Os presidentes vão caindo. ‘Não chega’, diz o povo

Derrubaram os líderes, mas querem garantias de uma nova era. Argelinos e sudaneses continuam nas ruas

Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika foi apenas o alvo óbvio. A revolta do povo argelino — coroada de êxito com a renúncia do Presidente, a 2 de abril passado — tem, porém, um objetivo maior: o fim de um regime monolítico e anacrónico que não corresponde aos anseios de uma população de 40 milhões em que quase metade tem menos de 25 anos.

“Queremos um Presidente que nos entenda. Queremos viver aqui e não imigrar para a Europa”, dizia Bouzid Abdoun, um engenheiro de 25 anos, à reportagem da agência Reuters, numa das manifestações de sexta-feira que, desde 22 de fevereiro, continuam a sair à rua semana após semana.

Desde que Bouteflika saiu de cena, os argelinos têm direcionado os seus protestos contra o triunvirato “3B” — Abdelkader Bensalah (presidente interino), Noureddine Bedoui (primeiro-ministro) e Tayeb Belaiz (ministro do Interior). “Por enquanto, os manifestantes estão unidos em torno de uma ideia: derrubar o regime”, diz ao Expresso Youcef Bouandel, professor de Ciência Política na Universidade do Qatar. “Há um apoio popular muito grande a um sistema político democrático. A ‘rua’ parece expressar este sentimento ao pedir o afastamento de ‘Le Pouvoir’ e a instauração de um sistema mais democrático”, acrescenta Ishac Diwan, professor na Universidade de Harvard (EUA).

“Le Pouvoir” (O Poder) é a alcunha que os argelinos usam para se referirem ao regime composto por veteranos de guerra, magnatas dos negócios e funcionários da Frente de Libertação Nacional, o partido no poder desde a independência (1962). Prossegue Diwan: “Quando lemos os editoriais na imprensa argelina, as exigências políticas são: um sistema político de governação mais descentralizado e parlamentar, um sistema judicial independente e órgãos de informação não dominados pelo Estado.”

Veteranos do poder

Oito anos após o movimento conhecido como “Primavera Árabe” (ver “Contexto”), a rua árabe continua reivindicativa. Nove dias após o argelino Bouteflika abdicar, o Presidente Omar al-Bashir foi deposto pelos militares, no Sudão, na sequência de grandes manifestações populares. Excetuando alguns monarcas, eram os líderes árabes há mais tempo no poder: Bouteflika estava a menos de um mês de completar 20 anos no cargo e Bashir — indiciado no Tribunal Penal Internacional por genocídio e crimes contra a Humanidade praticados na região do Darfur — ficou a pouco mais de dois meses de governar 30 anos.

Esta semana, o principal grupo de protesto sudanês expressou desconfianças em relação aos militares e às promessas feitas no sentido da transferência do poder para os civis. Manifestantes e ativistas têm estado a negociar com os militares a formação de um órgão de transição conjunto, mas não conseguem chegar a acordo sobre em que mãos ficará a autoridade.

“Com o passar do tempo, os poderes do conselho militar estão a aumentar, o que é um perigo muito grande para a revolução sudanesa”, afirmou na terça-feira Mohammed Naji Elasam, porta-voz da Associação dos Profissionais Sudaneses, que lidera um amplo grupo de ativistas e opositores. No mesmo dia, os protestos voltaram a Cartum, com estradas bloqueadas, pedras arremessadas e pneus em chamas em várias zonas da capital. Em frente ao Ministério da Defesa continua, desde 6 de abril, um protesto em permanência, que os generais sudaneses prometeram não dispersar.

A exceção marroquina

Na ponta ocidental do Magrebe, também Marrocos não tem escapado à agitação, ainda que, como refere ao Expresso Raúl Braga Pires, ex-professor na Universidade de Rabat, o país “aproveite qualquer tipo de manifestação para poder dizer ao mundo que não há súbdito que não seja livre de se manifestar”. “Sair à rua e protestar insere-se na categoria da ‘exceção marroquina’ no Magrebe e restante mundo islâmico. É prática comum, sendo mesmo curricular em certos sectores, como é o caso dos ‘Diplômés Chaumeurs’ [Graduados desempregados] que se manifestam diariamente, das 16h às 18h, em frente ao Parlamento, exigindo serem integrados no sector público e em Rabat, de preferência.”

Mas há manifestações de outra natureza com mais potencial para indispor Mohammed VI, ainda que a sua autoridade não seja questionada nas ruas. É o caso dos protestos iniciados no Rif (norte, região berbere), após a morte de um peixeiro de Al-Houceima que se atirou para dentro de um camião do lixo para impedir a destruição de 500 quilos de espadarte que tinham sido apreendidos, e ali morreu esmagado, em 2016.

A contestação originada pela tragédia extravasou o Rif. “As manifestações atuais em várias cidades, nomeadamente Rabat, têm exigido a libertação do líder do Hirak, condenado a 20 anos de prisão por ter liderado os protestos no caso do peixeiro e que se tornaram transversais a outros, sobretudo de cariz berbere”, refere Braga Pires, autor do blogue “Maghreb/Machrek”. “Poderão dar azo a uma insatisfação mais generalizada por parte das comunidades berberes, que misturam tudo, tantas são as queixas que têm. Mas não é um caso que una esquerda e direita, oposição e fiéis ao regime.”

CONTEXTO

Manifestações
Em 2010, protestos tomam a Tunísia após um vendedor se imolar pelo fogo em desespero

Movimento
Os protestos contra o regime contagiaram outros países, no que ficou conhecido como “Primavera Árabe”

Ditadores
Quatro líderes caíram: Ben Ali (Tunísia), Mubarak (Egito), Kadhafi (Líbia) e Saleh (Iémen)

Conflitos
Na Líbia, Síria e Iémen, aos protestos seguiram-se guerras

(FOTO Manifestantes na Argélia pedem: “Liberdade para a Argélia”, “Fim de jogo! Sai!” WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de maio de 2019. Pode ser consultado aqui

A ano e meio das eleições, há já 23 candidatos que querem bater o pé a Donald Trump

Faltam 18 meses para as eleições presidenciais nos Estados Unidos e 24 personalidades já andam de microfone na mão a tentar convencer eleitores. A batalha mais intensa trava-se entre os democratas, que têm no terreno 22 candidatos. No campo republicano, Donald Trump é (quase) apenas um observador

No mesmo dia em que tomou posse como 45.º Presidente dos Estados Unidos, a 20 de janeiro de 2017, Donald Trump fez soar o tiro de partida da corrida às eleições de 2020 e formalizou a sua recandidatura. Esta sexta-feira, a exatamente ano e meio das presidenciais — e também a nove meses do “caucus” do Iowa, que tradicionalmente marca o início oficial da fase das primárias —, Trump conta já com 23 concorrentes, 22 deles a competir pela nomeação democrata.

“No atual estado da corrida, há na minha opinião quatro nomes a olhar como possíveis vencedores, embora em diferentes estados de desenvolvimento e afirmação das respetivas candidaturas”, comenta ao Expresso Germano Almeida, analista de política americana.

“Joe Biden e Bernie Sanders são os ‘frontrunners’ [favoritos] e todas as sondagens o demonstram para já. Beto O’Rourke e Pete Buttigieg são os ‘challengers’ [desafoadores], ambos com potencial para crescer o suficiente até ao final da corrida a ponto de poderem ganhar, mas nesta fase com menos de metade das intenções de Biden e Sanders. O passado beneficia, nesta fase da corrida, a maior notoriedade de ambos. Mas o tempo está a favor de O’Rourke e Buttigieg — e geralmente as eleições americanas premeiam o ‘futuro’).”

As duas sondagens divulgadas após Joe Biden anunciar a sua candidatura, a 25 de abril, atribuem-lhe uma vitória inequívoca num possível confronto direto com Donald Trump a 3 de novembro de 2020. O ex-vice-presidente de Barack Obama consegue 43% contra 36% na pesquisa da empresa HarrisX e 51% contra 45% na da CNN.

“Joe Biden é forte em dois segmentos onde Hillary falhou (nos homens e nos brancos) e é forte no Midwest, a zona do mapa eleitoral onde Trump bateu inesperadamente Hillary”, em concreto os estados da Pensilvânia, do Michigan e do Wisconsin onde a diferença entre ambos não chegou a 100 mil votos.

Qual o favorito de Barack Obama?

Contrariamente ao que fez com Hillary Clinton, em 2016, Barack Obama (ainda) não declarou apoio. “Mas na prática já está a ajudar Biden — e basta olhar para o logótipo da campanha Biden para se perceber o desejo de ‘herança’ e ‘continuidade’ em relação aos dois mandatos de Obama que Joe Biden pretende corporizar. De resto, Obama aceitou fazer parte de um dos primeiros vídeos de campanha, para dizer que apesar da idade de Joe, ele ‘está muito longe do fim’ e foi sempre ‘resiliente e leal’.”

Precisamente a idade dos candidatos mais veteranos pode tornar-se um grande obstáculo para as pretensões democratas. “Quer Biden quer Sanders serão, de muito longe, o mais velho Presidente da história americana. Têm esse problema para enfrentar: convencer os democratas e, depois, todo o eleitorado americano de que estarem próximos dos 80 anos quando da tomada de posse não será uma barreira intransponível para derrotarem Trump.”

À parte a idade, estes dois “pesos pesados” da política norte-americana pouco têm em comum. “São muito diferentes. Biden é moderado, Sanders é radical. Joe herda o essencial dos anos Obama, Bernie elogia alguns aspetos mas é crítico da proximidade de Obama com o ‘establishment’. Biden defende a classe média dentro de uma visão ‘americana’ de premiar o mérito e não carregar excessivamente nos impostos, Sanders promete agravamento fiscal que leve a que o Estado tenha mais recursos para assumir uma redistribuição da riqueza mais justa”, enumera Germano Almeida.

“Sanders aposta no discurso ‘sexy’ de arrasar o ‘establishment’, Biden corre o risco de ficar com o rótulo de ser o candidato do sistema (e isso, por estes dias, é perigoso para quem vai a eleições). A grande armadilha em que os democratas podem cair será a de nomearem Bernie Sanders e, com isso, contribuírem para a reeleição de Trump. Sanders tem propostas demasiado radicais e demasiado à esquerda para o americano comum. Num duelo final com Trump, não terá grandes hipóteses de vitórias.”

As esperanças Beto e Pete

Dos 24 candidatos que já andam de microfone na mão, a tentar convencer o eleitorado, 22 estão empenhados na nomeação democrata.

“O ex-congressista estadual Beto O’Rourke, do Texas, parecia ser a maior esperança do centro político da América para estas eleições. Junta enorme carisma com apoios de eleitores independentes e até de republicanos, com o aliciante de alargar o mapa eleitoral dos democratas para os estados do Sul, geralmente reservados aos republicanos. Mas não está a descolar e terá sido a maior vítima do ‘momentum’ de Pete Buttigieg, que pode ser a grande surpresa destas eleições.”

Pete Buttigieg é o primeiro candidato assumidamente homossexual numas presidenciais norte-americanas. “Casado com um homem, está a transformar esse aparente problema junto do eleitorado mais conservador num tema forte de campanha. Tem um discurso moral, com uma componente religiosa, o que pode ser um trunfo para a eleição geral (os democratas estão a perder grande parte do voto mais religioso para os republicanos). Com 37 anos, pretende ser o mais jovem nomeado e o mais jovem Presidente de sempre.”

Seis mulheres na corrida

Numa entrevista concedida pouco antes de sair da Casa Branca, Obama projetou uma necessária renovação geracional na liderança democrata e identificou dois nomes: precisamente Pete Buttigieg e também Kamala Harris, senadora pela Califórnia e uma das seis mulheres que estão na corrida.

“Kamala Harris é a única que ainda pode chegar lá, mas com hipóteses muito reduzidas. Entrou muito forte, chegou a aparecer em segundo lugar, mas depois dos avanços de Bernie Sanders, Beto O’Rourke e agora Joe Biden, e sobretudo com a afirmação mediática de Pete Buttigieg, já quase não se ouve falar dela.”

Entre as restantes cinco candidatas, o analista identifica apenas uma que pode superar a fasquia dos 5% de votos — a senadora Elizabeth Warren, do Massachussets. “Mas depois do avanço de Bernie Sanders ficou sem espaço de crescimento”, diz Germano Almeida. “Elizabeth e Bernie disputam os sectores mais à esquerda do Partido Democrata. Ela teria hipóteses reais se conseguisse duas coisas nesta corrida: ser a herdeira do movimento Sanders 2016 (46% do voto democrata) e aliar a isso os créditos de ter feito parte da Administração Obama e de ter querido sair quando achou que Barack Obama não iria, afinal, tão longe quanto a esquerda americana desejaria em temas como a regulação financeira ou a reforma fiscal.”

No campo republicano, Donald Trump está tranquilo em matéria de primárias. Até ao momento, tem apenas um adversário com que se preocupar — o advogado Bill Weld. Sem perspetivas de vencer, o ex-governador do Massachusetts tem, na interpretação de Germano Almeida, autor do livro “Isto não é bem um Presidente dos EUA” (Prime Books, 2018), um objetivo: “Avisar o Partido Republicano de que os efeitos de um segundo mandato presidencial de Donald Trump podem ser destruidores para o argumentário clássico do conservadorismo americano.“

“Tendo em conta o comportamento do Presidente, e também a sua agenda (em vários aspetos contraditória com o que os republicanos andaram a defender durante décadas)”, conclui o analista, “um apoio cúmplice e passivo de todo o Partido Republicano a Trump seria a total capitulação”.

(IMAGEM US EMBASSY & CONSULATES IN THE UNITED KINGDON)

Donald Trump, 72 anos, republicano, empresário, 45º Presidente dos Estados Unidos DARREN HAUCK / GETTY IMAGES
John Delaney, 56 anos, democrata, antigo deputado na Câmara dos Representantes pelo estado do Maryland JOSHUA LOTT / AFP / GETTY IMAGES
Andrew Yang, 44 anos, democrata, empresário de origem chinesa. Propõe pagar 1000 dólares por mês a cada norte-americano maior de 18 anos em resposta à robotização da economia LUCY NICHOLSON / REUTERS
Elizabeth Warren, 69 anos, democrata, senadora pelo Massachusetts KAREN PULFER FOCHT / REUTERS
Tulsi Gabbard, 38 anos, democrata, deputada na Câmara dos Representantes pelo Hawai ETHAN MILLER / GETTY IMAGES
Julián Castro, 44 anos, democrata, secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbano no segundo mandato de Barack Obama. Tem ascendência mexicana CARLOS BARRIA / REUTERS
Kirsten Gillibrand, 52 anos, democrata, senadora por Nova Iorque SCOTT OLSON / GETTY IMAGES
Kamala Harris (à direita), 54 anos, democrata, senadora pela Califórnia. É filha de uma indiana e de um jamaicano BRIAN SNYDER / REUTERS
Pete Buttigieg, 37 anos, democrata, “mayor” de South Bend, Indiana. Este veterano da guerra no Afeganistão é o primeiro candidato assumidamente homossexual ELIJAH NOUVELAGE / REUTERS
Marianne Williamson, 66 anos, democrata, escritora. Dos seus 13 livros, quatro chegaram a nº 1 na lista de “bestsellers” do jornal “The New York Times” BOB STRONG / REUTERS
Cory Booker, 50 anos, democrata, senador por New Jersey ANDREW KELLY / REUTERS
Amy Klobuchar, 58 anos, democrata, senadora pelo Minnesota SCOTT OLSON / GETTY IMAGES
Bill Weld, 73 anos, republicano, ex-governador do Massachusetts. Nas eleições de 2016, foi candidato à vice-presidência, pelo Partido Libertário, ao lado de Gary Johnson HUTTON SUPANCIC / GETTY IMAGES
Bernie Sanders, 77 anos, independente, senador pelo Vermont desde 2007, eleito nas listas do Partido Democrata. Em 2016, perdeu as primárias democratas para Hillary Clinton LUCY NICHOLSON / REUTERS
Jay Inslee, 68 anos, democrata, governador do estado de Washington. As alterações climáticas são a sua principal motivação para concorrer às eleições MARIO TAMA / GETTY IMAGES
John Hickenlooper, 67 anos, democrata, ex-governador do Colorado. Tem formação em Geologia ZACH GIBSON / GETTY IMAGES
Wayne Messam, 44 anos, democrata, “mayor” de Miramar, Florida. Filho de jamaicanos, é dono de uma empresa de construção JOE RAEDLE / GETTY IMAGES
Beto O’Rourke, 46 anos, democrata, ex-deputado na Câmara dos Representantes pelo Texas. Foi baixista numa banda de “post-hardcore” (género musical derivado do punk) MARIO TAMA / GETTY IMAGES
Mike Gravel, 88 anos, democrata, ex-senador pelo Alaska. Ao centro na foto (datada de 2011), fala com participantes num protesto contra banqueiros, financeiros e políticos, em Zurique (Suíça) ARND WIEGMANN / REUTERS
Tim Ryan, 45 anos, democrata, membro da Câmara dos Representantes pelo Ohio AARON JOSEFCZYK / REUTERS
Eric Swalwell, 38 anos, democrata, deputado na Câmara dos Representantes pela Califórnia JOE RAEDLE / GETTY IMAGES
Seth Moulton, 40 anos, democrata, membro da Câmara dos Representantes pelo Massachusetts. Liderou um dos primeiros pelotões de infantaria a entrar em Bagdade, na invasão ao Iraque (2003) SCOTT EISEN / GETTY IMAGES
Joe Biden, 76 anos, democrata, vice-presidente dos EUA nos dois mandatos de Barack Obama (2009-2017). Foi senador pelo Delaware durante mais de 30 anos SCOTT OLSON / GETTY IMAGES
Michael Bennet, 54 anos, democrata, senador pelo Colorado ALEX WONG / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de maio de 2019. Pode ser consultado aqui