Trump: Os dois primeiros anos de um Presidente único

Donald Trump está a meio caminho do seu mandato presidencial. Sobressai um temperamento difícil e um estilo de governação turbulento com consequências no país e no mundo

Donald Trump atinge, amanhã, metade do mandato. Cumpre-o num momento de tensão no país, com mais de 800 mil funcionários públicos parados em casa, há quase um mês, sem receber. Assim continuarão enquanto durar o braço de ferro entre o Presidente e a maioria democrata no Congresso, que não dá a Trump os milhões que ele quer para o muro do México.

Esta semana, Trump reagiu ao impasse de forma bizarra. Num jantar na Casa Branca em homenagem aos Clemson Tigers, campeões universitários de futebol americano, banqueteou a equipa com uma mesa coberta de embalagens de hambúrgueres, nuggets de frango, batatas fritas e pizza. Numa cedência à fast food, havia também saladas. “Se é americano, eu gosto. São tudo coisas americanas”, disse. Trump justificou o buffet com a ausência do pessoal da cozinha, vítima do encerramento parcial do Governo (shutdown).

Do evento, uma foto destacou-se. Sozinho, de pé, no topo da mesa, Trump sorri. Num retrato atrás dele, Abraham Lincoln — para muitos o melhor Presidente de sempre — “observa” todo o espetáculo. “Essa foto vai ficar como uma espécie de postal destes primeiros dois anos. Está lá tudo o que é a Casa Branca na era Trump”, comenta ao Expresso Germano Almeida, autor do livro “Isto não é bem um Presidente dos EUA”. O título é deliberadamente provocador: “Não consigo ver, em tudo o que Trump faz, a dignidade da função presidencial”.

Em 24 meses na Casa Branca, Trump cunhou tudo o que disse e fez com traços de personalidade que fazem dele um Presidente único. Como os dez que se seguem.

MENTIROSO
Factos só atrapalham
Trump mente descaradamente. “The Washington Post” fez contas e, nos primeiros nove meses, o político mais influente do mundo mentiu uma média de cinco vezes por dia, num total de “1318 alegações falsas ou enganosas”. Nas sete semanas que antecederam as eleições para o Congresso de 6 de novembro passado, a média disparou para 30 mentiras por dia.
Catapultado por uma narrativa assente em “notícias falsas” e “factos alternativos”, Trump declarou guerra aos media tradicionais rotulando-os “inimigos do povo”. Quebrou a tradição e tem faltado ao jantar anual dos correspondentes na Casa Branca.
Trump diz coisas que gostava que fossem verdade e acredita que podem tornar-se verdade se não parar de as repetir. Numa das mentiras mais persistentes, diz que venceu o voto popular “porque milhões de ilegais votaram em Hillary”. Os factos dizem que teve 63 milhões de votos e Hillary 66.
“Para a sua narrativa, os factos só atrapalham”, diz Germano Almeida. “Usa e abusa dos exageros, da falta de rigor, das falácias e das mentiras objetivas para gerar perceções e provocar emoções — sobretudo, o medo.”

MANIPULADOR
Vale tudo para mobilizar
Entre os poucos ataques terroristas ocorridos nos EUA após o 11 de Setembro, os mais mortíferos não foram realizados por estrangeiros chegados de países muçulmanos, como Trump quis fazer crer quando proibiu a entrada no país a cidadãos de Irão, Iraque, Líbia, Somália, Sudão, Síria e Iémen. “A grande ameaça à segurança dos americanos chama-se posse de armas e tem nos próprios americanos os principais autores dos maiores massacres dos últimos anos.” A medida é pois demagógica. Não impediria os atentados mais graves, “liberta demónios e explora medos primários”, diz o analista. “Trump manipula para manter mobilizada a sua base de apoio. Se perde, declara vitória. Se perde estrondosamente, anuncia um tremendo êxito”, mesmo contra factos.

SUPREMACISTA
Ku Klux Klan dá jeito
A 11 de agosto de 2017, Trump foi posto à prova. Em Charlottesville (Virgínia), uma marcha da extrema-direita saiu à rua, empunhando armas de fogo e gritando slogans racistas. Um protesto de sinal contrário foi ao seu encontro e a violência fez manchetes. Trump manteve-se equidistante, criticando “os dois lados”. Ao não condenar o racismo, foi condescendente em relação ao Ku Klux Klan (KKK).
“No essencial, Trump não é um extremista, mas usa o extremismo por motivos instrumentais. Sem admitir que é racista e que vê a maioria branca (em regressão nos EUA) como o ‘poder dominante’, sustentou toda a sua narrativa de campanha numa América branca, rural, avessa à diversidade, que vê com maus olhos a ascensão das minorias. Não tendo pedido o apoio do KKK, também não o rejeitou.”
Duas semanas após Charlottesville, Trump concedeu o primeiro indulto presidencial. O beneficiário foi um antigo xerife, Joe Arpaio, preso por discriminação racial e violação dos direitos civis dos latinos no Arizona.

EGOCÊNTRICO
Ver o mundo pelo umbigo
A 25 de setembro passado, quando discursou na Assembleia Geral da ONU, Trump pôs o plenário a rir. “Em menos de dois anos, a minha Administração realizou mais do que quase todas as Administrações na história do nosso país.” A gargalhada revelou que o mundo não o leva a sério e que o 45º Presidente chega a ser um embaraço para o país mais poderoso do mundo.
Com Trump, a política americana parece ser um universo paralelo em que mais importante do que a realidade o que conta é a perceção que o Presidente tem dela — um Presidente com tiques ditatoriais e instintos vingativos. O autor recorda outro episódio egocêntrico: “A quem agradeceu Trump no Dia de Ação de Graças? Aos militares em missão? Aos veteranos de guerra? A quem pratica ação social? Nada disso: agradeceu… a si próprio”.

INSTÁVEL
Colaboradores às aranhas
Trump não tem aliados nem inimigos fixos. Tem interlocutores com quem negoceia e, para o empresário, até a política internacional é negociável. Exemplo disso foi a cambalhota na relação com a Coreia do Norte. “Mesmo que da Cimeira de Singapura [12 de junho de 2018] tenha saído uma mão-cheia de nada, foi uma vitória simbólica de Trump”. Nove meses antes, o mundo parecia à beira de uma guerra nuclear, com ele a ameaçar “destruir totalmente” o país de Kim Jong-un.
Trump não tem problema em passar de isolacionista a intervencionista quando lhe convém. Essa instabilidade desnorteia quem o acompanha. “Já perdeu todos os elementos que conferiam alguma credibilidade à sua Administração. Disse que ia mandar retirar do Afeganistão, depois voltou atrás. Disse que ia retirar imediatamente da Síria e agora John Bolton [conselheiro para a segurança] e Mike Pompeo [diretor da CIA] andam no terreno, às aranhas, a tentar explicar que afinal não é bem assim.”

IMPREPARADO
Aversão a briefings
Nos primeiros 100 dias, Trump deu 33 entrevistas, 13 delas à conservadora Fox News, o seu briefing matinal. “Ele não tem paciência para ler papers. Atira números e sentenças que não correspondem à realidade. À custa disso, foi alvo de ira, crítica ou chacota de líderes internacionais.” No mesmo período, publicou 507 tweets — apagou 11. Perante 57 milhões de seguidores, repete até à exaustão que a “América está primeiro” e que a via é o protecionismo comercial e o reforço de fronteiras.
Trump despreza tudo o que é direito e ordem internacional. Retirou os EUA de vários tratados — o de Paris sobre as Alterações Climáticas e o acordo sobre o programa nuclear iraniano originaram mais barulho —, elogiou o ‘Brexit’, desvalorizou a ONU e a NATO e mostrou-se avesso a grandes acordos comerciais. Sobre a Parceria Transpacífico (de onde saiu) disse que revertê-la era “um exercício digno de grandes mestres do xadrez, e nos EUA não temos nenhum”. Ora, os EUA têm mais do que 90 — só a Rússia tem mais.

ILUSTRAÇÃO JOHN KACHIK

INFANTIL
Sem “adultos” por perto
Segundo um estudo da Universidade Carnegie Mellon (Pensilvânia), Trump é o Presidente com vocabulário mais básico. Ao nível da complexidade gramatical, só perde para George W. Bush. Para ele, tudo é “fantastic”, “disaster”, “great”, “bad”. Tem uma visão maniqueísta do mundo e atitudes de bullying perante rivais políticos. São exemplos “Crooked Hillary” (“Hillary desonesta”), “Little Marco” (Marco Rubio não é alto). Do herói de guerra John McCain, disse ser um “falhado” por ter sido capturado no Vietname.
“Está documentado nos livros de Bob Woodward e Michael Wolff e foi referido no artigo de opinião anónimo publicado, em setembro, em “The New York Times” (“I am part of the resistance inside the Trump Administration”): Trump não consegue manter o foco por mais de cinco minutos. Faz birras. Não revela bom senso ou grande empatia. Tem um temperamento irascível. Parece uma criança. O pior é que tendo saído o general James Mattis [ex-secretário da Defesa], já não há adultos na sala para o travar.”

RUDE
Sem sentido de Estado
O Partido Republicano, que deu cobertura política a Trump, é também o partido de Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt, Dwight Eisenhower e Ronald Reagan. Mas ao contrário destes, Trump não tem sentido de Estado. Revelou informação secreta, “mandou palpites” no Twitter sobre acontecimentos noutros países e desrespeitou quem fez a História do país.
Na receção a Mauricio Macri, em abril de 2017, tentou convencer o homólogo argentino a não condecorar Jimmy Carter, pela promoção dos direitos humanos durante a ditadura militar. “Uma atitude destas vai totalmente contra a tradição de respeito entre Presidentes, independentemente de ideologias”, recorda Germano Almeida. Bill Clinton amnistiou Richard Nixon. George W. Bush chamou Clinton em alturas dramáticas, como o furacão “Katrina” ou o terramoto no Haiti. Já Trump é obcecado em destruir o legado de Barack Obama.

OBAMAFÓBICO
Obsessão pessoal
É uma certeza de Trump desde o primeiro dia na Casa Branca: a presidência Obama foi “um desastre”, o futuro será “maravilhoso”. A própria cerimónia de tomada de posse, em Washington D.C., foi objeto de disputa com Trump a insistir que foi o evento com mais público de sempre e as fotos a provarem que, em frente ao Capitólio, havia mais gente a aplaudir Obama. “É muito mais do que uma divergência política, é uma obsessão pessoal”, comenta o analista. “O Sistema de Saúde é o melhor exemplo: Trump não é contra a existência de um plano federal. O que quer é deitar abaixo o ObamaCare e fazer um TrumpCare.”

ENTERTAINER
Na política como na TV
Os norte-americanos já tinham eleito um ator de westerns: Ronald Reagan. Trump chegou lá após 15 anos a apresentar um reality show. Com a mesma facilidade com que despedia concorrentes no “The Apprentice”, despediu membros do Governo e da estrutura do Estado. “Trump é uma espécie de artista de variedades que vende a banha da cobra em forma de receita populista sexy pronta a enganar eleitores vulneráveis e mal informados”, conclui Germano Almeida.

Dito tudo isto, nada fez Trump de positivo? “A economia. Os EUA estão com o desemprego mais baixo do último meio século. A tendência começou no final de 2010, no primeiro mandato de Obama, e Trump manteve-a.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de janeiro de 2019

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