Abdelaziz Bouteflika renunciou ao poder na Argélia após quase seis semanas de protestos populares. Ao Expresso, um professor da Universidade do Qatar recorda um Presidente que não era democrata, mas que levou a paz ao país após uma sangrenta guerra civil

Parecem festejos alusivos a um grande feito futebolístico. Mas a euforia popular que tomou conta da capital da Argélia celebra um outro tipo de conquista: o afastamento de um líder que já levava 20 anos de poder. A saída de Abdelaziz Bouteflika segue-se a quase seis semanas de manifestações populares que “surpreenderam toda a gente, até os próprios manifestantes”, diz ao Expresso Youcef Bouandel, professor na Universidade do Qatar.
“A primeira exigência visou a rejeição de um quinto mandato presidencial de Bouteflika, mas as autoridades não deram uma resposta rápida”, recorda este professor de Ciência Política. “Depois, o Presidente disse que não tinha intenções de se candidatar, mas adiou as eleições presidenciais e convocou uma conferência nacional de diálogo”, numa aparente tentativa de ganhar tempo.
Esta terça-feira, cedeu finalmente à pressão e formalizou a renúncia à presidência da Argélia. A decisão adiou “sine die” as eleições presidenciais previstas para dentro de duas semanas, 18 de abril.
Regime podre, povo com moral elevada
Numa comparação inevitável com os primeiros meses da Primavera Árabe, em 2010-2011 — que varreu o Norte de África, levando à queda dos líderes da Tunísia, do Egito e da Líbia —, Bouandel salienta o facto de os protestos na Argélia terem decorrido de forma pacífica.
“As exigências do povo aumentaram devido à natureza tanto dos manifestantes como do regime. Os protestos têm sido pacíficos, organizados e realizam-se nos quatro cantos do país. Quanto ao regime, está muito podre e as pessoas sentiram que tinham a moral elevada e uma oportunidade única para se livrarem deste regime que não podia ser desperdiçada. Os manifestantes não querem que fique ninguém associado ao regime.”
Abdelaziz Bouteflika sai do poder aos 82 anos e muito debilitado já que, desde 2013, quando sofreu um AVC, só se deslocava em cadeira de rodas. Raramente surgia em público e deixou de fazer viagens ao estrangeiro. Nas ruas, ao desfraldarem gigantescas bandeiras da Argélia, os manifestantes pareciam querer dizer-lhe que o seu apego ao poder não podia sobrepor-se ao amor de todos pelo país.
“Bouteflika não era um democrata, nunca o foi. Era um líder narcisista que não tolerava que discordassem dele”, comenta Bouandel. “Rodeou-se de ‘yes men’ que ajudaram a cimentar a ideia de que ele era o salvador da Argélia: trouxe paz e estabilidade ao país através do seu projeto de reconciliação nacional”, após a guerra civil dos anos 1990. Estima-se que nela tenham morrido cerca de 200 mil civis.
Bouteflika tem o mérito de ter afastado a ameaça extremista que sangrou o país nessa “década negra”, quando grupos islamitas vingaram a anulação da vitória da Frente Islâmica de Salvação (FIS) na primeira volta das eleições legislativas de 1991 espalhando a violência pelo país.
Em 1999, quando Bouteflika subiu ao poder, os argelinos viviam sob o signo do medo e sem grandes aspirações democráticas. O seu desaparecimento iniciará um novo — e incerto — capítulo na história do país.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui