O pior atentado cometido por um judeu foi há 25 anos. E hoje ainda há crianças que vão à escola com “escudos humanos”

Há 25 anos, o judeu Baruch Goldstein matou muito mais do que 29 palestinianos. O que então aconteceu “mudou drasticamente o cenário de uma perspetiva de paz — ainda que ilusória — entre palestinianos e israelitas”. Ou, como disse ao Expresso outro analista, o seu legado é “um míssil contra o processo de paz”

Hebron é uma cidade palestiniana onde ir à escola exige das crianças cada vez mais coragem. No centro daquela que é uma das cidades mais antigas do mundo — há várias referências a Hebron na Bíblia — vivem colonos judeus radicais que, não raras vezes, tentam intimidar os jovens insultando-os e levantando obstáculos à sua passagem a caminho da escola.

Até há cerca de um mês, nalgumas zonas mais sensíveis, nos percursos entre casa e escola os estudantes eram escoltados por observadores internacionais de duas organizações — a Presença Internacional Temporária em Hebron (TIPH) e o Programa de Acompanhamento Ecuménico na Palestina e Israel (EAPPI). Lado a lado com as crianças, os voluntários funcionavam como ‘escudos humanos’ perante o assédio dos colonos.

A 28 de janeiro último, o primeiro-ministro de Israel disse que não renovaria o mandato da TIPH, no terreno desde 1997. “Não vamos permitir a presença continuada de uma força internacional que age contra nós”, disse Benjamin Netanyahu. Invocando “questões de segurança”, também a EAPPI debandou da cidade, alegando sentir-se alvo de uma campanha de assédio por parte do grupo sionista de extrema-direita Im Tirtzu.

Para preencher esse vazio, ativistas da organização local Juventude Contra os Colonatos (YAS, na sigla inglesa) passaram a assegurar essas escoltas e a responder a situações de emergência. Recentemente, estes “Observadores dos Direitos Humanos”, como se intitulam, foram chamados a casa de uma família palestiniana que viu soldados israelitas entrarem pelo telhado para levar o filho de 13 anos, a quem acusavam de ter atirado pedras. Frequentemente confrontados na rua pelos colonos, estes “coletes azuis” têm nas câmaras de vídeo uma “arma”, com as quais registam tudo aquilo que — dizem — Israel não quer que se veja.

A necessidade de observadores internacionais em Hebron decorre de uma chacina que ocorreu faz esta segunda-feira precisamente 25 anos e que entrou para a História como o pior ataque terrorista levado a cabo por judeus.

A 25 de fevereiro de 1994 — era sexta-feira e os muçulmanos cumpriam o mês do Ramadão (jejum) —, a Mesquita de Ibrahim (Abraão), no centro histórico de Hebron, encheu-se para a oração da manhã. Envergando uniforme militar, Baruch Goldstein, um judeu ortodoxo de 37 anos, nascido em Nova Iorque (EUA) e residente no colonato de Kiryat Arba, nos arredores da cidade, entrou no templo e disparou sobre os fieis: matou 29 e feriu outros 125. Morreu no local, espancado por sobreviventes.

“O que aconteceu naquele dia mudou drasticamente o cenário de uma perspetiva de paz — ainda que ilusória — entre palestinianos e israelitas”, comenta ao Expresso Giulia Daniele, investigadora no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (Lisboa). “Embora o início da segunda Intifada seja, formalmente, o ano 2000, este massacre marcou o início do rápido aumento da violência que fez jorrar muito sangue na Palestina.”

A matança de Goldstein aconteceu escassos cinco meses após a assinatura do Acordo de Oslo, nos jardins da Casa Branca, em Washington D.C. (EUA), selado com um histórico aperto de mão entre Itzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel) e Yasser Arafat (líder palestiniano). Era o primeiro sintoma de que o processo de paz não era consensual. A machadada final não tardaria: a 4 de novembro de 1995, Itzhak Rabin, um dos protagonistas de Oslo, era assassinado em Telavive por um judeu ortodoxo.

“Desde o início, o Acordo de Oslo suscitou uma oposição frontal por parte dos sectores radicais tanto no campo israelita como no palestiniano. Ambos tentaram fazê-lo fracassar a qualquer preço”, explica ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, professor na Universidade de Alicante (Espanha). “No caso israelita, o Likud [partido de direita, atualmente liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu] e os grupos de colonos tiveram um papel central nesta tarefa. Tanto Goldstein, o autor do massacre de Hebron, como Yigal Amir, o assassino de Rabin, eram colonos que consideravam os territórios palestinianos parte da Terra Prometida ao ‘povo eleito’.”

Para os judeus, o Túmulo dos Patriarcas — que abriga os mausoléus dos patriarcas e das matriarcas do judaísmo, incluindo Abraão, que está na origem das três religiões monoteístas — é o segundo local mais sagrado, a seguir ao Muro das Lamentações, em Jerusalém. Para muitos muçulmanos, a importância da Mesquita de Ibrahim, situada no mesmo local do Túmulo dos Patriarcas, só é superada pelas cidades santas de Meca, Medina e Jerusalém. No interior, há espaços de oração separados para as duas sensibilidades religiosas. No exterior, quem controla o acesso é Israel.

“Dado o seu significado religioso e histórico”, alerta Giulia Daniele, “Hebron sempre foi uma fortaleza do extremismo ultraortodoxo e dos colonos, com a presença de grupos como Gush Emunim, Kach e Kahane Chai.” Para os judeus mais radicais, outro local de peregrinação na cidade é a sepultura de Baruch Goldstein, em Kiryat Arba, onde vivia. Neste colonato, um dos mais violentos e racistas, vivem à volta de 8000 pessoas. Já depois do massacre de 1994, num episódio particularmente ofensivo para com os próprios judeus, colonos desta comunidade grafitaram paredes de casas palestinianas com a frase: “Árabes para as câmaras de gás.”

Situada na Cisjordânia — território palestiniano ocupado por Israel em 1967 —, a cerca de 30 km para sul de Jerusalém, Hebron é a única grande cidade palestiniana cuja soberania, pelo Acordo de Oslo, não foi totalmente transferida para a Autoridade Palestiniana (AP). O seu estatuto foi regulado pelo Protocolo de Hebron de 1997, que instituiu a partilha da cidade: 80% da área, onde viviam 200 mil pessoas, foi entregue à AP (H-1) e os restantes 20% ficaram sob controlo israelita: hoje vivem ali cerca de 40 mil palestinianos e 800 colonos judeus, estes protegidos por uma força militar em número muito superior (H-2). É também na área H-2 que fica o Túmulo dos Patriarcas.

“O Protocolo de 1997 contemplou uma divisão da cidade completamente assimétrica”, explica o professor espanhol. “Obviamente, não é um acordo equilibrado, é mais um sinal de que o processo de paz não foi entre iguais, mas entre uma parte forte (Israel) e uma parte débil (a Autoridade Palestiniana).”

Na área controlada por Israel existe hoje uma situação de “apartheid” (separação) entre árabes e judeus. A discriminação começa, desde logo, pelo ordenamento jurídico que rege a vida de uns e outros: enquanto aos palestinianos são aplicadas leis militares, os colonos obedecem ao direito civil.

Esmagadoramente maioritária, a população árabe está, porém, em queda, vergada às dificuldades quotidianas colocadas pelo ocupante: “checkpoints” que dificultam a circulação, recolheres obrigatórios, menores detidos, propriedades vandalizadas, oliveiras queimadas pelos colonos, ruas vedadas. Naquelas em que os palestinianos podem andar, há linhas pintadas no chão ou divisórias em betão a mandar uns pela esquerda e outros pela direita.

“Esta política de ‘apartheid’, mais visível na peculiaridade de Hebron evidencia de forma muito significativa o objetivo final da limpeza étnica que Israel tem vindo a conduzir desde 1948 no sentido de aumentar, cada vez mais, a população israelita nos territórios palestinianos e, por outro lado, expulsar a população indígena”, conclui Giulia Daniele. “O que está a acontecer em Hebron não é um caso isolado, há muitos outros semelhantes, mas é o caso mais emblemático da lógica de ‘apartheid’ usada por Israel para dividir e fragmentar tanto o território como a população palestinianos.”

Em Hebron, uma das ações de protesto mais persistentes pugna pela reabertura da Rua Shuhada, outrora a principal artéria comercial da cidade e hoje um espaço fantasma, símbolo maior da ocupação e da discriminação. A sua interdição aos palestinianos — que tem contribuído para a asfixia económica da cidade — é uma consequência direta do massacre de 1994.

“Em vez de serem penalizados pelo seu comportamento, os colonos obtiveram um tratamento favorável de todos os governos israelitas”, diz Ignacio Álvarez-Ossorio. “Independentemente da sua cor política, deram-lhes todo o tipo de facilidades para que continuem a colonizar o território palestiniano, apesar de essa colonização representar um míssil contra o processo de paz.”

(Foto: Capa da edição de 26 de fevereiro de 1994 do jornal norte-americano “The New York Times”, em que noticia o massacre de Hebron ARQUIVO THE NEW YORK TIMES)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 25 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui

Há boas cidades para se viver. E há as melhores

Pegue-se em 140 cidades de todo o mundo, passe-se-as pelo crivo de cinco critérios, estabeleça-se uma pontuação e… eis a lista das melhores cidades para se viver. Uma conceituada publicação internacional voltou a fazer este exercício anual — e tanto o lugar da vencedora como o de várias outras não é assim tão óbvio, incluindo o de Lisboa. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

Nova Iorque, Paris, Londres ou Tóquio.

São cidades modernas que inspiram músicas, aparecem em filmes e são facilmente reconhecidas como as grandes capitais do mundo. Muitos de nós sonham visitá-las e, quem sabe, um dia lá morar. Mas terão estes ícones urbanos a qualidade de vida que projetamos? E é lá que se vive melhor?

O último ranking da Economist Intelligence Unit pegou em 140 cidades e avaliou-as mediante cinco critérios: estabilidade, educação, cuidados de saúde, cultura & ambiente e infraestruturas.

A cidade vencedora é surpreendente. Mas já lá vamos…

Olhando agora para o lote das melhores classificadas, constatamos que há três cidades australianas, três canadianas e duas japonesas.

E em 10º lugar, ficou Adelaide, na Austrália, logo seguida da dinamarquesa Copenhaga. Depois, Tóquio, a capital do Japão, e duas cidades canadianas, Toronto e Vancouver.

Em 5º lugar, ficou a cidade da ópera ao pé da baía, Sidney. E em 4º, a canadiana Calgary.

Mas antes de subirmos ao pódio, vejamos algumas curiosidades.

Todas estas cidades tiveram pontuação máxima no índice da educação.

Ao nível dos cuidados de saúde, só Copenhaga ficou abaixo dos 100 pontos.

Já no capítulo cultura & ambiente, apenas Vancouver conseguiu a pontuação máxima.

Descubramos então quais são as cidades que melhores condições reúnem para se viver.

A medalha de bronze foi atribuída a… Osaka. Nos guias turísticos, a cidade japonesa cativa por ter um dos melhores aquários do mundo, pelo seu castelo e templos budistas e também pelo bairro de Dotonbori, repleto de lojas, restaurantes e néons. Este estudo realça uma melhoria ao nível da qualidade e quantidade de transportes públicos e um declínio consistente nas taxas do crime. Osaka só fica aquém ao nível das infraestruturas e no capítulo da cultura e ambiente.

Subamos um degrau no pódio. E no segundo posto, surge a australiana Melbourne. Durante sete anos consecutivos, a cidade com quase 5 milhões de habitantes, que pode ser observada do topo da Torre Eureka, vinha sendo a líder incontestada deste ranking. Só que em 2018, foi especialmente penalizada no critério estabilidade.

É então chegado o momento de revelar quem arrecadou o título de melhor cidade para se viver. E parabéns… Viena.

A capital da Áustria é um reconhecido centro de música erudita que seduz também pelas suas belezas arquitetónicas ou por aprazíveis espaços de lazer como o Prater, onde se situa o parque de diversões mais antigo do mundo.

Entre as 140 cidades avaliadas, também está Lisboa. A capital portuguesa aparece muito longe dos primeiros lugares, mas ainda assim na primeira metade da lista. Curiosamente, à frente de cidades como Roma e Nova Iorque.

Episódio gravado por Cristina Pombo.

(FOTO A famosa Roda Gigante, no parque do Prater, é um dos ícones de Viena WIENER RIESENRAD)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui

Hakeem foi libertado: “Lutámos por uma alma que representava a luta contra a tirania”

Detido na Tailândia durante a lua de mel, um atleta do Bahrain exilado na Austrália temia ser extraditado para o seu país, que acusa de perseguição. Foi libertado esta terça-feira, após uma campanha internacional que uniu governos, organizações de direitos humanos e o mundo do futebol

“You’ll Never Walk Alone.” “Nunca andarás sozinho”, cantaram, esta terça-feira, amigos, conterrâneos, ativistas e colegas de equipa do futebolista Hakeem al-Araibi à sua chegada ao Aeroporto Internacional de Melbourne, na Austrália. Com este famoso tema — nascido nos palcos dos musicais e imortalizado, em especial, pelos adeptos do Liverpoll —, pretenderam celebrar a superação de um momento dramático na vida deste atleta de 25 anos, natural do Bahrain e refugiado na Austrália, vivido ironicamente num período feliz da sua vida.

A 27 de novembro passado — acabado de chegar à Tailândia com a mulher para gozarem a lua de mel —, Hakeem foi detido no aeroporto de Banguecoque, ao abrigo de um mandado de captura internacional emitido pelo Bahrain.

Hakeem é “persona non grata” no seu país, de onde fugiu em 2014 para a Austrália. Outrora jogador da seleção nacional, tinha sido acusado de vandalismo numa estação de polícia. Julgado “in absentia”, foi condenado a 10 anos de prisão. Hakeem, por seu lado, acusa as autoridades do seu país de repressão motivada pela sua crença religiosa (é muçulmano xiita) e também pelo ativismo político do irmão — que está preso.

Detido na Tailândia, a perspetiva de ser extraditado para o Bahrain — e o receio de ser torturado — originou a campanha #SaveHakeem que envolveu o Governo australiano, organizações de direitos humanos e, em especial, Craig Foster, um antigo futebolista australiano que chegou a jogar na Premier League (Portsmouth e Crystal Palace). “Lutámos por uma alma porque Hakeem representava todos aqueles que sofrem às mãos da tirania e, através dele, esperamos construir um mundo melhor”, afirmou Foster, num comunicado, quando foi conhecida a libertação do atleta.

“Este é o resultado para o qual trabalhamos em conjunto com uma vasta coligação de organizações dos direitos humanos, governos e toda a comunidade do futebol nos últimos dois meses”, regozijou-se a FIFA, em comunicado.

Na região do Golfo, as autoridades do Bahrain não se dão por derrotadas. “O veredito de culpado contra o Sr. Al-Araibi mantém-se”, reagiu o Ministério dos Negócios Estrangeiros. “O Reino do Bahrain reafirma o seu direito de prosseguir com todas as ações legais necessárias.”

“Crowdfunding” aberto, para a lua de mel

Em meados de janeiro, o caso de Hakeem cruzou-se com o da jovem saudita Rahaf Mohammed que, em fuga à família a caminho da Austrália (onde pretendia solicitar asilo), foi intercetada igualmente em Banguecoque, resistindo à extradição fechando-se dentro de um quarto de hotel no aeroporto. Após uma campanha de pressão desenvolvida sobretudo nas redes sociais, Rahaf haveria de conseguir asilo no Canadá.

À época, o diário britânico “The Guardian” questionava o porquê de o caso de Rahaf captar as atenções do mundo, enquanto Hakeem “era deixado na prisão”.

Dois meses e meio depois, o pesadelo de Hakeem terminou. Em breve, poderá retomar os treinos no Pascoe Vale Football Club, o clube semiprofissional de Melbourne onde joga. “A justiça prevaleu”, twitou o clube. “O nosso nº 5 Hakeem Al-Araibi está de volta a casa.”

Esta terça-feira, a Associação de Clubes de Futebol Australianos iniciou uma campanha de “crowdfunding” para “a lua de mel que Hakeem e a sua mulher não tiveram”.

Artigo publicado na “Tribuna Expresso, a 12 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui

Estado da União. Discursos já houve 232 mas a maior parte chegou por carta

Donald Trump cumpre, na madrugada desta quarta-feira, uma tradição com mais de 200 anos e faz o seu terceiro discurso sobre o Estado da União. Dos 45 Presidentes norte-americanos, só dois nunca o fizeram. O recorde do discurso mais longo pertence a um dos cinco estadistas ainda vivos

Na Câmara dos Representantes, Richard Nixon faz o discurso sobre o “Estado da União”, em 1972 US CAPITOL / WIKIMEDIA COMMONS

O discurso sobre o Estado da União que Donald Trump irá proferir esta terça-feira à noite (2h de quarta em Portugal Continental), perante o Congresso dos Estados Unidos, é uma prática quase tão antiga quanto a própria federação norte-americana. Foi George Washington (Presidente entre 1789 e 1797) quem, a 8 de janeiro de 1790 — tinha o país apenas 14 anos —, primeiro se dirigiu a uma sessão conjunta do Congresso. “Caros cidadãos do Senado e Câmara dos Representantes”, assim iniciou ele a sua alocução, dando o mote para uma tradição política que só em 1947 — quando começou a ser transmitido pela televisão — passaria a ser oficialmente designada “Estado da União”.

Três anos antes, em 1787, “o povo dos Estados Unidos” dotara-se de uma Constituição, a qual, no seu artigo II, enumerava as obrigações do Presidente. “Ele deve de tempos a tempos dar ao Congresso informação sobre o Estado da União, e pôr à sua consideração medidas que considere necessárias e convenientes”, era uma delas.

Assim apressou-se a fazer George Washington, no Federal Hall, na cidade de Nova Iorque. À época, Washington D.C. ainda não existia, a Casa Branca só começaria a ser construída em 1792 e a primeira sessão conjunta no atual Capitólio só ocorreria a 11 de novembro de 1800. Neste dia, John Adams (1797-1801) entraria para a História como o primeiro Presidente norte-americano a discursar na atual capital.

A George Washington deve-se também o caráter anual desta intervenção, ainda que nem todos os seus sucessores se tenham dignado comparecer pessoalmente no Congresso. Se os dois primeiros Presidentes fizeram-no — George Washington, de forma generosa, com uma média de 2080 palavras por discurso e John Adams, mais comedido, com apenas 1790 (a mais baixa de sempre) —, os chefes de Estado seguintes optaram por enviar mensagens escritas.

Entre 1801 e 1913 — período em que a Casa Branca teve 25 inquilinos —, a mensagem chegou ao Congresso de forma escrita. A Thomas Jefferson (1801-1809), em particular, incomodava-o a semelhança entre a aparição do Presidente diante dos representantes do povo, no início de cada sessão, e a prática monárquica dos britânicos, que discursavam a cada novo Parlamento. Por isso, optou por não discursar “in loco”.

A tradição do discurso presencial foi recuperada em 1913 por Woodrow Wilson — que faltaria em 1919 e 1920 por razões de saúde. Ao longo dos anos, essa passaria a ser a fórmula preferencial dos Presidentes, ainda que, de forma intermitente, mensagens escritas continuassem a chegar ao Congresso — a última das quais em 1981, com Jimmy Carter a submeter um discurso quatro dias antes de Ronald Reagan lhe suceder no cargo.

O formato atual estabilizou a partir de 1934, com Franklin Delano Roosevelt (1933-1945). Mas no total, desde 1790, já foram feitos mais discursos por escrito do que oralmente: 130 contra 102.

Se John Adams foi o Presidente mais sucinto, já William Howard Taft (1909-1913) foi o mais palavroso, com uma média de 22.614 palavras por texto. A esta discrepância não será alheio o facto de o primeiro ter sempre discursado de viva voz e o segundo ter sempre enviado mensagens escritas.

Individualmente, o discurso mais curto foi o primeiro, de George Washington, em 1790, com um total de 1089 palavras. O mais longo foi feito em 1995, por Bill Clinton (1993-2001), com 9190. Já a comunicação escrita mais comprida foi a de 1981, assinada por Jimmy Carter, totalizando 33.667 palavras.

Entre aqueles que sempre optaram pelo discurso presencial, Bill Clinton foi quem mais falou, com uma média de 7426 palavras em oito discursos — superior à do tribuno Barack Obama (2009-2017) com uma média de 6824 palavras em igual quantidade de alocuções.

Ainda no capítulo das curiosidades, desde 1964, o discurso que mais tempo demorou a ser lido — exatamente 1h 28m 49s — foi o último proferido por Bill Clinton, a 27 de janeiro de 2000. Em muito menos tempo — 47m 49s —, George W. Bush (2001-2009) ‘despachou’ uma das intervenções mais importantes dos últimos anos. A 29 de janeiro de 2002 — três meses após o 11 de Setembro —, traçou o “eixo do mal” (Irão, Iraque e Coreia do Norte) que haveria de orientar a guerra ao terrorismo internacional que se seguiria.

Vencedor das eleições presidenciais em 1932, 1936, 1940 e 1944, Franklin D. Roosevelt foi quem mais vezes se dirigiu presencialmente ao Congresso. Fe-lo por 10 vezes em 12 possíveis: em 1944, adoentado, falou aos microfones desde a Casa Branca e em 1945 dirigiu-se por escrito, três meses antes de morrer. Em contraponto, dois Presidentes nunca fizeram qualquer discurso no Congresso: William Henry Harrison (1841) morreu de pneumonia exatamente um mês após tomar posse como 9º Presidente e James Garfield (1881) foi assassinado seis meses após iniciar funções.

Pouco dado à História e a tradições, Donald Trump já discursou por duas vezes, repetindo, em ambas, uma nuance inédita: “Sr. Presidente [do Congresso], Sr. Vice-presidente, Membros do Congresso, Primeira Dama dos Estados Unidos, meus caros americanos”. Nunca antes, naquele contexto, um Presidente tinha distinguido a mulher.

Esta madrugada, Trump cumprirá a tradição pela terceira vez. Inicialmente previsto para 29 de janeiro último, o discurso foi cancelado por Nancy Pelosi, a democrata que preside ao Congresso, dada a persistência do “shutdown” — o mais longo encerramento parcial do Governo federal de sempre —, provocado por um braço de ferro entre Presidente e Congresso a propósito do financiamento do muro junto à fronteira com o México. O convite foi reendereçado após Trump aceitar reabrir o Governo — só até 15 de fevereiro.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 5 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui

25 novas “armas” (algumas letais) que entraram no arsenal dos manifestantes de Hong Kong

Em Hong Kong, a repressão policial e a demora do Governo de Carrie Lam em corresponder às exigências dos manifestantes radicalizaram os protestos. Algumas “armas” que passaram a ser usadas são reflexo disso

Prestes a cumprir seis meses — a primeira grande manifestação realizou-se a 9 de junho —, os protestos em Hong Kong conquistam cada vez mais e novos palcos. Após mega manifestações de rua que chegaram a mobilizar dois milhões de pessoas (16 de junho), os protestos irromperam de forma violenta pelo edifício do Conselho Legislativo (1 de julho), transformaram estações de metro em arenas de confronto com a polícia e obrigaram ao cancelamento de centenas de voos após manifestantes ocuparem o principal terminal do Aeroporto Internacional de Hong Kong.

Este mês, os protestos transferiram-se para dentro do campus, tomando várias universidades. A situação mais crítica viveu-se dentro do Politécnico, que se encontra cercado pela polícia desde o passado dia 17. Do seu interior, na semana passada, chegaram imagens de verdadeira guerra com manifestantes armados com arcos e flechas, fisgas e “cocktails molotov” como quem se prepara para uma dura batalha.

Se em julho passado, o Expresso realçava “25 armas não letais” usadas pelos manifestantes de Hong Kong, o episódio no Politécnico obriga a uma atualização desse arsenal, ainda que, como dizia ao Expresso um cidadão de Hong Kong no início desta semana, “a franja violenta [de manifestantes] corresponde maioritariamente a pessoas tomadas pela raiva contra a polícia. Esse número [de radicais] não irá aumentar”.

Desde segunda-feira que a direção do Politécnico tem apelado ao fim do cerco policial ao edifício. Equipas da universidade percorreram o Politécnico para procurar manifestantes que pudessem estar escondidos e convencê-los a abandonarem o local. Encontraram apenas uma mulher, na terça-feira.

Esta quinta-feira, a polícia entrou no Politécnico com o objetivo de “restaurar a segurança” e reabri-lo assim que possível. Para além de provas de vandalismo, a polícia recolheu substâncias perigosas. “Alguns produtos que encontramos são inflamáveis à temperatura de 36 graus [Celsius]”, afirmou o superintendente da polícia Li Kwai-wah. “Temos de retirá-los do local o mais rapidamente possível.”

FOTOGALERIA

BASTÃO. Com um taco de beisebol na mão, e vontade de dormir, um manifestante não baixa a guarda dentro da Universidade Chinesa de Hong Kong ATHIT PERAWONGMETHA / REUTERS
ARCO E FLECHA. Perto da Universidade Politécnica, um manifestante mais parece uma personagem de um filme sobre Robin Hood ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES
“COCKTAIL MOLOTOV”. Uma arma inimaginável nos primeiros tempos dos protestos, quando faziam notícia mega manifestações totalmente pacíficas ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES
ARMA DE BB. Este tipo de pistola permite o disparo de pequenas bolas metálicas. BB corresponde a “Ball Bullets” CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES
RAQUETE. Um manifestante tenta intercetar cartuchos de gás lacrimogéneo, durante confrontos com a polícia CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES
FISGA. Brincadeiras de infância, hoje com propósitos muito mais sérios e perigosos TYRONE SIU / REUTERS
FISGA HUMANA. Dentro do Politécnico, três manifestantes dão corpo a uma fisga humana para atirar pedras à polícia ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES
CATAPULTA. Estudantes da Universidade Batista de Hong Kong improvisam uma catapulta com que arremessam bolas de ténis por cima de uma barricada THOMAS PETER / REUTERS
ESCADA. A necessidade de subir mais alto para localizar onde está o perigo THOMAS PETER / REUTERS
PEDRA. Os guarda-chuvas não deixaram de ser usados nos protestos, mas perderam protagonismo THOMAS PETER / REUTERS
TIJOLO. Mais do que arma de arremesso, é usado em quantidade para obstruir caminhos, como este acesso à Universidade Politécnica ISAAC LAWRENCE / AFP / GETTY IMAGES
CARRINHO DE CARGA. Transporte de tijolos para construir muros de proteção, no interior do Politécnico ADNAN ABIDI / REUTERS
CIMENTO. Tudo serve para erguer e solidificar estruturas de defesa perante possíveis investidas dos agentes de segurança DALE DE LA REY / AFP / GETTY IMAGES
BALIZA. Na Universidade Chinesa de Hong Kong, a melhor defesa é o ataque SHANNON STAPLETON / REUTERS
GÁS E QUÍMICOS. Manifestantes preparam “cocktails molotov” dentro do edifício do Politécnico DALE DE LA REY / AFP / GETTY IMAGES
FOGO. Cria uma barreira entre manifestantes e polícias e denuncia o caos que resulta das situações mais intensas CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES
ESCUDO. Proteção reforçada no interior da Universidade Chinesa de Hong Kong SHANNON STAPLETON / REUTERS
PRIMEIROS-SOCORROS. A radicalização dos protestos e o aumento da repressão por parte da polícia fez jorrar sangue NICOLAS ASFOURI / AFP / GETTY IMAGES
PASSA-MONTANHAS. Um jovem de cara tapada junto a um posto de abastecimento alimentar dentro do Politécnico, durante o cerco da polícia THOMAS PETER / REUTERS
PASSA-MONTANHAS. Um jovem de cara tapada junto a um posto de abastecimento alimentar dentro do Politécnico, durante o cerco da polícia THOMAS PETER / REUTERS
VASSOURA. Um estudante solitário limpa o fundo da piscina do Politécnico, danificado por testes com os “cocktails molotov” ali fabricados ADNAN ABIDI / REUTERS
CADEIRA. O inevitável cansaço após dias e noites em missão nos protestos de Hong Kong THOMAS PETER / REUTERS
TENDA. O conforto possível dentro da Universidade Politécnica, enquanto se espera por uma nova jornada de luta THOMAS PETER / REUTERS
CORDA. Com o edifício do Politécnico cercado pela polícia, um manifestante arrisca uma manobra perigosa para tentar fugir dali ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES
FLOR. Os protestos em Hong Kong já fizeram dois mortos, um dos quais um estudante de 22 anos. Estes ramos foram deixados no Tamar Park em sua memória PHILIP FONG / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui