas palestinianos mortos durante a Grande Marcha SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
Acarinhada por outras mulheres, uma palestiniana de Khan Yunis chora a morte de um filho de 15 anos, atingido a tiro pelas forças israelitas MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
O silêncio e a tranquilidade propiciados pela noite trazem à “cidade das tendas” momentos de oração MOHAMMED SALEM / REUTERS
Montadas propositadamente para a Grande Marcha, as tendas foram batizadas com o nome das aldeias de onde palestinianos foram expulsos em 1948, após a criação de Israel IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Uma pilha de pneus, que, depois de incendiados, vão criar uma cortina de fumo negro com que os palestinianos esperam perturbar a mira dos atiradores israelitas MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
Vozes que não se calam, apesar de esbarrarem num muro de indiferença MOHAMMED SALEM / REUTERS
MOHAMMED SALEM / REUTERS

Artigo publicado no Expresso Online, a 14 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

Uma bomba prestes a detonar

A tendência demográfica e o impasse no conflito com os palestinianos confrontam Israel com um desafio à sua identidade enquanto Estado. A prazo, sem uma Palestina independente, terá de optar se quer conservar a sua maioria judaica ou ser uma democracia

“O ventre da mulher árabe é a minha arma mais forte.” A máxima do líder histórico palestiniano, Yasser Arafat, soa como uma maldição em Israel, onde uma “bomba” bate silenciosamente, em contagem decrescente para a explosão — a demografia. Atualmente, entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão — abarcando Israel e os territórios palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza —, existe praticamente uma paridade entre judeus e árabes.

“Ainda não há uma paridade real, mas está-se a aproximar disso. Há uma pequena maioria de judeus, digamos de 51% contra 49% de árabes”, diz ao Expresso o italiano Sergio DellaPergola, um dos maiores especialistas mundiais em demografia israelita e judaica.

O número de judeus na Terra Santa ronda os 6.900.000 — 400.000 deles vivem em colonatos na Cisjordânia; os árabes são cerca de 6.500.000 — incluindo 1.500.000 com cidadania israelita. Porém, “a população árabe está a crescer mais rapidamente do que a judaica”, alerta este professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém. “Por isso, algures no futuro, num horizonte de 15 a 20 anos, é possível que se chegue a uma paridade real. A tendência é muito clara.”

Esta constatação coloca a demografia no coração do processo de paz israelo-palestiniano. “A questão é fundamentalmente política”, diz Sergio DellaPergola. “Se considerarmos apenas Israel e a Cisjordânia [sem a Faixa de Gaza], que é a situação ‘de facto’ atualmente, a maioria de judeus é de pouco mais de 60%. Se retirarmos da equação a população palestiniana da Cisjordânia, então a maioria de judeus chega quase aos 80%.”

Isto significa que a solução política que daria a Israel uma ampla maioria de judeus no seu Estado é aquela que o Governo de Benjamin Netanyahu (direita nacionalista) mais se tem empenhado em destruir: a de dois Estados para dois povos. Com a contínua expansão dos colonatos judeus na Cisjordânia, a aplicação de um bloqueio por terra, mar e ar à Faixa de Gaza, com as negociações entre as partes estagnadas e o tradicional mediador, Estados Unidos, a tomar parte por Israel — reconhecendo Jerusalém como sua capital —, uma Palestina independente é cada vez mais inviável.

Por essa razão, entre os palestinianos, há cada vez mais vozes a defenderem um Estado único, binacional. Esse cenário coloca Israel num dilema: ser um Estado judeu ou ser uma democracia? “Para ser um Estado judeu, Israel tem de ter uma forte maioria de judeus e, para tal, tem de abdicar de territórios e da população não judaica que aí vive”, explica o especialista. “Se Israel quiser manter os territórios, mas não quiser dar às populações não judaicas direitos cívicos e participação em eleições livres então será um Estado judeu mas não será democrático.”

“Se não acordarmos das ilusões da anexação [da Cisjordânia], perderemos a maioria judaica. É simples”, afirmou, recentemente, a ex-ministra israelita dos Negócios Estrangeiros e atual deputada Tzipi Livni, apologista da fórmula de dois Estados.

Os milagres da imigração

Se hoje Israel tem 8.500.000 habitantes, à época da criação do Estado não ia além dos 850.000. “Em 70 anos, a população cresceu dez vezes”, constata Sergio DellaPergola. “Mais de 3.500.000 deve-se à entrada de imigrantes, um contributo muito significativo para o aumento da população.”

Em 1950, apenas dois anos após a criação do Estado, Israel aprovou a Lei do Retorno que confere a “todos os judeus” o direito de irem para Israel com garantia imediata de cidadania. Fazer a “aliyah” — a viagem para Israel com o intuito de lá ficar — tornou-se, na mente de judeus de todo o mundo, um imperativo moral para alimentar o sonho sionista.

O impacto da imigração no Estado de Israel tem sido crucial para as estatísticas mas também para a qualidade da mão de obra que tem construído o país ao longo de décadas. “A imigração para Israel não foi seletiva, não mobilizou apenas as camadas mais baixas, mas todos os sectores sociais. Foi uma imigração muito motivada por situações negativas que afetaram todos os judeus independentemente do sítio onde viviam e sem distinção entre ricos e pobres, inteligentes e estúpidos”, defende Sergio DellaPergola. “Entre aqueles que foram para Israel, muitos eram peritos em tecnologia, sobretudo vindos da União soviética, e especialistas em muitas outras áreas, o que enriqueceu muito o capital humano de Israel. O país fez um progresso sócio-económico tremendo devido à imigração e à assimilação dos imigrantes.”

Rodeado de países árabes, o desafio de Israel começa dentro de portas, onde um quinto da população é árabe. “A taxa de fertilidade [número de filhos] de judeus e árabes não é muito diferente: os judeus têm em média 3,1 filhos e os árabes à volta de 3,2. Há uma motivação muito grande para se ter filhos, e não apenas junto dos sectores religiosos.”

Mas a maioria de judeus tende a sofrer uma erosão a cada ano que passa. “A população árabe é bastante mais jovem do que a judaica, logo há mais árabes que podem ter filhos. O crescimento anual dos judeus anda à volta de 1,5% a 1,8% e os árabes crescem a um ritmo de 2,5% a 2,8%. A diferença é de um ponto percentual, mas imaginemos que vamos a um banco e depositamos 100 euros a uma taxa de 1,5% ao ano e outros 100 a 2,5%? Ao fim de 10 anos, a diferença é considerável.”

O Expresso pergunta a Sergio DellaPergola se acha que o Governo de Benjamin Netanyahu é sensível às questões demográficas. O professor solta uma gargalhada antes de responder: “Não tenho a certeza. A atitude deles é dizerem que sabem que há um problema e que é importante, mas que há outros mais importantes, como o Irão, a Síria, o Líbano, Gaza. Por isso, dirão: ‘O melhor, por enquanto, é não se falar muito de demografia. Pensemos nisso noutro dia’.”

(Imagem: Um árabe e um judeu disputam o território entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão GEORGRAPHY.MRDONN.ORG)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 14 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

O dragão e a cidade do Porto: uma história de bravura e gratidão

A figura do dragão está conotada com o Futebol Clube do Porto, mas ainda o clube não tinha nascido e já esse animal mitológico era um símbolo da cidade. Na origem da história, está uma demonstração de valentia das gentes do Porto

Invencibilidade, força, espírito de luta. Para um portista, é tudo quanto o dragão simboliza e, por arrasto, é esse também o ADN do Futebol Clube do Porto (FCP). Nos últimos anos, o protagonismo do clube e os feitos desportivos alcançados dentro e fora de portas levaram a uma conotação entre a criatura e a principal instituição desportiva do Porto. Mas um passeio pela cidade revela que o dragão já era um símbolo do Porto antes mesmo da fundação do clube.

“Podemos datar a associação do dragão à cidade do Porto de 14 de janeiro de 1837, quando D. Maria II promulgou o novo brasão da cidade, que trouxe novidades”, explica ao Expresso o arqueólogo Joel Cleto, autor e apresentador da série “Caminhos da História”, emitida no Porto Canal. “Essas novidades tinham a ver com algo que acontecera na cidade poucos anos antes, um acontecimento injustamente esquecido e que, no entanto, foi crucial para a História do Portugal Contemporâneo — o Cerco do Porto”. Ou, como a ele se referiu o escritor portuense Almeida Garrett, ele próprio um dos “cercados”, o momento em que “o Portugal velho acaba e o novo começa”.

Com D. Miguel no trono, é instaurado o absolutismo em Portugal. O descontentamento popular generalizou-se e o país mergulhou numa guerra civil (1832-1834). D. Pedro IV (primeiro imperador do Brasil), irmão do monarca e anti-absolutista, regressa a Portugal, organiza um exército nos Açores, desembarca na praia de Pampelido (hoje, praia da Memória, concelho de Matosinhos) e avança para o Porto. Tinha com ele 7500 homens.

De Lisboa, partem 40 mil homens fiéis a D. Miguel que, chegados ao Porto, montam um cerco à cidade. Frente a frente, muito mais do que dois irmãos em luta pelo poder, estavam conceções opostas de sociedade e de organização do Estado: absolutismo (D. Miguel) e liberalismo (D. Pedro).

“D. Pedro resiste porque não tem ao seu lado apenas 7500 homens… Muito rapidamente, a eles se juntam uma boa parte da população do Porto”, diz Joel Cleto. “É isso que explica que ele resista um ano e, depois, consiga romper o Cerco, que constitui o início do fim do absolutismo.”

Entre 8 de julho de 1832 e 18 de agosto de 1833, o Porto é diariamente bombardeado, há dificuldades de abastecimento, morre-se à fome e proliferam doenças (cólera, tifo). Após vencer a guerra, D. Pedro proclama rainha D. Maria II, sua filha, e toma uma série de medidas para recompensar as gentes do Porto pelo seu heroísmo e apoio inesgotável à luta pelo liberalismo e pela liberdade.

Estátua de D. Pedro IV, na Praça da Liberdade MARGARIDA MOTA

“D. Pedro tem consciência de que se não fosse o Porto não teria triunfado”, diz o historiador portuense. “Durante um ano, ele e a sua filha, D. Maria II, vão fazer imensas coisas para agradecer ao Porto.”

Manda que se crie uma grande biblioteca (Biblioteca Pública Municipal do Porto), um grande museu (o atual Museu Nacional Soares dos Reis, para onde manda que se transfira a espada de D. Afonso Henriques que estava no seu túmulo, em Coimbra) e um jardim para as mulheres da cidade (Jardim de são Lázaro).

Atribui à cidade o título que ainda hoje a define — Invicta —, acrescentado aos outros que o Porto já detinha: “Antiga, Muy Nobre, Sempre Leal e Invicta Cidade do Porto”. Confere-lhe a mais alta condecoração do país: a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Decreta que o segundo filho do Rei de Portugal passe a ostentar o título de Duque do Porto, de cuja coroa sobressai “um dragão negro das antigas armas dos senhores reis d’estes reinos”. E doa o seu coração à cidade –— atualmente guardado numa urna de prata na Igreja da Lapa, que D. Pedro frequentou durante o Cerco.

A 14 de janeiro de 1837, por carta régia redigida por Almeida Garrett, D. Maria II outorga à cidade um novo brasão (que incluía a coroa ducal, e portanto a figura do dragão), onde estão representados os agradecimentos de D. Pedro.

Brasão da cidade do Porto conforme foi outorgado por D. Maria II, em 1837, na estátua de D. Pedro IV MARGARIDA MOTA

Símbolo das armas da Casa Real Portuguesa e personificação dos valores que sobressaíram durante o Cerco do Porto, o dragão passa a figurar, como elemento decorativo, em dezenas de locais por toda a cidade.

Pode-se vê-lo na fachada da Câmara Municipal (Avenida dos Aliados), no Palácio da Justiça (Cordoaria), na estátua equestre de D. Pedro IV (Praça da Liberdade), na estátua do Infante D. Henrique (Jardim do Infante D. Henrique), na Casa dos 24 (junto à Sé Catedral), no Palácio da Bolsa, e no altar onde está depositado o coração de D. Pedro IV.

Estes dragões, sintetiza Joel Cleto, têm a ver “com o Duque do Porto e, acima de tudo, com o Cerco do Porto e com o caráter invencível, resistente, heroico, imortal, indomável da cidade do Porto.” Tudo o que um portista reconhece no “seu Porto”.

Desde 2015 que, numa iniciativa do Museu do Dragão, Joel Cleto é o guia da “Rota do Dragão”, um passeio a pé pelas ruas do Porto com paragens junto a fontanários, estátuas e monumentos decorados com dragões. A 18 de maio arranca a primeira visita de 2018, outras três se seguirão a 24 de junho, 14 de julho e 29 de setembro.

A origem da relação entre o dragão e o FCP data de 1922, quando o clube, fundado 29 anos antes, adota aquele que é o seu emblema atual, e que mais não é do que a sobreposição das armas da cidade promulgadas por D. Maria II (onde um dragão encima a coroa ducal) ao emblema original do clube (uma bola de futebol antiga azul com as letras FCP a branco).

Símbolo do FCP, no “cogumelo” que funciona como bilheteira, junto ao Estádio do Dragão MARGARIDA MOTA

O dragão passa, então, a fazer parte do património do FCP. E assim continuará mesmo após o Estado Novo ordenar uma reforma heráldica e “declarar guerra” à imagem do dragão.

Através de uma portaria com data de 25 de abril de 1940, é aprovada uma nova constituição heráldica das armas, selo e bandeira dos municípios portugueses, onde ficou evidente a vontade de apagar dos brasões de concelhos e freguesias todos os resquícios liberais e monárquicos. Das armas da cidade do Porto, desapareceu — até aos dias de hoje — a coroa ducal com o dragão, substituída por uma coroa encimada por cinco castelos.

Mas na cidade, nem todas as instituições acataram a ordem do Estado Novo. “Algumas mantiveram a coroa e o dragão nos seus emblemas, que lá continuam nas suas sedes e nas fachadas dos seus edifícios”, diz o historiador. “É o caso do Orfeão do Porto, dos Bombeiros Portuenses, da Associação de Futebol do Porto e de duas instituições poderosas da cidade: a Associação Comercial do Porto e o FCP.”

Ao recusar adotar as novas armas da cidade impostas pelo Estado Novo, o FCP teve na manutenção da coroa e do dragão uma manifestação de resistência em relação ao poder central. “Desde muito cedo que o clube tem orgulho na presença do emblema da cidade no seu lema. O próprio hino do FCP diz isso: ‘Teu pendão leva o escudo da cidade, Que na história deu o nome a Portugal’”, recorda Joel Cleto.

Hino do Futebol Clube do Porto, exposto no Museu do Dragão MARGARIDA MOTA

Já com Pinto da Costa na presidência, o dragão toma o clube “de assalto”. O dragão dá nome ao estádio, ao museu e ao pavilhão das modalidades (Dragão Caixa). O projeto de formação desportiva chama-se Dragon Force, organizado em torno do lema “Tu tens o poder do Dragão”. O clube publica a revista “Dragões” e premeia atletas e funcionários com um Dragãos de Ouro. No estádio, em dias de jogos, a mascote Draco partilha o palco com “a equipa dos dragões”.

“Julgo que foi uma reação aos clubes da capital, que começaram a ser identificados como ‘o clube da águia’ e ‘o clube do leão’”, conclui Joel Cleto. “Mas pegou com grande sucesso.”

(Foto principal: O dragão, na parede exterior do estádio do Futebol Clube do Porto MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso, a 12 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui