Uma jovem saudita fugiu do país expondo a atual fragilidade do Reino

Três meses após o macabro assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, que implicou o regime da Arábia Saudita, fragilizando-o na cena internacional, aquele que é um dos países mais poderosos e conservadores do mundo está novamente posto à prova. Rahaf Mohammed al-Qunun, de 18 anos, filha do governador de Al-Sulaimi (norte), ousou fugir do Reino e de um futuro traçado pelos rígidos códigos sociais que subordinam a vida das mulheres à vontade dos homens da família.
Determinada a exilar-se na Austrália, após acusar a família de maus tratos, foi intercetada na Tailândia, onde o passaporte lhe foi confiscado. Para resistir ao repatriamento forçado barricou-se num quarto de hotel no aeroporto de Banguecoque e exigiu falar com o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. “Se a jovem não quer partir, não será enviada contra a sua vontade”, declarou o chefe da polícia tailandesa de Imigração. A ONU acabaria por entrevistá-la, validar a sua história e levá-la para “local seguro”. Tudo isto em 48 horas.
“Há certamente um ‘efeito Khashoggi’ neste caso”, comenta ao Expresso a ativista dos direitos humanos suíço-iemenita Elham Manea. “Em 2017, num caso semelhante, Dina Ali ia para a Austrália e foi parada no aeroporto de Manila [Filipinas]. Foi arrastada contra a vontade para um avião que a levou de volta para a Arábia Saudita. O mundo limitou-se a assistir. Ninguém sabe o que lhe aconteceu depois…”
A arma do telemóvel
“Sem o ‘efeito Khashoggi’, a fuga teria passado despercebida à comunidade internacional e a ONU não teria agido de forma rápida e decisiva”, diz ao Expresso Manuel Almeida, investigador no Centro do Médio Oriente, da Escola de Economia e Ciência Política de Londres. “A morte do jornalista fica apenas atrás do 11 de Setembro como mancha permanente na reputação saudita.”
À hora de fecho desta edição, Rahaf continuava sob tutela da ONU, à espera de notícias da Austrália. Ontem, massacrada com ameaças de morte, suspendeu a conta no Twitter, o canal com o mundo sem o qual, uma semana após ter fugido, não manteria acesa a esperança num futuro em liberdade. Diante de jornalistas tailandeses, o encarregado de negócios saudita afirmaria que, em vez do passaporte, as autoridades locais deveriam ter-lhe apreendido… o smartphone.
A odisseia de Rahaf é rápida de contar. De férias com a família no Kuwait — onde, ao contrário da Arábia Saudita, as mulheres não necessitam de autorização masculina para viajar sozinhas —, Rahaf comprou uma viagem com destino à Austrália. Travada na escala em Banguecoque faz hoje uma semana abriu uma conta no Twitter quando se sentiu apertada pelas autoridades. Foi o tiro de partida para uma revolução em sua defesa, que galgou as fronteiras digitais graças, em especial, ao empenho de várias mulheres.
Atenta aos tweets desesperados da jovem, Sophie McNeill, uma jornalista australiana da televisão ABC, foi ao seu encontro conseguindo que ela lhe abrisse a porta do quarto. Rahaf haveria de agradecer-lhe essa “proteção”. No Twitter, a feminista egípcia Mona Eltahawy deu visibilidade ao caso, levando um exército de seguidores a fazer pressão junto de organizações, embaixadas e deputados de todo o mundo. E após Rahaf obter proteção da ONU, três jovens sauditas foram importantes para não deixar o caso morrer. Desde a Austrália, a Suécia e o Canadá, foram-se revezando na gestão do Twitter.
Manuel Almeida não prevê que o caso de Rahaf tenha consequências diretas no sistema de tutela masculina em vigor. “Mas acredito que o país caminha a passos largos para a sua abolição. Na Arábia Saudita, há mais mulheres do que homens a estudar, e obtêm melhores resultados em ciências, engenharia e matemática. Há mais mulheres a formarem-se e um número crescente a entrar no mercado de trabalho. Com o tempo, o sistema de tutela masculina será insustentável política, económica e socialmente.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de janeiro de 2019. Pode ser consultado aqui



