São “a sombra” do líder da Coreia do Norte em cada visita ao terreno. Anotam todas as suas observações e tratam que depois sejam cumpridas. Esta é uma prática governativa da dinastia Kim, no poder há sete décadas
Sempre que viaja pelo país, Kim Jong-un leva no seu rasto ‘um pequeno exército’ de homens munidos de um pequeno bloco de apontamentos numa das mãos e uma caneta na outra. Poderiam até passar por jornalistas não fosse o caso de muitos deles envergarem o uniforme militar.
Trata-se de membros do Partido dos Trabalhadores da Coreia — o único permitido na República Popular Democrática da Coreia — e também de militares. “Anotam o que o líder diz e depois asseguram que as suas instruções são seguidas e concretizadas”, explica ao Expresso Steve Tsang, diretor do Instituto da China da Escola de Estudos Africanos e Orientais (SOAS), da Universidade de Londres.
Esta prática verifica-se em toda e qualquer visita do líder norte-coreano ao terreno, sejam instalações militares, propriedades agrícolas, escolas, fábricas ou locais de lazer. Em cada sítio, Kim Jong-un “vai dando alguns conselhos sobre como as coisas devem ser feitas”, diz ao Expresso James Grayson, professor jubilado da Universidade de Sheffield especialista em assuntos coreanos. Os “apparatchiks” apontam tudo para que a vontade do líder não fique por cumprir.
Este tipo de aparições públicas enquadra-se na chamada política de Orientação no Local, explica James Grayson, e é um elemento-chave da propaganda norte-coreana e do culto da personalidade incentivados pela dinastia Kim. “Esta é uma prática característica da família que tem governado a Coreia do Norte.”
“Isto não começou com Kim Jong-un”, corrobora Steve Tsang. “Foi iniciada quando estava no poder o seu avô”, Kim Il-sung, o fundador da Coreia do Norte, em 1948. A seguir, foi seguida pelo seu filho Kim Jong-il (1994-2011) e agora pelo neto, que lidera o país há mais de sete anos.
Nas visitas ao terreno, Kim Jong-un faz-se acompanhar pelos órgãos de informação oficiais — nomeadamente pela agência noticiosa KCNA, que disponibiliza as fotos que acompanham este artigo (muitas delas sem referência a data ou local) —, canais transmissores por excelência da sua ‘liderança benevolente’.
Num misto de preocupação, conhecimento e grande sabedoria — já que faz reparos sobre tudo, desde equipamentos militares a espigas de milho —, o líder surge aos olhos dos norte-coreanos como alguém verdadeiramente empenhado no seu bem estar.
Os diligentes funcionários surgem convenientemente enquadrados nas imagens captadas, provando que o Estado — e a ideologia Juche (autossuficiência) — funciona. Próximos do líder, dispensam-lhe toda a atenção e acompanham-no no seu estado de espírito. Não raras vezes, riem-se com ele e chegam a pousar os blocos de notas para o aplaudir.
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 30 de janeiro de 2019 e republicado no “Expresso Online”, a 3 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui e aqui
O distrito de Aveiro está a ser o porto de abrigo de muitos descendentes de ‘filhos de terra’ que, há décadas, tinham emigrado para a Venezuela. Encontrar trabalho não tem sido problemático, complicado é tratar das burocracias
Fogem da Venezuela em condições dramáticas, mas, chegados a Estarreja, no distrito de Aveiro, não há drama que impeça o começo de uma nova vida. “Estarreja não sentiu alarme social” após o êxodo de luso-venezuelanos para o concelho. “A sociedade está a tomar conta dessas situações. A Câmara Municipal foi solicitada poucas vezes”, diz ao Expresso Diamantino Sabina, presidente do município.
Terra de emigrantes — em especial para a Venezuela —, Estarreja vê agora regressar filhos e netos de quem tinha partido, no século passado. Dentro de “duas, três semanas”, começa a funcionar um Gabinete de Apoio ao Emigrante (GAE), o 146º em todo o país. “Já temos local, estamos à espera que os nossos funcionários recebam formação”, acrescenta.
A Câmara estima que, no primeiro semestre de 2019, possam chegar ao concelho à volta de 3000 luso-venezuelanos. O GAE será precioso sobretudo para ajudar com as burocracias. “A maior parte das pessoas não estão reconhecidas como cidadãos. O processo no SEF está a ser muito demorado. E não tendo a sua situação regularizada, não podem usufruir de ajuda social”, diz o autarca. “Neste momento, não são peso social algum. Pelo contrário, são força produtiva. Venham eles!”
Emprego para todos
Alguns dos que chegam têm família na terra, o que facilita a integração. Outros não têm essa retaguarda, mas trazem referências de que Estarreja está de portas abertas para recebe-los e orienta-los. “Se chegam vindos de outro país europeu, por exemplo — porque nem sempre conseguem voos diretos para Portugal —, o passaporte não é carimbado. Têm então três dias para faze-lo no SEF, mas praticamente ninguém sabe disso”, diz Crispim Rodrigues, de 67 anos, um antigo emigrante na Venezuela.
Em Estarreja, é ‘à porta’ de Crispim que muitos recém-chegados batem. É ele quem lidera o Departamento de Relações Exteriores da SEMA, uma associação empresarial com associados em cinco concelhos de Aveiro — Estarreja, Murtosa, Albergaria, Sever do Vouga e Ovar —, o que lhe permite conhecer “meio mundo” num universo de mais de 3000 empresas. Sensível ao desespero de quem chega, pela sua própria história pessoal — trabalhou na Venezuela quase 40 anos —, Crispim vai arranjando emprego para todos.
O município, com 27 mil habitantes, não tem estatísticas sobre a quantidade de luso-venezuelanos que já ali procurou refúgio, sobretudo desde que, em Caracas, o inquilino do Palácio de Miraflores é Nicolás Maduro. Crispim tem uma contabilidade parcial. “Em 2018, atendemos na SEMA 547 adultos vindos da Venezuela, uma média de 5-6 por dia”, o que, somados cônjuges e uma média de dois filhos, traduz-se em cerca de 1500 pessoas.
Um médico a acartar caixas de fruta
A rápida integração no mercado de trabalho é facilitada pela existência de dois parques industriais em crescimento: a Quimiparque e o Eco Parque. Mas a oferta nem sempre corresponde à formação e aspiração de quem procura. Longe da situação ideal, há atualmente um ortopedista a acartar caixotes de fruta num armazém, uma pediatra a atender à mesa numa padaria, uma arquiteta a trabalhar num supermercado…
“Para poderem exercer as suas profissões, têm de ter equivalência, e a maior parte não consegue a apostila [formalidade necessária à autenticação de documentos]. Na Venezuela, não o estão a fazer”, diz Crispim Rodrigues.
O seu sotaque “espanholado” não ilude quase 40 anos de vida e trabalho em solo venezuelano. Os três irmãos e respetiva descendência continuam por lá. Crispim regressou com a mulher e dois filhos em 1993, ainda antes da subida ao poder de Hugo Chávez. “No tempo do Chávez, quem regressava mais era a primeira e segunda gerações de emigrantes. Vendiam os negócios e vinham passar a velhice em Portugal. A fase mais complicada começou com Nicolás Maduro.”
“Mas os venezuelanos são gente de trabalho”, diz. “De todos os que já atendi, nenhum me pediu dinheiro. Pedem ajuda para tratar da documentação e para lhes arranjar trabalho.” Daí para a frente, arregaçam as mangas e vão à luta.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de janeiro de 2019. Pode ser consultado aqui
O Presidente do Brasil debutou na cena internacional com um discurso curto e generalista no Fórum Económico Mundial, em Davos. A braços com problemas internos, Trump, May e Macron faltaram à ‘cimeira dos poderosos’. Mas sobretudo o norte-americano não foi esquecido…
É um clássico a cada ano que passa. Na segunda metade de janeiro, políticos, empresários, financeiros, cientistas e celebridades sobem aos Alpes suíços, carregados de neve, para participarem no Fórum Económico Mundial. No conforto da estância de esqui de Davos, “os multimilionários dizem aos milionários como a classe média se sente”, assim qualificou o evento, em 2016, um antigo participante, Jamie Dimon, presidente executivo do banco norte-americano JP Morgan Chase.
O Fórum de Davos, que este ano decorre entre 22 e 25 deste mês, serve também para dar palco a novos rostos da política internacional. O discurso do recém-empossado Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, era por essa razão aguardado com expectativa. Mas quem o ouviu ficou desiludido. “Flop de Bolsonaro em Davos, incapaz de responder em concreto às perguntas de Klaus Schwab. 15 minutos de generalidades”, tweetou Sylvie Kauffmann, diretora editorial do jornal francês “Le Monde”. Klaus Schwab é o economista alemão que fundou e preside ao evento.
Na mesma linha crítica, Heather Long, do jornal norte-americano “The Washington Post” ,escreveu na mesma rede social: “E… que fiasco. O Presidente brasileiro Bolsonaro falou menos de 15 minutos. Grande falhanço. Ele tinha o mundo todo a vê-lo e a sua melhor frase foi dizer às pessoas que vão de férias ao Brasil. Bolsonaro é apelidado de ‘Trump sul-americano’ mas pareceu morno”.
No Brasil, porém, as palavras de Bolsonaro que mais impacto tiveram foram ditas fora de palco. Esta quarta-feira, em entrevista à agência Bloomberg, o militar na reserva disse que atitude terá se ficar provado que o seu filho, o senador eleito Flávio Bolsonaro, errou: “eu lamento como pai, mas ele terá de pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar”. Flávio é implicado num caso de avultadas transações financeiras que envolvem um assessor. Segundo a Bloomberg, essa investigação corre o risco de “minar a agenda anticorrupção do Presidente”.
Os holofotes visaram Bolsonaro com maior intensidade dada a ausência de alguns líderes de peso com presença anunciada. O Presidente francês, Emmanuel Macron, cancelou a sua participação alegando agenda cheia, sobrecarregada com negociações decorrentes dos protestos dos “coletes amarelos”. Às voltas com o Brexit, também Theresa May, a primeira-ministra britânica, faltou ao compromisso. Em Davos, um antecessor, Tony Blair, defendeu a reversibilidade do processo de saída do Reino Unido da União Europeia.
A grande ausência foi Donald Trump, também ele com graves problemas domésticos. “Devido à intransigência dos democratas sobre a segurança na fronteira e a grande importância da segurança para a nossa nação, cancelo, com todo o respeito, a minha importante viagem a Davos”, anunciou o Presidente dos Estados Unidos, no Twitter, a 10 de janeiro. Fez esta terça-feira um mês que o Governo norte-americano está parcialmente encerrado (“shutdown”), com mais de 800 mil funcionários públicos parados em casa, sem trabalhar nem receber, por força de um braço de ferro entre o Presidente e a maioria, democrata, no Congresso sobre ao financiamento do muro na fronteira com o México.
Retido em Washington DC, Trump não foi esquecido em Davos, ainda que não de uma forma declarada. No seu discurso, esta quarta-feira, a chanceler alemã, Angela Merkel, elogiou o multilateralismo e o fortalecimento da ordem internacional. Já o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, realçou os benefícios do comércio livre — e da Parceria Transpacífico, um dos acordos internacionais que Trump denunciou — e defendeu o fim das emissões de CO2 até 2050. Todo um mundo que o inquilino da Casa Branca faz por destruir.
Com o Presidente dos EUA ausente, um dos seus mais recentes ‘ódios de estimação’ foi tema de conversa nos corredores de Davos. Numa entrevista recente ao programa da CBS “60 Minutes”, uma das estrelas da nova bancada democrata no Congresso, Alexandria Ocasio-Cortez, de 29 anos, defendeu um imposto de 70% sobre ganhos superiores a 10 milhões de dólares (quase nove milhões de euros). “Um sistema que permite a existência de multimilionários quando há zonas do Alabama onde as pessoas continuam a ter micoses porque não têm acesso a [cuidados de] saúde pública é mau”, afirmou a congressista, esta segunda-feira, durante um evento alusivo ao Dia de Martin Luther King.
“É assustador”, reagiu, em Davos, Scott Minerd, da Guggenheim Partners, empresa de serviços financeiros e consultoria global. “Quando chegarmos às eleições presidenciais, [esta proposta] vai ganhar mais força. Eu acho que a probabilidade de uma taxa de imposto de 70%, ou algo assim, concretizar-se numa medida política é muito real.”
(FOTO O Fórum Económico Mundial reúne-se, anualmente, num resort nos Alpes, na região suíça de Davos FLICKR WORLD ECONOMIC FORUM)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de janeiro de 2019. Pode ser consultado aqui
Donald Trump está a meio caminho do seu mandato presidencial. Sobressai um temperamento difícil e um estilo de governação turbulento com consequências no país e no mundo
Donald Trump atinge, amanhã, metade do mandato. Cumpre-o num momento de tensão no país, com mais de 800 mil funcionários públicos parados em casa, há quase um mês, sem receber. Assim continuarão enquanto durar o braço de ferro entre o Presidente e a maioria democrata no Congresso, que não dá a Trump os milhões que ele quer para o muro do México.
Esta semana, Trump reagiu ao impasse de forma bizarra. Num jantar na Casa Branca em homenagem aos Clemson Tigers, campeões universitários de futebol americano, banqueteou a equipa com uma mesa coberta de embalagens de hambúrgueres, nuggets de frango, batatas fritas e pizza. Numa cedência à fast food, havia também saladas. “Se é americano, eu gosto. São tudo coisas americanas”, disse. Trump justificou o buffet com a ausência do pessoal da cozinha, vítima do encerramento parcial do Governo (shutdown).
Do evento, uma foto destacou-se. Sozinho, de pé, no topo da mesa, Trump sorri. Num retrato atrás dele, Abraham Lincoln — para muitos o melhor Presidente de sempre — “observa” todo o espetáculo. “Essa foto vai ficar como uma espécie de postal destes primeiros dois anos. Está lá tudo o que é a Casa Branca na era Trump”, comenta ao Expresso Germano Almeida, autor do livro “Isto não é bem um Presidente dos EUA”. O título é deliberadamente provocador: “Não consigo ver, em tudo o que Trump faz, a dignidade da função presidencial”.
Em 24 meses na Casa Branca, Trump cunhou tudo o que disse e fez com traços de personalidade que fazem dele um Presidente único. Como os dez que se seguem.
MENTIROSO Factos só atrapalham Trump mente descaradamente. “The Washington Post” fez contas e, nos primeiros nove meses, o político mais influente do mundo mentiu uma média de cinco vezes por dia, num total de “1318 alegações falsas ou enganosas”. Nas sete semanas que antecederam as eleições para o Congresso de 6 de novembro passado, a média disparou para 30 mentiras por dia. Catapultado por uma narrativa assente em “notícias falsas” e “factos alternativos”, Trump declarou guerra aos media tradicionais rotulando-os “inimigos do povo”. Quebrou a tradição e tem faltado ao jantar anual dos correspondentes na Casa Branca. Trump diz coisas que gostava que fossem verdade e acredita que podem tornar-se verdade se não parar de as repetir. Numa das mentiras mais persistentes, diz que venceu o voto popular “porque milhões de ilegais votaram em Hillary”. Os factos dizem que teve 63 milhões de votos e Hillary 66. “Para a sua narrativa, os factos só atrapalham”, diz Germano Almeida. “Usa e abusa dos exageros, da falta de rigor, das falácias e das mentiras objetivas para gerar perceções e provocar emoções — sobretudo, o medo.”
MANIPULADOR Vale tudo para mobilizar Entre os poucos ataques terroristas ocorridos nos EUA após o 11 de Setembro, os mais mortíferos não foram realizados por estrangeiros chegados de países muçulmanos, como Trump quis fazer crer quando proibiu a entrada no país a cidadãos de Irão, Iraque, Líbia, Somália, Sudão, Síria e Iémen. “A grande ameaça à segurança dos americanos chama-se posse de armas e tem nos próprios americanos os principais autores dos maiores massacres dos últimos anos.” A medida é pois demagógica. Não impediria os atentados mais graves, “liberta demónios e explora medos primários”, diz o analista. “Trump manipula para manter mobilizada a sua base de apoio. Se perde, declara vitória. Se perde estrondosamente, anuncia um tremendo êxito”, mesmo contra factos.
SUPREMACISTA Ku Klux Klan dá jeito A 11 de agosto de 2017, Trump foi posto à prova. Em Charlottesville (Virgínia), uma marcha da extrema-direita saiu à rua, empunhando armas de fogo e gritando slogans racistas. Um protesto de sinal contrário foi ao seu encontro e a violência fez manchetes. Trump manteve-se equidistante, criticando “os dois lados”. Ao não condenar o racismo, foi condescendente em relação ao Ku Klux Klan (KKK). “No essencial, Trump não é um extremista, mas usa o extremismo por motivos instrumentais. Sem admitir que é racista e que vê a maioria branca (em regressão nos EUA) como o ‘poder dominante’, sustentou toda a sua narrativa de campanha numa América branca, rural, avessa à diversidade, que vê com maus olhos a ascensão das minorias. Não tendo pedido o apoio do KKK, também não o rejeitou.” Duas semanas após Charlottesville, Trump concedeu o primeiro indulto presidencial. O beneficiário foi um antigo xerife, Joe Arpaio, preso por discriminação racial e violação dos direitos civis dos latinos no Arizona.
EGOCÊNTRICO Ver o mundo pelo umbigo A 25 de setembro passado, quando discursou na Assembleia Geral da ONU, Trump pôs o plenário a rir. “Em menos de dois anos, a minha Administração realizou mais do que quase todas as Administrações na história do nosso país.” A gargalhada revelou que o mundo não o leva a sério e que o 45º Presidente chega a ser um embaraço para o país mais poderoso do mundo. Com Trump, a política americana parece ser um universo paralelo em que mais importante do que a realidade o que conta é a perceção que o Presidente tem dela — um Presidente com tiques ditatoriais e instintos vingativos. O autor recorda outro episódio egocêntrico: “A quem agradeceu Trump no Dia de Ação de Graças? Aos militares em missão? Aos veteranos de guerra? A quem pratica ação social? Nada disso: agradeceu… a si próprio”.
INSTÁVEL Colaboradores às aranhas Trump não tem aliados nem inimigos fixos. Tem interlocutores com quem negoceia e, para o empresário, até a política internacional é negociável. Exemplo disso foi a cambalhota na relação com a Coreia do Norte. “Mesmo que da Cimeira de Singapura [12 de junho de 2018] tenha saído uma mão-cheia de nada, foi uma vitória simbólica de Trump”. Nove meses antes, o mundo parecia à beira de uma guerra nuclear, com ele a ameaçar “destruir totalmente” o país de Kim Jong-un. Trump não tem problema em passar de isolacionista a intervencionista quando lhe convém. Essa instabilidade desnorteia quem o acompanha. “Já perdeu todos os elementos que conferiam alguma credibilidade à sua Administração. Disse que ia mandar retirar do Afeganistão, depois voltou atrás. Disse que ia retirar imediatamente da Síria e agora John Bolton [conselheiro para a segurança] e Mike Pompeo [diretor da CIA] andam no terreno, às aranhas, a tentar explicar que afinal não é bem assim.”
IMPREPARADO Aversão a briefings Nos primeiros 100 dias, Trump deu 33 entrevistas, 13 delas à conservadora Fox News, o seu briefing matinal. “Ele não tem paciência para ler papers. Atira números e sentenças que não correspondem à realidade. À custa disso, foi alvo de ira, crítica ou chacota de líderes internacionais.” No mesmo período, publicou 507 tweets — apagou 11. Perante 57 milhões de seguidores, repete até à exaustão que a “América está primeiro” e que a via é o protecionismo comercial e o reforço de fronteiras. Trump despreza tudo o que é direito e ordem internacional. Retirou os EUA de vários tratados — o de Paris sobre as Alterações Climáticas e o acordo sobre o programa nuclear iraniano originaram mais barulho —, elogiou o ‘Brexit’, desvalorizou a ONU e a NATO e mostrou-se avesso a grandes acordos comerciais. Sobre a Parceria Transpacífico (de onde saiu) disse que revertê-la era “um exercício digno de grandes mestres do xadrez, e nos EUA não temos nenhum”. Ora, os EUA têm mais do que 90 — só a Rússia tem mais.
ILUSTRAÇÃO JOHN KACHIK
INFANTIL Sem “adultos” por perto Segundo um estudo da Universidade Carnegie Mellon (Pensilvânia), Trump é o Presidente com vocabulário mais básico. Ao nível da complexidade gramatical, só perde para George W. Bush. Para ele, tudo é “fantastic”, “disaster”, “great”, “bad”. Tem uma visão maniqueísta do mundo e atitudes de bullying perante rivais políticos. São exemplos “Crooked Hillary” (“Hillary desonesta”), “Little Marco” (Marco Rubio não é alto). Do herói de guerra John McCain, disse ser um “falhado” por ter sido capturado no Vietname. “Está documentado nos livros de Bob Woodward e Michael Wolff e foi referido no artigo de opinião anónimo publicado, em setembro, em “The New York Times” (“I am part of the resistance inside the Trump Administration”): Trump não consegue manter o foco por mais de cinco minutos. Faz birras. Não revela bom senso ou grande empatia. Tem um temperamento irascível. Parece uma criança. O pior é que tendo saído o general James Mattis [ex-secretário da Defesa], já não há adultos na sala para o travar.”
RUDE Sem sentido de Estado O Partido Republicano, que deu cobertura política a Trump, é também o partido de Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt, Dwight Eisenhower e Ronald Reagan. Mas ao contrário destes, Trump não tem sentido de Estado. Revelou informação secreta, “mandou palpites” no Twitter sobre acontecimentos noutros países e desrespeitou quem fez a História do país. Na receção a Mauricio Macri, em abril de 2017, tentou convencer o homólogo argentino a não condecorar Jimmy Carter, pela promoção dos direitos humanos durante a ditadura militar. “Uma atitude destas vai totalmente contra a tradição de respeito entre Presidentes, independentemente de ideologias”, recorda Germano Almeida. Bill Clinton amnistiou Richard Nixon. George W. Bush chamou Clinton em alturas dramáticas, como o furacão “Katrina” ou o terramoto no Haiti. Já Trump é obcecado em destruir o legado de Barack Obama.
OBAMAFÓBICO Obsessão pessoal É uma certeza de Trump desde o primeiro dia na Casa Branca: a presidência Obama foi “um desastre”, o futuro será “maravilhoso”. A própria cerimónia de tomada de posse, em Washington D.C., foi objeto de disputa com Trump a insistir que foi o evento com mais público de sempre e as fotos a provarem que, em frente ao Capitólio, havia mais gente a aplaudir Obama. “É muito mais do que uma divergência política, é uma obsessão pessoal”, comenta o analista. “O Sistema de Saúde é o melhor exemplo: Trump não é contra a existência de um plano federal. O que quer é deitar abaixo o ObamaCare e fazer um TrumpCare.”
ENTERTAINER Na política como na TV Os norte-americanos já tinham eleito um ator de westerns: Ronald Reagan. Trump chegou lá após 15 anos a apresentar um reality show. Com a mesma facilidade com que despedia concorrentes no “The Apprentice”, despediu membros do Governo e da estrutura do Estado. “Trump é uma espécie de artista de variedades que vende a banha da cobra em forma de receita populista sexy pronta a enganar eleitores vulneráveis e mal informados”, conclui Germano Almeida.
Dito tudo isto, nada fez Trump de positivo? “A economia. Os EUA estão com o desemprego mais baixo do último meio século. A tendência começou no final de 2010, no primeiro mandato de Obama, e Trump manteve-a.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de janeiro de 2019
Milhares de pessoas tentam todos os anos entrar no Iémen — um país em guerra em situação de pobreza persistente — em busca de oportunidades de trabalho. Em 2018, ali chegaram mais “migrantes irregulares” do que os que atravessaram o Mediterrâneo em direção à Europa
Imagine-se um país com quase 30 milhões de habitantes onde, em cada 100, 74 vive dependente de ajuda humanitária, 60 corre o risco de passar fome, 57 não tem acesso a água potável e 53 sobrevive sem serviços de saúde. Esse país está tomado por uma guerra civil e a sua população exposta ao pior surto de cólera em todo o mundo. Ainda assim, a cada ano que passa, milhares de pessoas arriscam a vida para entrarem nesse país em busca… ‘de uma vida melhor’.
É o que se passa no Iémen, um dos países mais pobres do mundo e, atualmente, palco de uma grande tragédia humana — a “maior crise de dimensão humanitária em todo o mundo”, nas palavras do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Em 2018, estima-se que tenham entrado naquele país à volta de 150 mil pessoas em situação irregular — uma média de mais de 400 pessoas por dia —, a esmagadora maioria das quais por razões económicas.
Esta realidade torna-se mais chocante quando se constata que esse número é superior à quantidade de “migrantes irregulares” que, no mesmo período, cruzaram o Mar Mediterrâneo para tentar entrar na rica Europa. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM) — liderada desde 1 de outubro passado pelo português António Vitorino —, no ano passado (até 19 de dezembro) tinham entrado no Velho Continente, por mar, 113.145 pessoas.
No Iémen, “os migrantes citam uma miríade de razões para as suas deslocações, incluindo perspetivas económicas limitadas, instabilidade política e degradação ambiental nos países de origem”, explica ao Expresso Angela Wells, do gabinete de Informação Pública da OIM. “A grande maioria quer chegar à Arábia Saudita [contígua ao Iémen], onde espera encontrar oportunidades de trabalho.”
São oriundos da Etiópia, numa percentagem superior a 90%, sendo os restantes sobretudo somalis. Para chegar ao Iémen, percorrem a chamada Rota Oriental, que os leva, inicialmente, por percursos terrestres no Djibuti, muito usados por contrabandistas, e depois a bordo de embarcações através do Golfo de Aden. Em menor número, alguns lançam-se a partir da costa da Somália.
“Desde o início de 2014, o Projeto de Migrantes Desaparecidos da OIM registou mais de 700 mortes no Golfo de Aden”, diz Angela Wells.
Enquanto, em 2018, o número de “migrantes irregulares” a entrar na Europa diminuiu comparativamente ao ano anterior, no Iémen aumentou em 50%. “Esta é uma das rotas migratórias mais jovens do mundo”, acrescenta a responsável da OIM. “Estima-se que 20% dos migrantes sejam menores — muitos deles desacompanhados —, inconscientes ou incapazes de compreender a gravidade do conflito no Iémen.”
Quem se lança rumo ao desconhecido, correndo riscos de vida, age motivado por histórias de outros que partiram e ‘conseguiram’. Esses passaram a enviar dinheiro para as famílias, nos países de origem, que aproveitaram para construir uma casa nova, melhorar a educação das crianças ou regenerar as propriedades agrícolas degradadas por anos de seca.
Mas chegados ao Iémen, os perigos espreitam a cada esquina. “Os mais graves decorrem da violência do conflito, de uma drástica insegurança alimentar e de epidemias de doenças infecciosas”, refere Angela Wells. “O estatuto irregular dos migrantes também aumenta a sua vulnerabilidade à exploração laboral e ao tráfico de pessoas e expõem-nos a abusos por parte de contrabandistas e de traficantes nas rotas do Corno de África.” Longas caminhadas, dias a fio, em rotas áridas e desertas, originam também casos de desidratação e várias doenças.
No terreno — no Iémen e nos países de trânsito —, organizações humanitárias vão disponibilizando abrigos e prestando cuidados para atenuar o sofrimento. A OIM, em particular, ajuda migrantes que, face às adversidades, queiram regressar aos países de origem.
Em finais de novembro passado, a organização reiniciou o transporte aéreo de repatriamento voluntário, levando 418 etíopes (121 dos quais menores) para casa. Os voos estavam suspensos desde 2015, devido ao conflito, que se tornou uma “guerra por procuração” entre os pesos pesados do Médio Oriente: os rebeldes huthis são apoiados pelo Irão (xiita) e as forças leais ao Presidente deposto, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, beneficiam dos bombardeamentos aéreos efetuados pela vizinha Arábia Saudita (sunita).
A 13 de dezembro passado, na sequência do “caso Khashoggi”, o Senado dos Estados Unidos aprovou o fim do apoio militar à Arábia Saudita no Iémen. Mesmo assim, a aviação saudita continua a bombardear.
(Foto: Na cidade costeira de Obock, no Djibuti, migrantes aguardam, à sombra, que traficantes organizem a sua viagem até ao Iémen OLIVIA HEADON / IOM)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 17 de janeiro de 2019, e republicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.