A aproximação entre países beneficia de um trabalho diplomático transversal que, muitas vezes, envolve também as primeiras-damas. É o caso da China e das duas Coreias, onde as mulheres dos Presidentes têm um passado comum: são as três antigas cantoras. Duas delas voltam agora a estar juntas, numa capital pouco comum para um encontro entre ambas

A recente abertura da Coreia do Norte ao mundo, tornada possível pela mão que lhe estendeu Donald Trump, provocou uma discreta mudança no protocolo norte-coreano. Dias antes da histórica cimeira intercoreana de 27 de abril de 2018, na zona desmilitarizada de Panmunjom — onde, pela primeira vez, um líder norte-coreano pisou território do Sul —, a televisão pública norte-coreana noticiou a presença da mulher do líder Kim Jong-un, Ri Sol-ju, num espetáculo de ballet de uma companhia chinesa, em Pyongyang.
O espaço informativo foi apresentado por Ri Chun-hee, a famosa pivô dos anúncios importantes, que se referiu a Ri Sol-ju como “respeitada primeira-dama”. Até então, ela era sempre referida como “camarada Ri Sol-ju”.
Em vésperas de cimeiras importantes com a Coreia do Sul e com os Estados Unidos, este impulso ao estatuto da mulher do Presidente norte-coreano tornou-a “igual entre iguais” no contacto com outras primeiras-damas e deu para o exterior uma aparência de normalidade ao regime de Pyongyang.

Desde março de 2018, quando Kim Jong-un efetuou a sua primeira viagem ao estrangeiro — à China —, Ri Sol-ju já privou com duas homólogas: a chinesa Peng Liyuan e a sul-coreana Kim Jung-sook. Dos encontros saíram imagens de grande empatia, que as obrigações protocolares não explicarão na sua totalidade. É que as três partilham uma paixão comum que, no passado, as levou a trilhar o mesmo percurso: são antigas cantoras.
A chinesa e a norte-coreana acabam aliás de estar novamente juntas, desta vez numa capital pouco comum para encontros entre ambas – e respetivos maridos -, Pyongyang, aonde o Presidente chinês termina esta sexta-feira uma visita oficial de dois dias, a primeira em 14 anos.

O secretismo que envolve a Coreia do Norte faz com que pouco se conheça da personalidade de Ri Sol-ju. Terá nascido em 1984, no seio de uma família da elite norte-coreana. No sítio na internet da Universidade Kim Il-sung, de Pyongyang, o seu nome consta da lista de antigos alunos. Algumas notícias citando fontes ligadas aos serviços secretos sul-coreanos dão conta que terá estudado Canto na China. Certo é que foi solista na Orquestra Unhasu e notabilizou-se, em especial, na interpretação do tema “Pegadas do Soldado”.
A carreira artística da primeira-dama norte-coreana é anterior ao casamento com Kim Jong-un, que terá ocorrido em 2009. Dela diz-se também que integrou um grupo de “cheerleaders” que, em 2005, viajou até à Coreia do Sul para animar os Campeonatos Asiáticos de Atletismo, em Incheon. Esta é uma prática recorrente com a qual a Coreia do Norte procura atrair atenções fora de portas e transmitir uma imagem de talento, beleza, juventude e felicidade.
Aquando da cimeira intercoreana de Pyongyang, em setembro de 2018, a música teve um papel central na convivência das primeiras-damas. Visitaram o Conservatório Kim Won-gyun, acompanhadas pelo compositor Kim Hyung-suk e por duas estrelas da K-Pop, a cantora Ailee e o “rapper” Zico, todos membros da delegação sul-coreana.
No Grande Teatro de Pyongyang, Ri Sol-ju e Kim Jung-sook assistiram a um espetáculo com os maridos. Oriundas de países contrastantes a tantos níveis e aparentando uma o dobro da idade da outra, aproveitaram os momentos juntas para encurtar distâncias.

Também no caso da sul-coreana Kim Jung-sook a música preencheu a sua vida de solteira. Nascida em 1954, conheceu Moon Jae-in na Universidade Kyung Hee, um estabelecimento privado da Seul, onde ele estudou Direito e ela Canto Lírico.
No mesmo ano em que terminou o curso, 1978, ela entrou como soprano para o Coro Metropolitano de Seul, de onde saiu em 1982, um ano depois de se casar com Moon. Após anos de ativismo pró-democracia contra a ditadura militar, que o tinham levado à prisão, ele começara finalmente a exercer advocacia.
Kim Jung-sook abandonou os palcos e passou a acompanhar o marido, filho de refugiados norte-coreanos, num percurso que os levaria até à Casa Azul, a sede da presidência sul-coreana.

Na China, a subida à presidência de Xi Jinping, em 2013, também sentenciou o fim da carreira musical de Peng Liyuan, a atual primeira-dama. O casal conheceu-se em 1986, era ele vice-presidente da Câmara de Xiamen (sul) e ela já uma famosa cantora — em 1983, tornara-se uma celebridade nacional após atuar na Gala de Ano Novo transmitida pela televisão CCTV, o programa mais visto do ano. Quando se casaram, em 1987, Xi pouco mais era do que o marido de “Mama Peng”, como lhe chamavam alguns fãs.
Nascida em 1962, em Yuncheng (leste), começou a estudar música aos 15 anos. Atingida a maioridade, entrou no Exército de Libertação do Povo, em 1980, onde viria a chegar a general, e foi admitida no Conservatório de Música de Pequim. No Exército, tornou-se uma espécie de “combatente artística e cultural”, interpretando temas patrióticos, de exaltação da China e do exército chinês.
Neste espetáculo transmitido na CCTV a 1 de agosto de 2007, Peng Liyuan canta “Ei, quem nos vai ajudar a virar uma nova página? Quem nos vai libertar? É o querido Exército de Libertação do Povo, a estrela salvadora do Partido Comunista. O Exército e o povo são uma família, ajuda-nos a lavar as nossas roupas.”
A entronização do casal presidencial tornou alguns episódios da carreira de Peng Liyuan incómodos. Numa foto de junho de 1989, a soprano surge vestida com o uniforme militar verde, de microfone na mão, rodeada por militares de cócoras que a ouvem cantar. A foto foi tirada na Praça Tiananmen, a seguir à repressão das manifestações pró-democracia. Peng Liyuan cantava para os militares que tinham defendido os interesses do regime chinês.

Em 2017, a primeira-dama chinesa foi homenageada pelos Estados Unidos. Numa cerimónia realizada no Conservatório de Música de Pequim, foi condecorada com o grau de Professora honorária conferido pela Juilliard School, famosa escola de música e artes cénicas de Nova Iorque.
“Esta honra não é apenas dada a mim, é também um reconhecimento da música popular chinesa e um reflexo dos laços culturais cada vez mais próximos entre chineses e norte-americanos”, disse Peng Liyuan durante a cerimónia. “Espero que a cooperação entre escolas de artes e organizações dos dois países se aprofunde no futuro.” Um desejo superior à guerra comercial em que vivem os dois países.
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 21 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui