Jerusalém, cidade disputada também nas urnas

As eleições municipais em Israel ditaram a necessidade de uma segunda volta na Cidade Santa, que se realiza dentro de duas semanas

As eleições municipais israelitas, que se realizaram na terça-feira, ditaram a necessidade de um “tira teimas” na Cidade Santa, já que nenhum candidato obteve os 40% necessários para evitar uma segunda volta.

A corrida trava-se entre um candidato conservador — Moshe Lion, de 57 anos, ex-chefe de gabinete do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu — e um candidato secular — Ofer Berkovitch, de 35 anos. Este é fundador do movimento “Hitorerut in Jerusalem” (Acorda Jerusalém), que se apresenta como “o maior partido pluralista sionista de Jerusalém. Trabalhamos na cidade e no Governo para ajudar a população sionista de Jerusalém, ao secular à religiosa sionista, a prosperar”.

Com 96% dos votos contados, Lion — que contou com o apoio expresso dos partidos ultraortodoxos Shas e Degel HaTorah — tinha garantidos 33.3% (cerca de 80 mil votos). Berkovitch tinha recebido 28.8% (à volta de 70 mil).

Ambos voltam a disputar as preferências do eleitorado de Jerusalém a 13 de novembro. Berkovitch, que parte atrás, já pediu apoio aos candidatos derrotados na primeira volta. Entre eles está Ze’ev Elkin, o atual ministro dos Assuntos de Jerusalém que, apesar do apoio do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, não foi além do terceiro lugar (19,8%). Durante a campanha, Elkin apresentou um plano de construção de um novo muro visando isolar todos os bairros árabes de Jerusalém Oriental, num novo município.

Em quarto lugar, ficou o candidato ultraortodoxo Yossi Deitch, com 17% dos votos.

Uma mulher em Haifa, pela primeira vez

Segundo números do Ministério do Interior, votaram nestas eleições 3.637.247 israelitas, o que corresponde a 55,1% do eleitorado. Esta percentagem representa uma subida de 10,5% em relação à taxa de afluência nas últimas municipais, em 2013.

Para este aumento não foi alheio o facto de, pela primeira vez no país, ter sido declarado dia de folga, uma medida tomada para combater a indiferença com que a maioria dos israelitas encarava estas eleições.

Ao nível das principais cidades, a capital Telavive manteve a confiança em Ron Huldai, “mayor” desde 1998. Já Haifa optou pela mudança e, pela primeira vez, elegeu uma mulher, a trabalhista Einat Kalisch Rotem, que derrotou Yona Yahav, que liderava a Câmara desde 2003.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de outubro de 2018. Pode ser consultado aqui

Bolsonaro não é Trump. É pior?

Elegem a mentira como arma política e valorizam mais a perceção que têm do mundo do que os factos. Donald Trump e Jair Bolsonaro parecem alunos da mesma escola. O Expresso ouviu três estudiosos da governação do norte-americano e confrontou-os com o fenómeno Bolsonaro. Há mais diferenças do que semelhanças, concordam. Mas as frases de ambos são parecidas

Jair Bolsonaro, o lambe-botas de Donald Trump CARLOS LATUFF

Exploração do ódio e de notícias falsas (“fake news”) para fins eleitorais, narrativa anti-media e anti-sistema, discurso intolerante, populista e demagógico. As semelhanças entre Donald Trump e Jair Bolsonaro são óbvias, mas há mais diferenças do que, à primeira vista, se pode pensar.

“Trump é um extremista sonso: insulta, depois diz que não insultou e culpa os media por terem deturpado o que disse de forma inequívoca”, explica Germano Almeida, autor do livro “Isto não é bem um Presidente dos EUA” (Prime Books), que chegará às bancas na segunda semana de novembro. “Bolsonaro é pior: mais gráfico na violência, mais assumido na rejeição do sistema e das regras democráticas, mais demagógico no populismo, ainda mais primário no discurso.”

Recentemente, numa entrevista à BBC Brasil, Steve Bannon, que liderou a campanha de Donald Trump e foi o grande mentor do discurso nacionalista do magnata, não poupou nos adjetivos a Bolsonaro: “líder”, “brilhante”, “sofisticado”. “Muito parecido” com Trump.

Durante meses, no Brasil, especulou-se sobre se Bannon iria integrar a equipa de Bolsonaro. Para esse ruído muito contribuiu um tweet de um dos filhos do ex-militar, após um encontro em Nova Iorque. “Foi um prazer conhecer Steve Bannon, estratega na campanha presidencial de Donald Trump. Tivemos uma ótima conversa e partilhamos a mesma visão do mundo. Ele afirmou-se um entusiasta da campanha de Bolsonaro e ficamos em contacto para unir esforços, especialmente contra o marxismo cultural.”

É o próprio Bolsonaro quem diz ser “uma espécie de discípulo de Donald Trump”, recorda Diana Soller, autora do livro “O método no caos” (Dom Quixote), juntamente com Tiago Moreira de Sá. “Ele é o primeiro a dizer que está a seguir as pisadas de Trump para conquistar a presidência do Brasil. Diz, inclusive, que está disposto a mudar profundamente a política externa brasileira no sentido de uma aliança com os Estados Unidos.”

Aproveitando momentos de fragilidade social nos respetivos países, Trump e Bolsonaro, dois estranhos à política — o segundo um deputado federal desde 1991 sem trabalho digno de nota —, lançaram-se numa escalada do poder, “dizendo aos respetivos povos que vão fazer as mudanças por que eles verdadeiramente anseiam”, diz Diana Soller. “No fundo, dizem às pessoas aquilo que elas querem ouvir”, independentemente da honestidade com que o fazem.

“Trump pintou os EUA muito piores do que, na realidade, eles são. A América não precisa de ser ‘grande outra vez’ porque nunca deixou de o ser. Bolsonaro só precisou de surfar a onda do medo e da raiva, porque, na verdade, a coisa no Brasil ‘está mesmo preta’”, acrescenta Germano Almeida. “Trump assusta porque é Presidente da maior potência do mundo. Mas o sucesso de Bolsonaro é ainda mais assustador e difícil de compreender.”

Eduardo Paz Ferreira, autor do livro “Os anos Trump — O mundo em transe” (Gradiva), recentemente editado, não se alarga nas parecenças entre o chefe de Estado norte-americano e o candidato da extrema-direita brasileira. “Muitas táticas eleitorais, das ‘fake news’ à manipulação das redes sociais, foram comuns, mas eu não levaria muito mais longe as semelhanças.”

E explica porquê: “O Brasil [uma democracia desde 1985] é um país castigado pela mais profunda miséria, onde os coronéis foram sempre o rosto da democracia ou então os generais nos tempos da ditadura. Nos Estados Unidos [uma democracia desde a Declaração da Independência, em 1776] há uma tradição democrática, que passa por um período especialmente mau, mas que é difícil admitir que possa ser totalmente extinta.”

A consolidação dos valores democráticos num e noutro país pesam no perfil dos dois líderes. “Trump, apesar de ser um conservador de uma espécie populista muito diferente que responde a um eleitorado que costumava ter pouca expressão, não deixa de ser um democrata”, constata Diana Soller. “Bolsonaro, por várias vezes, disse sentir uma grande nostalgia da ditadura militar. Tendo em conta a tradição da América Latina, não será surpreendente se Bolsonaro tentar transformar as instituições brasileiras de forma a ter cada vez mais poder. E isto Trump não tem tentado fazer.”

“A vida dos ditadores está muito facilitada”, conclui Eduardo Paz Ferreira. “Veja-se o exemplo de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, e outros amigos do Presidente norte-americano”. O mais recente deles é o norte-coreano Kim Jong-un. Poderá Jair Bolsonaro ser o próximo?

Este domingo, Diogo Freitas do Amaral – fundador do CDS – classificou Jair Bolsonaro com “fascista”, numa entrevista ao Diário de Notícias e à TSF, depois de questionado sobre o que está a passar no Brasil. “Acho que é altura sem excessivo alarmismo, sem excessiva precipitação, de começar a chamar os bois pelos nomes: isto é fascismo. Não lhe chamem populismo, que até pode parecer uma coisa simpática. É extremismo, sim. Extremismo de direita, sim. Logo, é fascismo. São autoritários, elogiam a violência, condenam os direitos das mulheres…” E alertou para os três fatores que podem contribuir para o regresso das ditaduras: debilidade dos governos democráticos, crise económica e medo do comunismo.

“Tive uma conversa muito boa com o novo Presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, que ganhou a sua corrida com uma margem substancial. Concordamos que o Brasil e os Estados Unidos trabalharão proximamente juntos nas áreas do Comércio, Militar e todo o mais! Telefonema excelente, desejei-lhe parabéns!”

O QUE ELES DISSERAM DE…

Apesar das diferenças apontadas pelos especialistas, há frases dos dois candidatos que os aproximam nas opiniões e nas atitudes.

MULHERES

Trump — “Agarra-las pela vagina”, disse quando lhe perguntaram como gosta de lidar com mulheres bonitas.

Bolsonaro — “Não vou estuprar você porque você não merece”, afirmou na Câmara dos Deputados à ex-ministra Maria do Rosário.

IMIGRANTES

Trump — “Por que todas essas pessoas desses países merdosos vêm parar aqui?”

Bolsonaro — “A escória do mundo tá chegando aqui no nosso Brasil como se nós já não tivéssemos problemas demais para resolver.”

ARMAS

Trump — “Não quero armar todos os professores. Quem nunca pegou numa arma não o vai fazer. Podem ser 10 ou 20%.”

Bolsonaro — “Todo o vagabundo tá armado! Só falta o cidadão de bem!”

IMPRENSA

Trump  “Vocês são fake news!”, dirigindo-se a um repórter da CNN.

Bolsonaro  “A Folha de S. Paulo é o maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do Governo.”

Artigo publicado no Expresso Online, a 28 de outubro de 2018. Pode ser consultado aqui

Cortar com a Rússia para amarrar a China

Donald Trump denunciou mais um tratado, este sobre armas nucleares assinado com a União Soviética. O Presidente dos EUA está aberto à renegociação, mas quer a China dentro

Donald Trump e Vladimir Putin têm encontro marcado a 11 de novembro, em Paris. À margem das comemorações do 100º aniversário do fim da I Guerra Mundial, os Presidentes dos EUA e da Rússia irão abordar a última rutura decidida pelo primeiro, que alvejou o segundo como um míssil teleguiado: o rasgar do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio (INF, sigla inglesa), assinado por Ronald Reagan (EUA) e Mikhail Gorbatchov (URSS) na reta final da Guerra Fria.

“Não estou certa de que seja uma rutura. Trump quer negociar com a Rússia um novo acordo. Não devemos ver este rasgar de tratado como um fim em si, mas o princípio de outra coisa”, comenta ao Expresso a investigadora Diana Soller, do Instituto Português de Relações Internacionais. “O Tratado é muito menos abrangente do que possamos pensar, só contempla armas nucleares de alcance intermédio. Mas Trump conseguiu o que queria: dar um passo simbólico relativamente à Rússia numa tentativa de desfazer tratados que considera nocivos para os EUA.”

A desconfiança de Washington em relação ao incumprimento por parte de Moscovo não resulta de descobertas recentes. Em fevereiro, o documento “Nuclear Posture Review”, do Departamento de Defesa, já alertava para a “decisão da Rússia de violar o Tratado INF”, através da “produção, posse e teste de um míssil de cruzeiro lançado do solo” (ver infografia). Trump explodiu agora. Porquê?

Ameaças e incentivos

“Trump quer um novo tratado não só com a Rússia, mas que inclua a China”, que considera ser o principal rival dos EUA, descodifica Soller. Por um lado, o americano quer conter a Rússia do ponto de vista nuclear, por outro considera que não faz sentido, no sistema internacional de hoje, ter um tratado a dois quando o futuro é a três: EUA, Rússia e China são os atores do futuro.

Pequim reagiu através de Hua Chunying, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que defendeu que a retirada americana do INF “terá um efeito multilateral negativo”. Caberá a Trump “atrair a China com ameaças e incentivos”, diz a investigadora, para que Pequim saiba o que esperar se decidir ficar fora ou alinhar num novo tratado.

“As suspeitas levantadas por Trump sobre um alegado desrespeito de Moscovo não serão totalmente infundadas, mas o modo como o anúncio foi feito foi tudo menos tranquilizador”, diz ao Expresso o analista de política americana Germano Almeida. “Gorbatchov chamou-lhe ‘um erro que revela falta de sabedoria’. Mas depois do modo submisso e, para muitos, humilhante como Trump se apresentou ao lado de Putin em Helsínquia, esta demarcação terá sido estratégica.”

A 16 de julho, na capital finlandesa, a cimeira entre ambos causou desconforto nos EUA por Trump ter posto em causa a competência dos seus próprios serviços secretos na investigação à interferência russa nas eleições de 2016. Mas se dali Trump saiu diminuído, em Paris será ele a bater as cartas.

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

TRUMP E A ARTE DE RASGAR TRATADOS

Para o 45º Presidente, os Estados Unidos andam a ser enganados há décadas. Acordos que não beneficiem o país são para romper

Donald Trump não vai a meio do mandato e já atirou para o lixo cinco tratados internacionais. “Ele não se revê na ordem liberal que promove grandes acordos e se funda em organizações multinacionais como a ONU e a NATO”, diz o analista Germano Almeida. “Vê as relações internacionais como um jogo de soma zero em que para os EUA saírem a ganhar outros têm de ficar a perder.”

O mote foi dado logo ao terceiro dia de presidência, 23 de janeiro de 2017, quando os EUA saíram da Parceria Transpacífica. O projeto seguiu sem os americanos, mas com 11 países a bordo. “Em vez de colocar os EUA como jogador crucial na região, abriu via verde para acelerar o crescimento da China”, comenta Almeida. “Trump teve vistas muito curtas”, complementa a investigadora Diana Soller. “Este era também um tratado de segurança que isolava a China.”

Mentalidade nova e coerente

Outro acordo rompido este ano foi o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, da era Bill Clinton. México e Canadá aceitaram uma nova versão, nascendo uma espécie de NAFTA 2.0. “Terá sido a jogada mais bem conseguida de Trump dentro do seu ‘mantra’ de que é preciso renegociar os ‘maus acordos’ feitos pelos antecessores democratas Obama e Clinton”, diz Almeida.

Obcecado por destruir o legado de Obama, Trump reverteu duas grandes conquistas do 44º Presidente. A 1 de julho de 2017, saiu do Acordo de Paris relativo às alterações climática. “Terá sido o gesto mais perturbador e potencialmente danoso para o prestígio da América no mundo”, diz o analista. A 8 de maio deste ano, retirou os EUA do acordo sobre o programa nuclear do Irão. “Foi o ato mais definidor desta Administração. A partir de agora, como acreditar naquilo em que os governos americanos assinam?”

Compreender Trump implica aceitar que na Casa Branca há hoje uma mentalidade assente em duas coerências. Soller descreve-as: “Uma: qualquer acordo que não esteja a beneficiar os EUA está sujeito a ser rasgado. Outra: a unidade mais importante da política internacional voltou a ser o Estado e não as organizações ou o multilateralismo”.

(Foto: Mikhail Gorbachov (à esquerda) e Ronald Reagan, chefes de Estado da União Soviética e dos Estados Unidos, assinam o Tratado INF, a 8 de dezembro de 1987, na East Room da Casa Branca, em Washington D.C. WHITE HOUSE PHOTO OFFICE)

Artigo publicado no Expresso, a 27 de outubro de 2018 e republicado parcialmente no “Expresso Online” no mesmo dia. Pode ser consultado aqui

Um protetorado que custou sete anos de guerra

Avizinha-se o fim do conflito na Síria. Mas a presença militar da Rússia e do Irão está para durar

O fim da guerra na Síria está à distância de uma batalha. Idlib, uma província no noroeste, é o último quinhão de terra em posse de grupos rebeldes, alguns de orientação secular, a maioria islamitas. Por estes dias vive-se uma trégua na área, ditada por um acordo assinado a 17 de setembro entre a Rússia (o principal apoio do regime sírio) e a Turquia (o país vizinho mais exposto ao conflito).

O pacto prevê a criação de uma zona tampão de 15 a 20 quilómetros entre Lataquia e Alepo, províncias que ladeiam Idlib. Se tudo correr como planeado, essa zona desmilitarizada, desenhada para afastar forças governamentais e rebeldes, ficará estabelecida até à próxima segunda-feira.

Se, num primeiro momento, esta pausa nos combates teve o condão de conter uma ofensiva militar sírio-russa que parecia iminente sobre o último reduto rebelde, falta perceber se o silêncio das armas é o princípio do fim do conflito ou a calmaria que antecede a tempestade.

“Em Idlib alcançou-se uma trégua precária para evitar uma crise humanitária de consequências incalculáveis, já que nessa província vivem dois milhões e meio de pessoas”, comenta ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, professor de Estudos Árabes e Islâmicos na Universidade de Alicante (Espanha). “Mas nas próximas semanas poderá desencadear-se uma ofensiva militar para tentar quebrar a resistência.” Em todo o caso, “parece evidente que se está a entrar na última fase do conflito sírio”.

Bashar al-Assad controla atualmente dois terços do território da Síria e governa três quartos da população. Além de Idlib, também a área a norte do rio Eufrates — cerca de um quarto do país — escapa ao seu controlo. A zona está em paz, mas nas mãos de forças curdas, as chamadas Unidades de Proteção Popular (YPG), que contam com o apoio dos Estados Unidos. Os norte-americanos têm ali pelo menos 2000 efetivos.

A incógnita curda

Terminada a guerra, o futuro desta região será uma grande incógnita. “As milícias curdas aproveitaram a luta contra o autodenominado Estado Islâmico (Daesh) para estenderem a sua influência para lá das zonas de maioria curda”, recorda o académico espanhol. “Chegaram a controlar a cidade árabe de Raqqa [os curdos não são árabes], cujos arredores acumulam uma grande riqueza em hidrocarbonetos.” Raqqa foi, durante anos, a capital do ‘califado’ decretado pelo temido e impiedoso Daesh em vastas áreas da Síria e do Iraque.

À semelhança do que aconteceu no Iraque, onde o fim da era de Saddam Hussein significou para a minoria curda mais autonomia do que aquela que tinha conquistado após a Guerra do Golfo (1990-91), os curdos sírios vão querer transformar as conquistas da guerra em ganhos políticos.

“O Partido da União Democrática curdo [PYD] vai tentar aproveitar esta posição de força sobre o terreno para arrancar concessões ao regime e conseguir que este aceite o estabelecimento de um Estado federal, como aconteceu no Iraque”, diz Álvarez-Ossorio. “Julgo que o mais provável é que Assad e os curdos não se enfrentem diretamente e alcancem uma solução negociada que obrigue o regime a conceder ampla autonomia aos curdos”, prossegue o docente.

A evolução da questão curda fará com que a Turquia — que combate, dentro de portas, um projeto separatista curdo — continue a seguir a situação na Síria com rédea curta. Neste conflito, “a Turquia apostou no campo perdedor e dificilmente manterá o enclave que controla, juntamente com o Exército Livre Sírio, a norte de Alepo. A intervenção militar turca justificou-se pela necessidade de evitar que as milícias curdas, que Ancara acusa de darem apoio ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão [PKK, turco], controlassem a fronteira. Mal o regime sírio seja capaz de dominar a fronteira, a Turquia poderá retirar os efetivos mediante garantias de segurança”.

Mas se a presença turca na Síria tem os dias contados, a Rússia e o Irão estão no país para durar. “A sua saída colocaria Assad numa situação vulnerável”, prevê Álvarez-Ossorio, autor do livro “Siria — Revolución, sectarismo y yihad” (publicado em 2016 e não traduzido em português). Acresce que o exército sírio está esgotado, “numa situação de extrema debilidade, pelo que continuará a precisar, durante muito tempo, do apoio das milícias xiitas enviadas pelo Irão [o Hezbollah libanês e grupos iraquianos, afegãos e paquistaneses] e também da polícia militar russa”.

A sombra da Líbia

Esta necessidade de uma ajuda militar externa duradoura e, sobretudo, a proliferação de grupos armados que agem em obediência à agenda de quem os financia — dos Estados Unidos aos Países do Golfo — obriga a uma comparação com a Líbia, onde, após o desaparecimento de Muammar Kadhafi (em 2011, ano em que deflagrou a guerra síria), a lei que se impôs no país foi a das milícias. Esta semana Ghassan Salame, chefe da missão da ONU na Líbia (UNSMIL), disse que ainda há 200 mil milicianos em ação no país. “Recebem salário do Estado, mas só recebem ordens de senhores da guerra”, disse.

“São casos muito diferentes”, explica Álvarez-Ossorio. “Na Líbia não existe um Estado central capaz de impor a sua autoridade sobre a totalidade do território, que está em mãos de diferentes milícias que controlam os poços de petróleo, o comércio e as rotas migratórias. No caso da Síria, o regime desarmou todas as milícias rebeldes à medida que restabelecia a sua autoridade sobre as partes de território que escapou ao seu controlo durante o conflito.”

Descida aos infernos

A guerra que se aproxima do fim espalhou a morte e condenou milhões de sobreviventes a um êxodo desesperado, internamente e através da fronteira. Arrasou o país e descaracterizou-o: perseguida pelos grupos radicais, a minoria cristã, por exemplo, passou de 10% para 3% da população. Em termos políticos, tornou subserviente uma entidade que já foi o centro do mundo árabe. Entre os anos 661 e 750, Damasco foi a capital do califado omíada, o segundo de quatro califados islâmicos estabelecidos após a morte de Maomé, que ia da Península Ibérica ao Afeganistão.

“A Síria de Assad converteu-se num protetorado russo-iraniano”, conclui Ignacio Álvarez-Ossorio. “Além das milícias xiitas comandadas pelo Irão, a Rússia aproveitou a conjuntura para ampliar a sua base naval de Tartus e construir a base aérea de Al-Hamaymin, que controlará durante os próximos 49 anos.”

REPRIMIU E RESISTIU. SERÁ JULGADO?

Bashar al-Assad recorreu a métodos brutais para reprimir o povo. Rússia e China protegem-no da perseguição da justiça

Do rol dos países mais fortemente afetados pelo movimento de contestação popular conhecido como Primavera Árabe, a Síria foi o único a manter o líder no poder. Ben Ali (Tunísia) desertou, Hosni Mubarak (Egito) foi afastado, Muammar Kadhafi (Líbia) foi morto na rua e Ali Abdullah Saleh (Iémen) saiu pelo próprio pé. Na Síria, Bashar al-Assad escapou inclusive à fúria de Donald Trump que, segundo “Medo: Trump na Casa Branca”, de Bob Woodward (sai em novembro na Dom Quixote), terá defendido o seu assassínio, porventura para marcar a diferença em relação a Barack Obama, que poupou Assad apesar de este ter pisado a “linha vermelha” (o uso de armas químicas), indiciando assim que talvez fosse “um mal menor”.

“Durante todos estes anos de guerra, praticaram-se muitos crimes de guerra e crimes contra a Humanidade por parte dos vários atores: assassínios, deportações, torturas, violações, desaparições, bombardeamentos sobre civis, destruição de hospitais, utilização de armas químicas…”, recorda Ignacio Álvarez-Ossorio, da Universidade de Alicante. “Segundo diferentes estimativas, o regime sírio e seus aliados são responsáveis por 90% das vítimas civis, repartindo-se as restantes entre o Daesh e os grupos rebeldes.”

90% das vítimas civis da guerra da Síria são atribuídas às forças afetas ao regime de Bashar al-Assad e seus aliados. Aos jiadistas do Daesh e demais grupos rebeldes são imputadas as restantes

Para Assad — que castigou o seu povo sitiando povoações, cortando abastecimentos, recorrendo a uma estratégia de terra queimada nas zonas rebeldes e a armas devastadoras para reprimir o mínimo resquício de contestação, como as bombas de barril (compostas por fragmentos metálicos e explosivos TNT) —, foi crucial a entrada em cena da Rússia. Os caças russos começaram a bombardear a 30 de setembro de 2015, quando Damasco acumulava perdas significativas.

A proteção russa à Síria estende-se à ONU. “Em 2016, a Assembleia Geral aprovou a criação de um mecanismo internacional para julgar os responsáveis pelos crimes desde março de 2011”, recorda o professor. “Não avançou grande coisa por falta de colaboração das autoridades e pelas reticências colocadas por Rússia e China [com poder de veto no Conselho de Segurança], temendo que o precedente se voltasse contra elas próprias no futuro.”

Pária no Ocidente, Assad terá escancaradas as portas de Moscovo, Teerão e Pequim.

JOGO REGIONAL

IRÃO — A sobrevivência de Assad (alauita, xiita) é quase uma questão de segurança nacional. Como o Hezbollah no Líbano, Assad garante a extensão da influência iraniana na região

ARÁBIA SAUDITA — Fomentou o wahabismo (sunismo conservador) apoiando grupos rebeldes. Derrotar Assad seria ganhar terreno ao arquirrival xiita Irão

TURQUIA — Com 910 quilómetros de fronteira com a Síria, está exposta ao conflito. Quer evitar a autonomia curda

QATAR — Contribuiu para fortalecer a frente extremista ao financiar grupos salafitas, como o Exército do Islão

ISRAEL — Enfrentou diretamente a Síria pela última vez em 1973. As manobras do Hezbollah e do Irão junto à fronteira obrigam a um alerta permanente

(Imagem: NICOLAS RAYMOND / FLICKR) 

Artigo publicado no Expresso, a 13 de outubro de 2018 e republicado parcialmente no “Expresso Online”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui

Coreia do Norte terá entre 20 e 60 bombas nucleares

A estimativa foi avançada por um ministro sul-coreano, durante um debate parlamentar. Seul diz, porém, não reconhecer a Coreia do Norte como um Estado nuclear, pelo que o processo de desnuclearização da Península é para continuar

Pela primeira vez, a Coreia do Sul concretizou, em público, a possível dimensão do arsenal nuclear da Coreia do Norte. Na segunda-feira, durante um debate parlamentar, o ministro sul-coreano para a Unificação afirmou que Pyongyang possuirá entre 20 e 60 bombas.

Cho Myoung-gyon atribuiu a origem da informação aos serviços secretos da Coreia do Sul. A revelação poderá ter sido acidental, já que, esta terça-feira, Seul apressou-se a esclarecer que as palavras do ministro não significam que a Coreia do Sul reconheça e aceite a Coreia do Norte como um Estado nuclear.

A desnuclearização da Península Coreana tem sido o principal dossiê em cima da mesa de conversações entre as duas Coreias (que já realizaram três cimeiras presidenciais este ano) e entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos (que estão a preparar a segunda cimeira entre Kim Jong-un e Donald Trump).

EUA e Rússia têm mais de 1000

Se, ao longo dos anos, o arsenal nuclear norte-coreano tem sido alvo de grande secretismo, dado o isolamento do país, o mesmo se passa relativamente à quantidade de armas nucleares em posse das restantes potências nucleares, de que só existem estimativas.

Segundo a Federação dos Cientistas Americanos (FAS), numa informação atualizada em junho deste ano, os Estados Unidos terão até 1750 bombas e a Rússia até 1600. Segue-se, a grande distância, a França com um máximo de 300, a China com 280 e o Reino Unido com 280.

No capítulo das potências nucleares que não subscreveram o Tratado de Não Proliferação Nuclear (em vigor desde 1970), o Paquistão terá até 150 ogivas nucleares, a Índia 140 e Israel 80. Em relação à Coreia do Norte, a FAS atribui-lhe 15 bombas, aquém do número avançado pelo Governo sul-coreano.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de outubro de 2018. Pode ser consultado aqui