Eurovisão 2019: um festival desafinado

O anúncio da cidade que vai acolher o próximo Festival da Canção está enguiçado. A Eurovisão quer garantias por parte do Governo de Israel de que as opiniões políticas dos visitantes não serão obstáculo à obtenção de visto e que será possível trabalhar durante o “shabat”, o dia de descanso dos judeus

A vitória de Netta Barzilai no Festival Eurovisão realizado em Lisboa pode vir a revelar-se um presente envenenado para Israel.

A União Europeia de Radiodifusão (UER) — a entidade responsável pelo evento — previu, para este mês de setembro, o anúncio da cidade que vai acolher o evento, mas por enquanto o que soa desde os bastidores desse concurso musical é uma grande desafinação.

Uma delegação da UER esteve recentemente em Israel, onde visitou três cidades potencialmente anfitriãs (Telavive, Jerusalém e Eilat, tendo esta última ficado fora da corrida). Para além da avaliação dos locais, os responsáveis da Eurovisão entregaram ao Governo de Benjamin Netanyahu uma lista com exigências para a realização do evento em solo israelita.

Uma delas passa pela concessão de vistos independentemente das opiniões políticas dos visitantes, o que colide com legislação aprovada em 2017 que possibilita que pessoas que apoiem boicotes ou sanções a Israel sejam impedidas de entrar no país. Este ano, ao abrigo dessa lei, pelo menos 250 pessoas não passaram do Aeroporto Internacional Ben Gurion (Telavive), do posto fronteiriço de Taba (entre o Egito e a cidade de Eilat) ou da ponte Allenby, entre a Jordânia e o território palestiniano da Cisjordânia.

Outras condições requeridas pela UER passam pela liberdade de circulação no país sem limitações em virtude de opiniões políticas, religião ou orientação sexual; liberdade de imprensa e de expressão para todos os participantes e delegações; e — porventura a exigência mais sensível — o levantamento da restrição religiosa que impede o trabalho aos sábados (“shabat”), o dia de descanso dos judeus.

“Isto é uma desgraça completa”, reagiu, na terça-feira, o ministro da Segurança Pública, Gilad Erdan. “Não entendo como eles tiveram a ousadia de fazer este tipo de exigências. Espero que o primeiro-ministro não aceite estas condições ultrajantes.”

Qualquer uma das exigências feitas pela Eurovisão desafia limites do Estado judeu. Mas para a UER, “para se fazer o Festival Eurovisão da Canção tem de ser possível trabalhar-se as 24 horas do dia, os sete dias da semana, todas as semanas – não apenas na do evento e dos ensaios, mas nas semanas anteriores, quando se constrói o cenário, quando se prepara o local do espetáculo”, explicou, em entrevista à televisão pública israelita KAN, o norueguês Jon Ola Sand, supervisor executivo da organização. “Lamento ter de o dizer, mas não há forma de realizar a Eurovisão sem se poder trabalhar também aos sábados. É absolutamente impossível, isso é fundamental para nós!”

Para os judeus, o período que decorre entre o pôr do sol de sexta-feira e o de sábado é dedicado a Deus, pelo que as obrigações profissionais devem ser evitadas. Os ultraortodoxos levam o preceito ao limite, recusando-se a conduzir um carro ou a enviar sms. Em novembro, o rabino Yaakov Litzman demitiu-se do cargo de ministro da Saúde, em protesto contra umas obras de reparação da linha ferroviária realizadas a um sábado. (A coligação governamental integra três partidos religiosos: Shas, Judaísmo da Tora Unida e Casa Judaica.)

Ativistas de mangas arregaçadas

Das três vezes que Israel venceu a Eurovisão — em 1978, 1979 e 1998 —, Jerusalém acolheu o espetáculo por duas vezes.

A exceção aconteceu após o triunfo em 1979: Israel fez saber que não conseguia financiar o festival dois anos seguidos e o evento realizou-se em Haia (Holanda).

A possibilidade de a Cidade Santa voltar a receber o Eurofestival, em maio do próximo ano, deixa antever uma grande politização do evento, em virtude do polémico reconhecimento de Jerusalém como capital do Estado de Israel por parte dos Estados Unidos. Se Jerusalém for a escolha da Eurovisão, será pois de prever uma maior contestação ao evento do que se for Telavive — ou não…

“Independentemente de onde se realizar, se a Eurovisão de 2019 for organizada pelo regime de apartheid de Israel, tem de ser boicotada para impedir cumplicidade e negócios com este regime e para evitar manchar a marca Eurovisão, de forma irreversível, com o registo chocante de Israel ao nível dos direitos humanos”, diz ao Expresso o palestiniano Omar Barghouti, cofundador do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). “O ponto-chave é que o Governo de extrema-direita de Israel está a tentar usar a Eurovisão descaradamente como parte da sua estratégia oficial [de promoção] da marca Israel. Netanyahu considerou Barzilai ‘a melhor embaixadora de Israel’. Está desesperadamente a tentar projetar a ‘cara linda de Israel’ para branquear e desviar as atenções de décadas de ocupação e de crimes de guerra contra os palestinianos.”

“Só no dia 14 de maio”, recorda Barghouti, vencedor do Prémio Gandhi da Paz de 2017 (concedido anualmente pelo Governo da Índia), “apenas dois dias após a vitória na Eurovisão, Israel massacrou 62 palestinianos em Gaza, incluindo seis crianças. Nessa mesma tarde, Netta Barzilai atuou num concerto comemorativo [da vitória] em Telavive, organizado pelo presidente da Câmara Municipal que afirmou: ‘Temos uma razão para estarmos felizes’.”

Nascido no Qatar em 1964, Barghouti diz que o movimento BDS já está a preparar uma campanha de boicote à Eurovisão em Israel. Vários apelos nesse sentido já soaram, entretanto. “Acho que a Irlanda não devia enviar um representante”, defendeu Micheal Mac Donncha, presidente da Câmara Municipal de Dublin. “A terrível provação do povo palestiniano tem de ganhar destaque.” Na Islândia, mais de 26.700 pessoas — 8% da população total (330.000 habitantes) — já assinaram uma petição no mesmo sentido.

Em maio passado, a participação de Israel no evento de Lisboa já tinha sido objeto de uma batalha fora de palco. O movimento BDS saiu a público com a campanha “Zero pontos para a canção do apartheid israelita”, que teve o resultado inverso ao pretendido, já que “Toy” foi a mais votada.

Barghouti desvenda a razão do fracasso: “O Governo israelita e organizações lobistas investiram muitos recursos humanos e fundos recordes em publicidade numa campanha de propaganda em toda a Europa para ganhar votos para a sua canção”, diz. “A bem oleada propaganda israelita recorreu ao ‘pinkwashing’ — o uso cínico dos direitos dos LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transexuais] para encobrir a ocupação e o apartheid de Israel — e apelou aos movimentos feministas ao mesmo tempo que deixou de enfatizar Israel na mensagem.”

Uma das plataformas ao serviço dessa estratégia foi a aplicação Grindr, “a maior app mundial para pessoas gay, bi, trans e queer”, criada pelo israelita Joel Simkhai.

Após o apuramento de “Toy” para a final, mal abriam a aplicação, os utilizadores começaram a ser surpreendidos com uma fotografia de Netta e o apelo ao voto na canção nº 22.

(Foto: De troféu na mão, Netta Barzilai atua no Altice Arena, em Lisboa, a 12 de maio de 2018, como a grande vencedora da 63ª edição do Festival Eurovisão da Canção ANDRES PUTTING / EUROVISION)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 7 de setembro de 2018. Pode ser consultado aqui

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *