O ataque são as sanções, dizem os iranianos

A ameaça americana não aumentou a angústia do povo mas um ministro iraniano avisa que a haver guerra, ela não será curta

Estados Unidos e Irão estiveram, esta semana, a dez minutos de uma confrontação militar. Garantiu-o Donald Trump, que afirmou ter abortado um ataque iminente contra alvos iranianos em resposta ao abate de um drone americano.

Nas ruas de Teerão, a notícia não provocou especial ansiedade — não que, para os iranianos, a ameaça não seja credível, mas apenas porque… já estão habituados a viver sob tensão. “Nos últimos meses, apesar de a maioria dos iranianos viver sob grande pressão económica, sob tensões políticas e ameaças de uma guerra desencadeada pelos EUA, quando andamos na rua ou observamos os comportamentos das pessoas percebemos que não existe uma atmosfera própria de uma situação anormal ou de medo da guerra”, diz ao Expresso, da capital iraniana, Farzaneh Amirabdollahian, de 42 anos. “Mesmo nas redes sociais, as pessoas fazem piadas sobre as ameaças de Trump, o que mostra que não o levam muito a sério.”

A inimizade entre EUA e Irão tem sido uma constante desde a Revolução Islâmica de 1979. A partir de então não houve relações diplomáticas. O desanuviamento proporcionado pelo acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, em 2015, desapareceu com a entrada de Trump na Casa Branca. O Presidente retirou os EUA do acordo e repôs as sanções ao Irão. “Os EUA já começaram a guerra contra o povo iraniano ao intensificarem as sanções, mas nós vamos resistir e não desistimos”, diz a iraniana.

“É óbvio que no meu país ninguém quer a guerra. Já provámos esse gosto amargo nos anos 80.” O Irão diz ter tido mais de um milhão de mortos na guerra com o Iraque (1980-88). “Por isso, tentamos ser pacientes e tolerar o pesado fardo da pressão económica como resultado das sanções cruéis.” As últimas sanções aprovadas por Washington, anunciadas esta semana, visaram diretamente o ayatollah Ali Khamenei. “Impor sanções ao líder supremo, que emitiu uma fatwa [decreto] contra todas as formas de armas de destruição maciça, é um ataque direto à nação”, defendeu o porta-voz do Governo de Teerão, Ali Rabiei. “Esta medida aumentará a união do povo iraniano.”

“NAS REDES SOCIAIS, AS PESSOAS FAZEM PIADAS SOBRE AS AMEAÇAS DE TRUMP, O QUE MOSTRA QUE NÃO O LEVAM MUITO A SÉRIO”

Washington e Teerão dizem não querer a guerra, mas esse cenário domina a retórica das duas capitais. Quarta-feira, Trump aludiu a essa possibilidade: “Não falo de tropas no terreno. Digo apenas que se acontecer alguma coisa, não durará muito tempo.” Respondeu-lhe o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano: “Guerra curta com o Irão é uma ilusão.”

Os “B” que querem a guerra

Javad Zarif é um rosto moderado do regime dos ayatollahs e um dos artífices do acordo de 2015. No contexto atual, tem sido uma voz combativa das intenções de Trump e… da “equipa B”, que “despreza a diplomacia e está sedenta de guerra”: são eles Bolton, ‘Bibi’, Bin Salman e Bin Zayed.

Conselheiro de segurança nacional de Trump, o ultraconservador John Bolton é um dos grandes arquitetos da invasão ao Iraque de 2003 e um defensor da mudança de regime em Teerão. Entrou para a equipa de Trump em março de 2018, sem esconder ao que ia: em agosto de 2017, na publicação “National Review”, assinara o “Nas redes sociais, as pessoas fazem piadas sobre as ameaças de Trump, o que mostra que não o levam muito a sério” artigo “Como sair do acordo nuclear iraniano” — o que veio a acontecer em maio de 2018.

‘Bibi’ é a alcunha do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Se na terminologia do fundador da República Islâmica, o ayatollah Ruhollah Khomeini, os EUA são o “grande Satã”, Israel é o “pequeno Satã”. Outros “B” são os príncipes herdeiros da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos. O primeiro, Mohammad bin Salman, representa a maior monarquia árabe sunita do Médio Oriente, que tem como grande rival o Irão, República persa xiita. Já Mohammed bin Zayed Al Nahyan foi considerado por “o governante árabe mais poderoso” pelo jornal “The New York Times”.

“O mais importante é que o Irão nunca invadiu qualquer país e nunca o fará. Mas estará sempre preparado para defender a nação”, conclui Farzaneh.

(FOTO Pormenor de um mural antiamericano, num muro da antiga embaixada dos Estados Unidos em Teerão PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui

Hong Kong em corrida contra o tempo

O estatuto de autonomia do território acaba em 2047. Ao protestar, o povo tenta proteger as suas liberdades

“Imagine que Espanha decidia que há uma nação ibérica, reivindicava Portugal, impunha a língua espanhola ao povo português e dizia que para se ser ibérico você teria de adotar a identidade, cultura e tradições espanholas. E também que teria de esquecer a sua própria história e concentrar-se na história de Espanha.”

O exercício é proposto ao Expresso por um cidadão de Hong Kong a viver no Reino Unido. Através dele, pretende explicar o que se passa atualmente no território onde nasceu há 39 anos e que tem levado às ruas gigantescas manifestações populares — no protesto de domingo passado terão participado dois milhões de pessoas.

“Os chineses de Hong Kong são predominantemente falantes de cantonês, com cultura própria e uma identidade formada num território mais liberal e livre, onde podiam discutir abertamente tudo o que queriam, protegidos pelo Estado de direito. No entanto, Pequim está a construir uma nação e a tentar criar um único povo chinês”, diz Evan Fowler, diretor do jornal digital “Hong Kong Free Press”.

“Isto tem provocado mudanças nas escolas, substituindo o ensino do cantonês, como língua-mãe, pelo do ‘putonghua’ [mandarim]. Vemos lojas, especialmente de luxo, a usarem o ‘putonghua’”, conclui.

A avançada chinesa sobre Hong Kong começou a desbravar caminho em 1997, após a transferência para soberania chinesa daquela que era uma colónia britânica — cedida ao Império Britânico pela dinastia Qing no fim da Primeira Guerra do Ópio, em 1842.

Um país, dois sistemas

O território passou a gozar de um estatuto especial que lhe confere autonomia em relação a Pequim, sobretudo a nível económico (“um país, dois sistemas”), e permite que os cidadãos beneficiem de direitos não extensíveis aos habitantes da China Continental. Entre eles, a possibilidade de se manifestarem nas ruas, o que têm feito profusamente quando sentem as liberdades ameaçadas ou, como diz Evan Fowler, “as suas vidas invadidas”.

Os protestos destacam uma acérrima defesa das liberdades num território que não goza de democracia plena

Na mira dos megaprotestos atualmente em curso está uma polémica revisão à lei da extradição (que expira em julho de 2020) que passaria a permitir o envio de cidadãos de Hong Kong para serem julgados na China.

“As pessoas temem que, dadas as falhas dos sistemas legais da China — acusações falsas, recurso à tortura, confissões forçadas —, todos possam potencialmente ser presos e extraditados para a China para enfrentar acusações. Como se diz em Hong Kong, a lei da extradição produzirá ‘desaparecimentos’ legais, com agentes a raptarem pessoas e a levarem-nas para a China. Há muito medo. Hong Kong deixará de ser um lugar seguro, não será diferente do resto da China.”

Num plano mais sistémico, os protestos em Hong Kong revelam uma acérrima defesa das liberdades num território que não goza de uma democracia plena. O sufrágio universal popular apenas é usado para eleger os conselheiros distritais (que não têm poder político) e metade dos 70 lugares do Conselho Legislativo, o órgão onde ia ser debatida a nova lei da extradição até o Governo a ter suspendido por pressão da rua. O chefe do Executivo — que desde 2017 é Carrie Lam, de 62 anos — é escolhido por um colégio eleitoral, maioritariamente pró-Pequim.

“Este sistema é menos democrático do que aquele que Chris Patten [o último governador britânico de Hong Kong] implantou com a reforma de 1994”, diz Evan Fowler. “Está desenhado para assegurar a forma de governação de Hong Kong e que os interesses pró-Pequim beneficiem de uma maioria na assembleia legislativa. Por isso o povo de Hong Kong recorreu à obstrução para atrasar o processo legislativo. O protesto do dia 12 [dia em que o Conselho Legislativo ia começar a debater a nova lei e os manifestantes cercaram o edifício] foi um exercício de obstrução pública”, para boicotar a sessão da assembleia.

Um país, um sistema?

Em 2014, numa ação de protesto que ficaria conhecida como Movimento dos Guarda-Chuvas, o centro de Hong Kong foi ocupado e bloqueado durante 77 dias por manifestações permanentes. O motivo da contestação foi uma reforma do sistema eleitoral que daria ao povo o direito de voto na escolha do chefe do Executivo, mas subordinaria os candidatos ao cargo à aprovação de Pequim. A proposta seria rejeitada pelo Conselho Legislativo por 28 votos contra 8, com muitos legisladores pró-Pequim a saírem da sala para tentar evitar a votação.

Antes, Hong Kong era a ‘vanguarda’ que abriria caminho à China. Agora Hong Kong tem de mudar para se integrar na China autoritária

Ceder à pressão das ruas — neste caso, retirando a lei em definitivo e não apenas suspendendo-a — é incómodo para Pequim pelo sinal que dá a nível interno. Porém, o tempo corre a seu favor… O estatuto especial de que beneficia Hong Kong desde 1997 não pode ser alterado durante 50 anos. No território receia-se que, chegados a 2047, entre em vigor uma fórmula “um país, um sistema” que prive os habitantes das liberdades de que agora usufruem.

“Antes dizia-se que Hong Kong seria a ‘vanguarda’ que abriria caminho à China, enquanto esta se liberalizava. A esperança era de que a China se tornasse um país mais aberto, liberal e democrático, no sentido do que Hong Kong representa. Infelizmente, não me parece que a China tenha intenção de ir por esse caminho. Desde 2012 o sentimento é de que é Hong Kong que tem de mudar para se integrar na China autoritária em 2047”, conclui Evan Fowler.

“A questão é: quanto tempo demorará Hong Kong a ser despojado das suas diferenças fundamentais para garantir uma integração suave na China Continental?” É contra esse desígnio que o povo de Hong Kong se manifesta.

IMAGEM Megaprotesto em Hong Kong contra a lei da extradição, a 16 de junho de 2019 STUDIO INCENDO / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui

Quando as primeiras-damas cantam a mesma canção

A aproximação entre países beneficia de um trabalho diplomático transversal que, muitas vezes, envolve também as primeiras-damas. É o caso da China e das duas Coreias, onde as mulheres dos Presidentes têm um passado comum: são as três antigas cantoras. Duas delas voltam agora a estar juntas, numa capital pouco comum para um encontro entre ambas

Ri Sol-ju (à esquerda) e Kim Jung-sook convivem durante um almoço em Pyongyang, à margem da cimeira intercoreana de setembro de 2018 FOTO GETTY IMAGES

A recente abertura da Coreia do Norte ao mundo, tornada possível pela mão que lhe estendeu Donald Trump, provocou uma discreta mudança no protocolo norte-coreano. Dias antes da histórica cimeira intercoreana de 27 de abril de 2018, na zona desmilitarizada de Panmunjom — onde, pela primeira vez, um líder norte-coreano pisou território do Sul —, a televisão pública norte-coreana noticiou a presença da mulher do líder Kim Jong-un, Ri Sol-ju, num espetáculo de ballet de uma companhia chinesa, em Pyongyang.

O espaço informativo foi apresentado por Ri Chun-hee, a famosa pivô dos anúncios importantes, que se referiu a Ri Sol-ju como “respeitada primeira-dama”. Até então, ela era sempre referida como “camarada Ri Sol-ju”.

Em vésperas de cimeiras importantes com a Coreia do Sul e com os Estados Unidos, este impulso ao estatuto da mulher do Presidente norte-coreano tornou-a “igual entre iguais” no contacto com outras primeiras-damas e deu para o exterior uma aparência de normalidade ao regime de Pyongyang.

Kim Jong-un e a mulher inauguram um parque de diversões em Pyongyang REUTERS

Desde março de 2018, quando Kim Jong-un efetuou a sua primeira viagem ao estrangeiro — à China —, Ri Sol-ju já privou com duas homólogas: a chinesa Peng Liyuan e a sul-coreana Kim Jung-sook. Dos encontros saíram imagens de grande empatia, que as obrigações protocolares não explicarão na sua totalidade. É que as três partilham uma paixão comum que, no passado, as levou a trilhar o mesmo percurso: são antigas cantoras.

A chinesa e a norte-coreana acabam aliás de estar novamente juntas, desta vez numa capital pouco comum para encontros entre ambas – e respetivos maridos -, Pyongyang, aonde o Presidente chinês termina esta sexta-feira uma visita oficial de dois dias, a primeira em 14 anos.

Os líderes chinês e norte-coreano e respetivas mulheres, esta quinta-feira, em Pyongyang EPA

O secretismo que envolve a Coreia do Norte faz com que pouco se conheça da personalidade de Ri Sol-ju. Terá nascido em 1984, no seio de uma família da elite norte-coreana. No sítio na internet da Universidade Kim Il-sung, de Pyongyang, o seu nome consta da lista de antigos alunos. Algumas notícias citando fontes ligadas aos serviços secretos sul-coreanos dão conta que terá estudado Canto na China. Certo é que foi solista na Orquestra Unhasu e notabilizou-se, em especial, na interpretação do tema “Pegadas do Soldado”.

https://www.youtube.com/watch?v=xsAUBG1KADM

A carreira artística da primeira-dama norte-coreana é anterior ao casamento com Kim Jong-un, que terá ocorrido em 2009. Dela diz-se também que integrou um grupo de “cheerleaders” que, em 2005, viajou até à Coreia do Sul para animar os Campeonatos Asiáticos de Atletismo, em Incheon. Esta é uma prática recorrente com a qual a Coreia do Norte procura atrair atenções fora de portas e transmitir uma imagem de talento, beleza, juventude e felicidade.

Aquando da cimeira intercoreana de Pyongyang, em setembro de 2018, a música teve um papel central na convivência das primeiras-damas. Visitaram o Conservatório Kim Won-gyun, acompanhadas pelo compositor Kim Hyung-suk e por duas estrelas da K-Pop, a cantora Ailee e o “rapper” Zico, todos membros da delegação sul-coreana.

No Grande Teatro de Pyongyang, Ri Sol-ju e Kim Jung-sook assistiram a um espetáculo com os maridos. Oriundas de países contrastantes a tantos níveis e aparentando uma o dobro da idade da outra, aproveitaram os momentos juntas para encurtar distâncias.

De mão dada, as primeiras-damas coreanas seguem os maridos, durante a primeira cimeira entre Kim Jong-un e Moon Jae-in, em Panmunjom GETTY IMAGES

Também no caso da sul-coreana Kim Jung-sook a música preencheu a sua vida de solteira. Nascida em 1954, conheceu Moon Jae-in na Universidade Kyung Hee, um estabelecimento privado da Seul, onde ele estudou Direito e ela Canto Lírico.

No mesmo ano em que terminou o curso, 1978, ela entrou como soprano para o Coro Metropolitano de Seul, de onde saiu em 1982, um ano depois de se casar com Moon. Após anos de ativismo pró-democracia contra a ditadura militar, que o tinham levado à prisão, ele começara finalmente a exercer advocacia.

Kim Jung-sook abandonou os palcos e passou a acompanhar o marido, filho de refugiados norte-coreanos, num percurso que os levaria até à Casa Azul, a sede da presidência sul-coreana.

O casal presidencial sul-coreano, no Monte Paektu, Coreia do Norte, a 20 de setembro de 2018 REUTERS

Na China, a subida à presidência de Xi Jinping, em 2013, também sentenciou o fim da carreira musical de Peng Liyuan, a atual primeira-dama. O casal conheceu-se em 1986, era ele vice-presidente da Câmara de Xiamen (sul) e ela já uma famosa cantora — em 1983, tornara-se uma celebridade nacional após atuar na Gala de Ano Novo transmitida pela televisão CCTV, o programa mais visto do ano. Quando se casaram, em 1987, Xi pouco mais era do que o marido de “Mama Peng”, como lhe chamavam alguns fãs.

Nascida em 1962, em Yuncheng (leste), começou a estudar música aos 15 anos. Atingida a maioridade, entrou no Exército de Libertação do Povo, em 1980, onde viria a chegar a general, e foi admitida no Conservatório de Música de Pequim. No Exército, tornou-se uma espécie de “combatente artística e cultural”, interpretando temas patrióticos, de exaltação da China e do exército chinês.

Neste espetáculo transmitido na CCTV a 1 de agosto de 2007, Peng Liyuan canta “Ei, quem nos vai ajudar a virar uma nova página? Quem nos vai libertar? É o querido Exército de Libertação do Povo, a estrela salvadora do Partido Comunista. O Exército e o povo são uma família, ajuda-nos a lavar as nossas roupas.”

A entronização do casal presidencial tornou alguns episódios da carreira de Peng Liyuan incómodos. Numa foto de junho de 1989, a soprano surge vestida com o uniforme militar verde, de microfone na mão, rodeada por militares de cócoras que a ouvem cantar. A foto foi tirada na Praça Tiananmen, a seguir à repressão das manifestações pró-democracia. Peng Liyuan cantava para os militares que tinham defendido os interesses do regime chinês.

Em Lisboa, Xi Jinping e Peng Liyuan posam numa varanda do Palácio de Belém, a 4 de dezembro de 2018, após serem recebidos pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa PEDRO FIÚZA / GETTY IMAGES

Em 2017, a primeira-dama chinesa foi homenageada pelos Estados Unidos. Numa cerimónia realizada no Conservatório de Música de Pequim, foi condecorada com o grau de Professora honorária conferido pela Juilliard School, famosa escola de música e artes cénicas de Nova Iorque.

“Esta honra não é apenas dada a mim, é também um reconhecimento da música popular chinesa e um reflexo dos laços culturais cada vez mais próximos entre chineses e norte-americanos”, disse Peng Liyuan durante a cerimónia. “Espero que a cooperação entre escolas de artes e organizações dos dois países se aprofunde no futuro.” Um desejo superior à guerra comercial em que vivem os dois países.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 21 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui

Vestidos de negro, milhares voltaram às ruas. “Só suspenderam a lei para nos acalmar”

Um dia após o Governo de Hong Kong ter suspendido a polémica lei da extradição, centenas de milhar de pessoas voltaram às ruas para dizer que não chega: querem o seu fim definitivo. Se a lei era do agrado de Pequim, o recuo do Governo de Hong Kong foi também provavelmente ditado pelo regime chinês, diz ao Expresso um cidadão de Hong Kong

Centenas de milhar de pessoas entupiram, este domingo, o centro de Hong Kong com uma mensagem clara para Carrie Lam, a chefe de Governo: não chega ter suspendido a polémica lei da extradição, que possibilita o envio de cidadãos de Hong Kong para serem julgados na China; é preciso eliminá-la totalmente.

Vestidos de negro, manifestaram-se um dia após o Governo ter decidido suspender temporariamente a lei que devia ter começado a ser debatida esta semana no Conselho Legislativo.

“Penso que a suspensão deveu-se a ordens de Pequim para que ela recuasse, como o sugere um artigo do ‘Sing Tao’ [um jornal de língua chinesa de Hong Kong] sobre uma reunião entre Carrie Lam e responsáveis chineses na quinta-feira”, diz ao Expresso Evan Fowler, um cidadão de Hong Kong que vive em Londres.

“Tinham esperança de evitar protestos com a dimensão dos de hoje e tentar acalmar as coisas para acabar com a contínua atenção dos órgãos de informação sobre Hong Kong.”

Apelos à demissão da chefe de Governo

O facto de Carrie Lam ter apenas suspendido a lei, e a violência da polícia sobre os manifestantes que saíram às ruas durante a semana colocaram também a chefe de Governo no centro das mensagens de protesto, este domingo.

“Ela recusou-se a pedir desculpa ontem. É inaceitável”, afirmou Catherine Cheung, de 16 anos, à reportagem da agência Reuters. “É uma péssima líder, mente muito. Eu acho que ela agora só está a atrasar a lei para nos enganar até nos acalmar.”

O recuo de Carrie Lam “é estratégico”, concorda Evan Fowler. “Ela recusa-se a admitir que há algo de errado, e acha que o problema prende-se apenas com má comunicação.” Na sua mensagem de ontem, “usou linguagem que não se usa em Hong Kong, mas antes na China — humilde, sinceridade, etc. É um estilo forçado clássico de auto-reflexão da era de Xi Jinping”.

O incómodo dos chineses

Para os habitantes de Hong Kong — território que, em 1997, transitou de soberania britânica para chinesa, mas que conservou um sistema político e económico autónomo —, a nova lei acentuaria a influência das autoridades de Pequim e ameaçaria as liberdades que os cidadãos conservam, como o direito de se manifestarem.

“O protesto deste domingo foi possivelmente maior do que o de domingo passado. Ela pode ter de retirar a lei. A China está, sem dúvida, furiosa uma vez que a lei serviria os seus interesses. E Carrie provavelmente iniciou-a na esperança de obter favores de Pequim, que se tem chateado com a clemência dos tribunais de Hong Kong em relação aos protestos populares e com o papel de Hong Kong como a capital da lavagem de dinheiro da China.”

(FOTO Megaprotesto à chuva, em Hong Kong WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui

Indianos e paquistaneses juntos? É possível graças ao críquete. As melhores imagens de uma festa improvável

Índia e Paquistão protagonizam das rivalidades políticas mais ameaçadoras à face da Terra. Mas este domingo, em Manchester, apenas a chuva estragou a festa proporcionada por nacionais dos dois países à volta de uma partida de críquete, durante o Mundial da modalidade

Índia e Paquistão são países vizinhos que, de tempos a tempos, parecem estar à beira da guerra. Sempre que isso acontece, é todo o mundo que fica nervoso, já que os dois Estados possuem armas nucleares.

Este ano, os alarmes já soaram por uma vez mais seriamente. Em fevereiro, um ataque suicida na parte indiana do território disputado da Caxemira provocou 42 mortos entre as tropas indianas ali destacadas. O atentado foi reivindicado por um grupo paquistanês e a retaliação não tardou, com a Índia a lançar ataques aéreos sobre a área paquistanesa de Caxemira.

Nessa altura, a partida de críquete entre as seleções dos dois países prevista para a fase de grupos do Mundial da modalidade — a decorrer no Reino Unido desde 30 de maio — ficou em risco. As tréguas voltariam a imperar na região e, este domingo, em Manchester, Índia e Paquistão — 1º e 7º respetivamente no ranking internacional — apresentaram-se no Estádio de Críquete de Old Trafford, indiferentes às desavenças políticas.

Segundo o jornal britânico “The Guardian”, 800 mil pessoas tentaram obter bilhete para assistir ao jogo — o recinto tem capacidade para… 26 mil espectadores. Quanto à audiência televisiva foi calculada em 1000 milhões de telespectadores em todo o mundo.

O jogo chegou a ser interrompido por causa da chuva. Talvez para muitos indianos e paquistaneses perder este jogo seja muito pior do que perder a final do torneio — agendada para 14 de julho. Mas nas bancadas de Old Trafford, isso não foi percetível: a festa fez-se apenas pelo prazer do desporto. E, no fim, a Índia ganhou.

Mistura de verde paquistanês e laranja indiano, nas bancadas de Old Trafford, Manchester OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGES
Bandeiras dos dois países, lado a lado OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGES
Apoiante da seleção indiana VISIONHAUS / GETTY IMAGES
Adepta da equipa paquistanesa STU FORSTER / GETTY IMAGES
Público das duas seleções, nas varandas de Old Trafford DIBYANGSHU SARKAR / AFP / GETTY IMAGES
Convivência entre nacionais dos dois países STU FORSTER / GETTY IMAGES
Bandeira da República da Índia OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGES
Bandeira da República Islâmica do Paquistão OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGES
Cumprimento entre os dois capitães, o indiano Virat Kohli (de azul) e o paquistanês Sarfaraz Ahmed (de verde) GARETH COPLEY / GETTY IMAGES
O Paquistão foi campeão mundial apenas uma vez, em 1992. O capitão da equipa foi Imran Khan, o atual primeiro-ministro do país GARETH COPLEY / GETTY IMAGES
A Índia já celebrou o título mundial por duas vezes, em 1983 e 2011 VISIONHAUS / GETTY IMAGES
A política ficou fora do estádio ANDREW BOYERS / REUTERS
“O críquete cria união”, é a mensagem deste cartaz ilustrado com as bandeiras dos dois países GARETH COPLEY / GETTY IMAGES
ANDREW BOYERS / REUTERS
ANDREW BOYERS / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui