O assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi abalou a aliança de décadas entre Estados Unidos e Arábia Saudita, mas não ao ponto de a ferir de morte. Petróleo, armamento e inimigos comuns contribuem para a solidez de uma relação especial em que os dois países têm muito a perder um sem o outro
Na vertigem com que rasga tratados internacionais, há um acordo, porém, que Donald Trump não se atreve a questionar. Data de 14 de fevereiro de 1945 e foi celebrado a bordo do USS Murphy, atracado no Grande Lago Amargo, no Egito. A caminho de casa — oriundo da Conferência de Ialta, onde se reuniu com o britânico Winston Churchill e o soviético José Estaline —, o Presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt recebeu, no contratorpedeiro, Abdulaziz Ibn Saud, pai de Salman, o atual monarca da Arábia Saudita, e avô de Mohammad bin Salman (MBS), o príncipe herdeiro que hoje surge como o líder ‘de facto’ do país.
Na década anterior a este encontro histórico, tinha sido descoberto petróleo na Arábia Saudita. Em 1945, o reino vivia sobre um autêntico mar de “ouro negro” e empresas americanas controlavam a Arabian Oil Company (Aramco), a petrolífera saudita criada em 1933. Roosevelt e Saud constataram essa realidade e firmaram um acordo para a vida: os sauditas continuariam a produzir petróleo e os norte-americanos jamais deixariam de o comprar. Com o tempo — e sucessivas crises e conflitos no Médio Oriente —, esta aliança passou a incluir uma dimensão militar, que transformou a Arábia Saudita num cliente vip do mercado de armas dos EUA.
Mais de 70 anos depois, a aliança Washington-Riade está posta à prova por força do “caso Khashoggi”. O príncipe herdeiro saudita é suspeito de ter dado pessoalmente a ordem para a execução do jornalista, crítico do regime de Riade, no interior do consulado da Arábia Saudita em Istambul (Turquia). Em Washington, o Congresso e a Casa Branca já defenderam medidas penalizadoras se ficar provado o seu envolvimento no crime.
Esta sexta-feira, MBS e Donald Trump estão na Argentina para participar na cimeira do G20, que termina sábado. Washington já fez saber que não está previsto um “encontro formal” entre os dois líderes, mas quer a História quer palavras recentes do Presidente dos EUA mostram que jamais este caso levará a uma rutura entre os dois países.
Num comunicado publicado no sítio da Casa Branca, a 20 de novembro, Trump defendeu acerrimamente a aliança com os sauditas, recordando os lucros que resultaram da sua visita ao país, em maio de 2017. “O reino concordou em gastar e investir 450 mil milhões de dólares (398 mil milhões de euros) nos Estados Unidos. É uma quantia recorde. Vai criar centenas de milhar de empregos, um desenvolvimento económico tremendo, e muita riqueza adicional para os EUA. Desses 450 mil milhões de dólares, 110 mil milhões de dólares (97 mil milhões de euros) serão gastos na compra de equipamento militar à Boeing, Lockheed Martin, Raytheon e muitas outras grandes empresas americanas da área da Defesa. Se nós estupidamente cancelarmos esses contratos, a Rússia e a China seriam os enormes beneficiários — e ficariam muito felizes em ficar com todo esse novo negócio. Seria, para eles, um presente maravilhoso enviado diretamente dos Estados Unidos!”
Ainda que analistas recordem que as verbas chorudas de que Trump fala não decorram de contratos efetivamente já assinados, as estatísticas dizem que os sauditas são, de longe, o maior comprador de armamento americano. Segundo um relatório do Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz de Estocolmo (SIPRI), entre 2013 e 2017, a Arábia Saudita comprou 18% (quase um quinto) de todo o armamento vendido pelos Estados Unidos, que é o maior exportador mundial de armas.
Para Riade, os equipamentos militares americanos são fundamentais à segurança do reino e aos seus esforços de contenção do arquirrival Irão — em alta na Síria, no Iraque, no Líbano e no Iémen. Para Washington, os milhões sauditas injetam saúde na sua indústria de armamento.
A atestar o estatuto especial de que os sauditas beneficiam, o Pentágono tem, a cerca de 20 quilómetros para sudeste de Riade, uma missão de treino militar (USMTM), liderada por um general de duas estrelas, que funciona como canal de comunicação entre os fabricantes de armamento e a hierarquia militar saudita.
A missão está instalada na “Eskan Village”, uma área habitacional construída em 1983 para albergar tribos beduínas, que recusaram mudar para ali. O espaço manteve-se desocupado até agosto de 1990, quando estalou a Guerra do Golfo e as tropas norte-americanas destacadas para participar na Operação Tempestade do Deserto foram ali instaladas, para ajudar a conter os ímpetos do Iraque de Saddam Hussein sobre as jazidas do Kuwait.
Hoje, o país que tanto norte-americanos como sauditas querem conter é o Irão. A 5 de novembro, os EUA repuseram as sanções à indústria petrolífera iraniana que tinham sido suspensas após a assinatura do acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão, em maio passado. Com menos petróleo iraniano a jorrar no mercado internacional, a Arábia Saudita é chamada a garantir a sua estabilidade.
A aliança EUA-Arábia Saudita aproxima o país que mais petróleo consome à face da Terra e aquele que mais exporta. Por dia, os norte-americanos importam 800 mil barris de crude dos sauditas, o que corresponde a 5% do total das necessidades norte-americanas. Até um passado recente, os EUA compravam diariamente mais 600 mil barris, para além dos 800 mil. O corte justifica-se com a chamada ‘revolução do xisto’, que levou a um significativo aumento da produção energética norte-americana e à queda do preço do petróleo no mercado internacional. Nada que abalasse a relação.
A interdependência entre EUA e Arábia Saudita estende-se também ao sector financeiro. A Arábia Saudita ocupa o décimo lugar no ranking dos detentores estrangeiros de dívida americana, com 166,8 mil milhões de dólares em obrigações do Tesouro. Em Silicon Valley, “unicórnios” como a Uber ou a Tesla — “unicórnios” são startups tecnológicas avaliadas em mais de mil milhões de dólares — beneficiam, direta ou indiretamente, de investimentos provenientes do Fundo de Investimento Público Saudita.
No discurso de Washington, a Arábia Saudita é também um aliado precioso no combate ao terrorismo. No comunicado de 20 de novembro, em que coloca os EUA incondicionalmente ao lado da Arábia Saudita, Donald Trump inicia a mensagem com um forte ataque ao Irão. “Os iranianos mataram muitos americanos e outros inocentes por todo o Médio Oriente. O Irão declara abertamente , e a plenos pulmões, ‘Morte à América!’ e ‘Morte a Israel!’ O Irão é considerado ‘o principal patrocinador mundial do terrorismo’.”
O outro lado da moeda revela que 15 dos 19 terroristas que sequestraram os quatro aviões que realizaram o 11 de Setembro eram de nacionalidade saudita, como o eram cerca de 140 dos 790 homens que passaram pelos calabouços de Guantánamo — apenas três eram iranianos. No 11 de Setembro, foram mortas 2977 pessoas, a esmagadora maioria cidadãos norte-americanos. A relação Washington-Riade sobreviveu, e continuou especial como sempre.
(IMAGEM Bandeiras dos Estados Unidos e da Arábia Saudita EMBAIXADA E CONSULADOS DOS EUA NA ARÁBIA SAUDITA)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de novembro de 2018. Pode ser consultado aqui











