O distrito de Aveiro está a ser o porto de abrigo de muitos descendentes de ‘filhos de terra’ que, há décadas, tinham emigrado para a Venezuela. Encontrar trabalho não tem sido problemático, complicado é tratar das burocracias
Fogem da Venezuela em condições dramáticas, mas, chegados a Estarreja, no distrito de Aveiro, não há drama que impeça o começo de uma nova vida. “Estarreja não sentiu alarme social” após o êxodo de luso-venezuelanos para o concelho. “A sociedade está a tomar conta dessas situações. A Câmara Municipal foi solicitada poucas vezes”, diz ao Expresso Diamantino Sabina, presidente do município.
Terra de emigrantes — em especial para a Venezuela —, Estarreja vê agora regressar filhos e netos de quem tinha partido, no século passado. Dentro de “duas, três semanas”, começa a funcionar um Gabinete de Apoio ao Emigrante (GAE), o 146º em todo o país. “Já temos local, estamos à espera que os nossos funcionários recebam formação”, acrescenta.
A Câmara estima que, no primeiro semestre de 2019, possam chegar ao concelho à volta de 3000 luso-venezuelanos. O GAE será precioso sobretudo para ajudar com as burocracias. “A maior parte das pessoas não estão reconhecidas como cidadãos. O processo no SEF está a ser muito demorado. E não tendo a sua situação regularizada, não podem usufruir de ajuda social”, diz o autarca. “Neste momento, não são peso social algum. Pelo contrário, são força produtiva. Venham eles!”
Emprego para todos
Alguns dos que chegam têm família na terra, o que facilita a integração. Outros não têm essa retaguarda, mas trazem referências de que Estarreja está de portas abertas para recebe-los e orienta-los. “Se chegam vindos de outro país europeu, por exemplo — porque nem sempre conseguem voos diretos para Portugal —, o passaporte não é carimbado. Têm então três dias para faze-lo no SEF, mas praticamente ninguém sabe disso”, diz Crispim Rodrigues, de 67 anos, um antigo emigrante na Venezuela.
Em Estarreja, é ‘à porta’ de Crispim que muitos recém-chegados batem. É ele quem lidera o Departamento de Relações Exteriores da SEMA, uma associação empresarial com associados em cinco concelhos de Aveiro — Estarreja, Murtosa, Albergaria, Sever do Vouga e Ovar —, o que lhe permite conhecer “meio mundo” num universo de mais de 3000 empresas. Sensível ao desespero de quem chega, pela sua própria história pessoal — trabalhou na Venezuela quase 40 anos —, Crispim vai arranjando emprego para todos.
O município, com 27 mil habitantes, não tem estatísticas sobre a quantidade de luso-venezuelanos que já ali procurou refúgio, sobretudo desde que, em Caracas, o inquilino do Palácio de Miraflores é Nicolás Maduro. Crispim tem uma contabilidade parcial. “Em 2018, atendemos na SEMA 547 adultos vindos da Venezuela, uma média de 5-6 por dia”, o que, somados cônjuges e uma média de dois filhos, traduz-se em cerca de 1500 pessoas.
Um médico a acartar caixas de fruta
A rápida integração no mercado de trabalho é facilitada pela existência de dois parques industriais em crescimento: a Quimiparque e o Eco Parque. Mas a oferta nem sempre corresponde à formação e aspiração de quem procura. Longe da situação ideal, há atualmente um ortopedista a acartar caixotes de fruta num armazém, uma pediatra a atender à mesa numa padaria, uma arquiteta a trabalhar num supermercado…
“Para poderem exercer as suas profissões, têm de ter equivalência, e a maior parte não consegue a apostila [formalidade necessária à autenticação de documentos]. Na Venezuela, não o estão a fazer”, diz Crispim Rodrigues.
O seu sotaque “espanholado” não ilude quase 40 anos de vida e trabalho em solo venezuelano. Os três irmãos e respetiva descendência continuam por lá. Crispim regressou com a mulher e dois filhos em 1993, ainda antes da subida ao poder de Hugo Chávez. “No tempo do Chávez, quem regressava mais era a primeira e segunda gerações de emigrantes. Vendiam os negócios e vinham passar a velhice em Portugal. A fase mais complicada começou com Nicolás Maduro.”
“Mas os venezuelanos são gente de trabalho”, diz. “De todos os que já atendi, nenhum me pediu dinheiro. Pedem ajuda para tratar da documentação e para lhes arranjar trabalho.” Daí para a frente, arregaçam as mangas e vão à luta.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de janeiro de 2019. Pode ser consultado aqui