As imagens negras de um país às escuras mas que não se rende

A instabilidade política invadiu as casas de milhões de venezuelanos sob a forma de um “apagão” que dura desde quinta-feira. Este sábado, a falta de energia foi uma das palavras de ordem das manifestações anti-Maduro que saíram à rua, em Caracas

O sol começa a nascer mas dentro dos prédios não há luz que acompanhe o início de mais um dia VALERY SHARIFULIN / GETTY IMAGES
Sem eletricidade, para trabalhar recorre-se a geradores ou… a velas IVAN ALVARADO / REUTERS
Lá fora é dia, mas dentro deste prédio não há luz para iluminar a conversa entre dois vizinhos IVAN ALVARADO / REUTERS
Bairro residencial de Caracas, iluminado pelos faróis dos carros VALERY SHARIFULIN / GETTY IMAGES
Um homem socorre-se do telemóvel para circular dentro de casa, em Caracas IVAN ALVARADO / REUTERS
Dois empregados de um restaurante usam a luz do telemóvel para fechar a porta do estabelecimento CARLOS GARCIA RAWLINS / REUTERS
Às escuras, em casa, esta venezuelana usa um nebulizador para sentir algum conforto CARLOS JASSO / REUTERS
Fila de venezuelanos junto a uma farmácia, em Caracas CARLOS GARCIA RAWLINS / REUTERS
Arredores da capital venezuelana, durante o “blackout” MANAURE QUINTERO / REUTERS
Começa um novo dia em Caracas, mas dentro dos prédios é “noite” CARLOS GARCIA RAWLINS / REUTERS
“Sem eletricidade. Sem metro”, protesta este apoiante de Juan Guaidó, este sábado, nas ruas de Caracas RONALDO SCHEMIDT / AFP / GETTY IMAGES
Agentes da Polícia Nacional Bolivariana seguem de perto as manifestações anti-regime RONALDO SCHEMIDT / AFP / GETTY IMAGES
Apoiantes do Presidente “responderam” à oposição e, este sábado, saíram à rua para dizer que Nicolás Maduro não é um homem só CRISTIAN HERNANDEZ / AFP / GETTY IMAGES
Este apoiante de Maduro recorda Hugo Chávez e Simón Bolívar CRISTIAN HERNANDEZ / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de março de 2019. Pode ser consultado aqui

A vida ao ritmo do algoritmo

Num futuro próximo, além do bilhete de identidade, os chineses terão um código que atesta a sua credibilidade

Imagine um país onde, para poder fazer um seguro, matricular um filho numa escola privada ou comprar um bilhete de TGV, o cidadão vê a sua vida escrutinada ao mais ínfimo pormenor. Os sítios de internet que consulta, o que faz nos tempos livres, como se saiu nos exames médicos, que jornais compra, como se comporta ao volante, se costuma dar sangue — tudo é levado em linha de conta na hora de autorizar ou rejeitar o pedido.

Esse país já existe — é a República Popular da China — e essa forma de intrusão cívica está em acelerada concretização, através do Sistema de Crédito Social, um mecanismo de pontuação dos cidadãos que ora os recompensa ora os penaliza em função de comportamentos. “O Sistema de Crédito Social não é ficção científica, existe realmente”, diz ao Expresso a investigadora Meia Nouwens, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres. “Através dele, uma grande quantidade de informação pessoal, registos, geolocalização com recurso a câmaras e check-ins, transgressões da lei ou maus comportamentos diminuem a pontuação de um indivíduo. Nalguns casos, as pontuações decorrem de registos, noutros são calculadas por algoritmos, embora não haja transparência em relação à forma como os algoritmos fazem os cálculos.”

Muitas horas a jogar no computador podem rotular alguém de ocioso. Se atravessar a rua fora das passadeiras pode passar por indisciplinado. Já comprar artigos para bebé contribui para uma imagem responsável. Andar a pé indicia hábitos saudáveis. E há que ter cuidado com os amigos das redes sociais: maus exemplos podem prejudicar quem apenas os tem na lista.

A Baihe, maior plataforma chinesa de encontros, já permite que os utilizadores publiquem a sua pontuação. A aplicação Honest Shanghai, onde são avaliadas experiências — como comer num restaurante caro, por exemplo —, já usa tecnologia de reconhecimento facial. “A melhor forma de descrever o que o crédito social faz é dizer que é uma forma de tecnologia aumentada de ‘gestão social’”, diz Meia Nouwens.

Fotos de ‘cidadãos-modelo’

De iniciativa governamental, este projeto ambiciona traçar o perfil pormenorizado de cada um dos mais de 1300 milhões de habitantes da chamada China Continental — para já, Macau e Hong Kong ficam de fora. “O crédito social é uma ferramenta que torna o controlo político do Partido Comunista Chinês [PCC] inseparável do desenvolvimento económico e social da China”, explica ao Expresso a analista de política chinesa Samantha Hoffman, colaboradora do Instituto Australiano de Políticas Estratégicas. “Foi planeado para supervisionar, moldar e classificar comportamentos através de processos económicos e sociais.”

Este tipo de controlo — efetuado por agências estatais e por empresas privadas — não é uma inovação da liderança de Xi Jinping. No passado, cada cidadão tinha um ficheiro pessoal permanente (dang’an) que descrevia todo o seu percurso, nomeadamente a nível escolar e profissional. Hoje, a mais-valia é a tecnologia e “a capacidade de analisar grandes quantidades de dados em todo o país de uma forma mais holística e rápida”, explica Meia Nouwens. “Ainda não existe um sistema nacional único — é uma tarefa muito grande. Mas está decerto a ser testado.”

FRASE
“A China quer instalar um sistema orwelliano baseado no controlo virtual de todas as facetas da vida humana”
(Mike Pence, vice-presidente dos EUA, a 4 de outubro)

Em várias localidades chinesas, há programas-piloto a serem experimentados. Um dos laboratórios é a cidade de Rongcheng, na ponta leste da China. A cada um dos 740 mil residentes adultos é atribuído um crédito de 1000 pontos, que vai aumentando ou diminuindo consoante o seu comportamento. Uma multa de trânsito desconta cinco pontos. Atos heroicos acumulam 30 pontos.

Na via pública, há retratos enormes dos ‘cidadãos-modelo’. Um deles é a viúva Yuan Suoping, de 55 anos, que continuou a cuidar da sogra acamada após a morte do marido.

Em Shenzhen, no sul, há câmaras de vigilância com tecnologia de reconhecimento facial que identificam, por exemplo, peões que atravessam as ruas fora das passadeiras. Instantaneamente, são enviadas multas por mensagem. A tecnologia é desenvolvida pela startup local Intellifusion.

Na aldeia de Jiakuang Majia, no Leste, a pontuação é gerida de forma mais artesanal. Há fichas em papel onde funcionários do Estado vão fazendo contas: montar novos cestos no campo de basquetebol, oferecer uma televisão ao centro cívico, fazer voluntariado ou ter um filho a servir no Tibete dão pontos.

A nível nacional, este sistema já deixou em terra 5,4 milhões de chineses que pretendiam viajar em comboios de alta velocidade. Outros 17 milhões foram impedidos de comprar bilhete de avião. Em 2013, a justiça chinesa aprovou uma “lista negra” de devedores e estima-se que seja esse ranking que esteja na origem dessas proibições.

Para Pequim, há que promover a confiança na sociedade e na economia. Samantha Hoffman faz outra leitura: “O crédito social está ligado ao conceito de ‘construção espiritual da civilização’. A sua origem remonta à propaganda dos anos 1980 em resposta à desilusão popular com o PCC e à atração por ideias estrangeiras”. O objetivo é “impedir que versões alternativas da ‘verdade’ ameacem o poder do partido”.

FOTO: O reconhecimento facial é um dos elementos do sistema de vigilância chinês FOTO ILUSTRAÇÃO DA “TIME”, SOBRE UMA FOTO DE GILLES SABRIÉ / THE NEW YORK TIMES / REDUX

Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de março de 2019 e republicado no “Expresso Online”, no mesmo dia, com o título “Não é ficção: a china quer pontuar todos os comportamentos de cada cidadão”. Pode ser consultado aqui 

Porque se dão tão mal a Índia e o Paquistão?

Nasceram ao mesmo tempo e logo voltaram as costas um ao outro. Mais de 70 anos depois são uma ameaça para o mundo

1 — O que está na origem desta rivalidade?

Índia e Paquistão conquistaram a independência em 1947, na sequência da partição da Índia Britânica. Entre os dois novos Estados — o primeiro de maioria hindu, o outro muçulmana —, uma ferida ficou aberta: o território fronteiriço de Caxemira, que ambos querem controlar. Essa disputa já originou três guerras (1947, 1965 e 1999) entre o país do Mahatma Gandhi e o de Malala Yousafzai. Já no século XXI, a rivalidade entre Islamabade e Nova Deli continuou a jorrar sangue. Em 2008, aquele que é considerado o “11 de Setembro” da Índia — ataques à bomba em vários pontos de Bombaim fizeram mais de 160 mortos — foi realizado por paquistaneses do grupo islamita Lashkar-e-Taiba.

2 — Qual a importância da região de Caxemira?

Situado nos Himalaias, este território partilhado por Índia, Paquistão e China é uma barreira natural a infiltrações exteriores. A Índia alega que a Caxemira lhe pertence por ter sido parte integrante dos estados governados por marajás. O Paquistão diz que é a população (de maioria muçulmana) que deve decidir em referendo. Mas outra razão pesa cada vez mais: a região é um grande depósito de água dos glaciares, recurso estratégico para países populosos e em crescimento como a Índia (1350 milhões de habitantes) e o Paquistão (200 milhões). Em 1960, o Tratado das Águas do Indo apartou águas: cada país passou a controlar três afluentes.

3 — Porque se receia um conflito entre ambos?

Uma guerra indo-paquistanesa ameaça todo o mundo. Os dois países têm armas nucleares e não são signatários do Tratado de Não Proliferação Nuclear de 1970. Em 1965, o Presidente paquistanês Zulfiqar Ali Bhutto avisou: “Se a Índia desenvolver a bomba, comeremos relva, até passaremos fome, mas também obteremos a nossa. Não temos alternativa”. Em 1974, a Índia testou com êxito o “Buda Sorridente”, nome de código do primeiro lançamento nuclear. O vizinho acompanhou a corrida. Considerado o pai da bomba paquistanesa, o cientista Abdul Qadir Khan seria preso, implicado na proliferação nuclear na Coreia do Norte, Líbia e Irão.

4 — Que outros fatores criam instabilidade?

Alvo de grupos islamitas com ligações à jihad internacional, a Índia alberga fações terroristas com agendas internas: movimentos separatistas, extremistas da minoria muçulmana e da maioria hindu. Já o Paquistão, a quem a Índia acusa de treinar, armar e incentivar revoltas muçulmanas, é um país muito exposto à conflitualidade nesse “cemitério de impérios” que é o Afeganistão. Mas apesar do vespeiro afegão, é a rivalidade com a Índia que mais o preocupa.

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de março de 2019. Pode ser consultado aqui