Cimeira Trump-Kim: O que fica deste encontro histórico?

Esteve tremida até realizar-se, efetivamente. A cimeira de Singapura marca o início de uma nova relação entre Estados Unidos e Coreia do Norte. E pouco mais

Cimeira: Anunciada como “histórica”, a efetiva realização da cimeira de Singapura — que decorreu no Hotel Capella, na ilha de Sentosa — cumpriu esse desígnio: Donald Trump e Kim Jong-un tornaram-se os primeiros chefes de Estado norte-americano e norte-coreano de sempre a encontrarem-se. Tal como a 27 de abril passado, Kim Jong-un fizera história com um pequeno passo, ao atravessar a linha de fronteira, para participar, em solo sul-coreano, na cimeira entre as duas Coreias, o aperto de mão entre Trump e Kim abriu um novo capítulo da história entre os dois países, da península coreana e do mundo.

Confiança: O intempestivo Presidente dos EUA tinha dito que bastaria um minuto para perceber quais as reais intenções do homólogo norte-coreano. O facto dos dois líderes se terem reunido, a sós (na companhia apenas de dois tradutores), durante 40 minutos revela uma vontade mútua de ganharem com este encontro histórico. Trump e Kim, que há meses esgrimiam ameaças apocalípticas, quiseram mostrar com esse encontro demorado que são homens de paz.

Declaração: Os dois líderes assinaram uma declaração conjunta que pouco mais é do que um processo de intenções. O documento prevê “a desnuclearização completa da península coreana”, deixando a dúvida sobre se para além do desmantelamento do arsenal nuclear da Coreia do Norte também está em causa um eventual recuo dos Estados Unidos em matéria de defesa da Coreia do Sul. Trump garante que não: “Não vamos reduzir nada”, disse quando perguntado se iiria reduzir o contingente de 32 mil militares destacados. “Isso não faz parte da equação, de momento.” Resta saber se os norte-coreanos interpretaram de igual forma.

Sanções: De Singapura, Kim Jong-un sai sem certezas de que o tão desejado levantamento das sanções económicas à Coreia do Norte seja concretizado. Na conferência de imprensa final de Donald Trump, que durou uma hora, o Presidente dos EUA garantiu que as sanções continuarão em vigor até ao desmantelamento do arsenal nuclear.

Coreia do Sul: Seul ouviu Trump referir-se aos exercícios militares conjuntos anuais entre EUA e Coreia do Sul como “jogos de guerra provocadores” e a equacionar o seu fim. “Isso vai poupar-nos muito dinheiro, a não ser que vejamos que as negociações futuras não estejam a ir para onde queremos”, disse Trump. Com estas palavras lança nervosismo em Seul e insinua que sai de Singapura sem grande confiança em relação às negociações que se seguirão.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de junho de 2018. Pode ser consultado aqui

A galeria de imagens que faltava: Kim e Trump nas horas que antecederam o encontro histórico

Donald Trump e Kim Jong-un foram recebidos em Singapura como estrelas. Muita gente nas ruas com os telemóveis prontos a filmar à passagem das suas caravanas, muita segurança em redor dos locais da cimeira e muita inspiração nos menus dos restaurantes e bares locais. A expectativa era grande em todo o mundo: corresponderiam os imprevisíveis líderes de Estados Unidos e Coreia do Norte? E não é que corresponderam mesmo?

Enquanto os líderes de Coreia do Norte e Estados Unidos se preparavam para se encontram pessoalmente, Howard e Dennis Alan, sósias de Kim Jong-un e Donald Trump, faziam as delícias de quem passava pelo Parque Merlion, em Singapura EDGAR SU / REUTERS
Kim Jong-un foi o primeiro a chegar a Singapura, a bordo de um avião da Air China TIM CHONG / REUTERS
KCNA / REUTERS
Kim Jong-un foi também o primeiro dos dois líderes a ser recebido por Lee Hsien Loong, o primeiro-ministro de Singapura KCNA / REUTERS
Nas imediações da estação ferroviária de Pyongyang, norte-coreanos pararam junto a um ecrã eletrónico para ouvir as últimas de Singapura KYODO / REUTERS
Como habitualmente, Donald Trump viajou a bordo do Air Force One até Singapura, onde chegou no domingo à noite, horas após o homólogo norte-coreano LIU ZHEN / GETTY IMAGES
No exterior do Hotel Shangri-La, onde Donald Trump está hospedado, duas mulheres entoaram o hino norte-americano à chegada do seu Presidente EDGAR SU / REUTERS
À semelhança do que aconteceu com o homólogo norte-coreano, também o Presidente dos EUA foi recebido pelo primeiro-ministro de Singapura REUTERS
Esta segunda-feira, delegações dos EUA e de Singapura reuniram-se num almoço de trabalho GETTY IMAGES
No exterior do Hotel St. Regis, onde fica hospedado Kim Jong-un, liam-se as últimas sobre a cimeira TYRONE SIU / REUTERS
Por onde quer que as delegações passassem, foi um alvoroço nas ruas de Singapura TYRONE SIU / REUTERS
“Apelos à paz” um pouco por todo o lado, como neste canhão da II Guerra Mundial, decorado com flores, na ilha de Sentosa, onde teve lugar a cimeira Trump-Kim ROSLAN RAHMAN / AFP / GETTY IMAGES
Segurança reforçada junto ao palácio presidencial de Singapura, como em vários outros pontos da cidade ATHIT PERAWONGMETHA / REUTERS
Para os locais, todo o aparato à volta da cimeira (na imagem, jornalistas em frente ao Hotel St. Regis) abalroou-lhes o quotidiano LIU ZHEN / GETTY IMAGES
Já os menus dos restaurantes e bares de Singapura ganharam alguma criatividade graças à cimeira EDGAR SU / REUTERS
Shots no bar Escobar EDGAR SU / REUTERS
Tacos “Rocket Man” e “El Trumpo”, no restaurante Lucha Loco FELINE LIM / REUTERS
No bar do Empire Sky Lounge FELINE LIM / REUTERS
O OSG Bar criou um prato especial para a ocasião, o “Make harmony great again” WIN MCNAMEE / GETTY IMAGES
A cimeira entre Donald Trump e Kim Jong-un realizou-se, esta terça-feira, no Hotel Capella, na ilha de Sentosa REUTERS
A cimeira foi seguida com especial atenção na Coreia do Sul, onde milhares de pessoas foram saindo à rua em manifestações pacíficas, desejando o sucesso do encontro JUNG YEON-JE / AFP / GETTY IMAGES
Sul-coreanas pedindo “paz” e a reunificação da península coreana (implícito no mapa azul), em frente à embaixada dos Estados Unidos em Seul JUNG YEON-JE / AFP / GETTY IMAGES
Estava tudo a postos para a cimeira, faltava apenas a entrada em cena de Donald Trump e Kim Jong-un (na foto, em CDs distribuídos aos jornalistas acreditados para cobrir o encontro) KIM KYUNG HOON / REUTERS
Ambos os líderes deram mostras que o sucesso da cimeira muito dependeria da sua personalidade… e imprevisibilidade KIM KYUNG HOON / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de junho de 2018. Pode ser consultado aqui

Cimeira Trump-Kim já tem medalha… e cocktail

A uma semana do histórico encontro entre os líderes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte, Singapura vai-se engalanando para o evento. O local da reunião é, ainda, um mistério

Cocktails “Kim” e “Trump”, criadas pelo Escobar, um bar de Singapura, para assinalar a cimeira entre os líderes de EUA e Coreia do Norte EDGAR SU / REUTERS

Em acelerada contagem decrescente para a cimeira de Singapura, a 12 de junho, entre Donald Trump e Kim Jong-un, os pormenores do encontro são, porém, divulgados a conta-gotas.

Esta terça-feira, Singapura apresentou uma medalha comemorativa do histórico encontro. Num dos lados, uma pomba estilizada com um ramo de oliveira no bico surge entre a inscrição “Paz Mundial” e um ramo de rosas e magnólias, as flores nacionais de Estados Unidos e Coreia do Norte, respetivamente.

No verso, duas mãos de homem cumprimentam-se com as bandeiras dos dois países em pano de fundo. A medalha foi concebida em três metais preciosos (ouro, prata e zinco), oscilando o seu preço entre os 1380 e os 36 dólares (1180 e 31 euros).

Medalha em prata comemorativa da cimeira entre Donald Trump e Kim Jong-un, a 12 de junho, em Singapura REUTERS
REUTERS

No mês passado, a Casa Branca já tinha apresentado a sua moeda comemorativa da cimeira, onde o encontro surge descrito como “conversações de paz”. Curiosamente, a moeda foi posta à venda após Trump cancelar a sua reunião com Kim.

Tradição de neutralidade

Singapura orgulha-se de ser uma plataforma neutral de promoção da paz, uma espécie de Suíça asiática, em matéria diplomática. Em 2015, acolheu uma cimeira histórica entre os líderes da China e de Taiwan, o primeiro desde a vitória dos comunistas na guerra civil que terminou em 1949 e que confinou os nacionalistas à ilha de Taiwan.

Então, o Hotel Shangri-La acolheu a cimeira chinesa. Três anos depois, é opção para o encontro Trump-Kim de dia 12. O exato local ainda não foi anunciado, mas uma área especial, que terá segurança apertada e acesso condicionado entre os dias 10 e 14, já foi circunscrita em Singapura. No seu interior, localizam-se várias embaixadas e hotéis, entre os quais o Shangri-La.

Aos poucos, Singapura vai-se preparando para o histórico encontro. No pub Escobar, já se pode pedir um “Trump” ou um “Kim”, cocktails confecionados, respetivamente, à base de bourbon e de soju, um licor de arroz destilado originário da Coreia.

Já o Hopheads, um bar de tapas, criou o “Bromance” — palavra que combina “brother” (irmão) e “romance” —, feito com cerveja preta, tequila, soju e Coca Cola diet, esta última a bebida favorita de Donald Trump.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de junho de 2018. Pode ser consultado aqui

Soros, pensos e compressas: as “armas” que condenaram Razan à morte

Razan al-Najjar foi alvejada a tiro por um militar israelita quando tentava socorrer palestinianos feridos nos protestos na Faixa de Gaza. Jovem, formada, corajosa e altruísta, é a prova de que mais do que punir quem se atreve a aproximar-se da sua fronteira, Israel quer minar o futuro da Palestina

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Um colete manchado com sangue. Nos bolsos, pacotes de compressas. “Isto [o colete] era a arma que a minha filha usava para lutar contra os sionistas. E isto [as compressas] eram as munições para essa arma. E aqui está a identificação dela para que possam ver se era terrorista ou não.”

Na hora de chorar a morte da filha, alvejada por um “sniper” israelita, Sabreen al-Najjar mostra as “armas” que a condenaram, num vídeo partilhado nas redes sociais, e deixa que a lucidez se sobreponha à emoção para denunciar o que se passa na Faixa de Gaza. “Os terroristas são os sionistas, que se vangloriam sobre direitos humanos e deixam-nos, aos palestinianos, sem direitos. Onde estão os direitos humanos? Nem este colete a salvou…”

Razan al-Najjar, uma paramédica de 21 anos, foi morta na passada sexta-feira, na Faixa de Gaza, junto à fronteira com Israel, atingida a tiro quando tentava prestar os primeiros socorros a um manifestante ferido, na área de Khuza’a, região de Khan Yunis (sul de Gaza). “Ela foi baleada no peito. A bala rasgou o colete branco estampado com o logótipo da Sociedade Médica de Socorro Palestiniana (PMRS) que a identificava como pessoal médico”, esclareceu, em comunicado, a organização onde Razan trabalhava como voluntária.

Testemunhas ouvidas pela Al-Jazeera relatam que tudo aconteceu quando Razan se aproximou da vedação com a intenção de resgatar um manifestante ferido, caído do lado de Israel, para onde passara após fazer um buraco na rede.

Rida, outra voluntária de 29 anos, ia com ela. Seguiam de braços no ar para mostrarem aos soldados israelitas que não constituíam qualquer perigo. “Assim que entrámos na cerca para recuperarmos os manifestantes, os israelitas lançaram gás na nossa direção. Depois, um atirador disparou uma única bala, que atingiu Razan.”

A morte da jovem não foi imediata. Assistida no local, foi levada para o Hospital Europeu de Gaza, onde acabaria por falecer. “Os fragmentos da bala feriram três outros membros da nossa equipa”, diz Rida. “Era muito claro quem éramos, dados os nossos uniformes, os nossos coletes e bolsas médicas. Não havia outros manifestantes à nossa volta, apenas nós.”

Desde o início da Grande Marcha do Regresso, a 30 de março, que Razan não falhou uma única sexta-feira, o dia dos protestos maiores, de que resultaram sempre mortos. Com esse ativismo, desafiou também estereótipos numa sociedade conservadora como a de Gaza que nem sempre vê com bons olhos o envolvimento das mulheres na vida pública. Num artigo publicado pelo site do Expresso, a 14 de maio, sobre palestinianas na linha da frente dos protestos em Gaza, Razan é uma das “guerreiras” retratadas. É ela quem surge na foto número 15, em dificuldades, após inalar gás tóxico.

Quarenta ambulâncias sob fogo

Razan al-Najjar é a 119ª vítima mortal da Grande Marcha. “No total, Israel feriu 245 paramédicos desde o fim de março, 29 dos quais com fogo real, e alvejou 40 ambulâncias. Atirar contra pessoal médico é um crime de guerra ao abrigo das Convenções de Genebra, tal como alvejar crianças, jornalistas e civis desarmados”, recordou, num comunicado, Mustafa Barghouti, presidente e fundador da PMRS, criada em 1979. “Exigimos uma resposta internacional imediata às violações israelitas ao direito humanitário em Gaza. Apelamos aos nossos amigos e parceiros internacionais que condenem publicamente o assassínio de Razan e que exijam que Israel seja responsabilizado pelos seus crimes ao abrigo do direito internacional.”

Barghouti é um médico e ativista palestiniano que concorreu como independente às eleições presidenciais de 9 de janeiro de 2005, as últimas realizadas. Obteve 19,8% dos votos — foi o segundo mais votado de sete candidatos —, perdendo apenas para Mahmud Abbas (62%). Faz o seu papel ao denunciar os abusos de Israel, mas a experiência política diz-lhe que dificilmente essa responsabilização se concretizará e que, o mais provável, é ouvir um rotundo silêncio.

No dia em que Razan al-Najjar caía morta, a defesa intransigente que os Estados Unidos fazem de Israel no Conselho de Segurança das Nações Unidas — e que, ao longo de décadas, tem comprometido administrações republicanas e democratas — ganhou contornos particularmente polémicos: num primeiro momento, os norte-americanos aplicaram o direito de veto a uma proposta de resolução de iniciativa do Kuwait apelando à “segurança e proteção das populações civis dos territórios palestinianos ocupados, incluindo a Faixa de Gaza”; em alternativa, avançaram com uma resolução exigindo o fim de “todas as ações violentas de provocação” por parte do Hamas e de outros grupos palestinianos, omitindo referências ao uso da força por parte de Israel e à necessidade de proteger os palestinianos. O texto recebeu um único voto favorável — o dos Estados Unidos.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 4 de junho de 2018, e republicado no “Expresso Diário”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui