O estatuto de autonomia do território acaba em 2047. Ao protestar, o povo tenta proteger as suas liberdades
“Imagine que Espanha decidia que há uma nação ibérica, reivindicava Portugal, impunha a língua espanhola ao povo português e dizia que para se ser ibérico você teria de adotar a identidade, cultura e tradições espanholas. E também que teria de esquecer a sua própria história e concentrar-se na história de Espanha.”
O exercício é proposto ao Expresso por um cidadão de Hong Kong a viver no Reino Unido. Através dele, pretende explicar o que se passa atualmente no território onde nasceu há 39 anos e que tem levado às ruas gigantescas manifestações populares — no protesto de domingo passado terão participado dois milhões de pessoas.
“Os chineses de Hong Kong são predominantemente falantes de cantonês, com cultura própria e uma identidade formada num território mais liberal e livre, onde podiam discutir abertamente tudo o que queriam, protegidos pelo Estado de direito. No entanto, Pequim está a construir uma nação e a tentar criar um único povo chinês”, diz Evan Fowler, diretor do jornal digital “Hong Kong Free Press”.
“Isto tem provocado mudanças nas escolas, substituindo o ensino do cantonês, como língua-mãe, pelo do ‘putonghua’ [mandarim]. Vemos lojas, especialmente de luxo, a usarem o ‘putonghua’”, conclui.
A avançada chinesa sobre Hong Kong começou a desbravar caminho em 1997, após a transferência para soberania chinesa daquela que era uma colónia britânica — cedida ao Império Britânico pela dinastia Qing no fim da Primeira Guerra do Ópio, em 1842.
Um país, dois sistemas
O território passou a gozar de um estatuto especial que lhe confere autonomia em relação a Pequim, sobretudo a nível económico (“um país, dois sistemas”), e permite que os cidadãos beneficiem de direitos não extensíveis aos habitantes da China Continental. Entre eles, a possibilidade de se manifestarem nas ruas, o que têm feito profusamente quando sentem as liberdades ameaçadas ou, como diz Evan Fowler, “as suas vidas invadidas”.
Os protestos destacam uma acérrima defesa das liberdades num território que não goza de democracia plena
Na mira dos megaprotestos atualmente em curso está uma polémica revisão à lei da extradição (que expira em julho de 2020) que passaria a permitir o envio de cidadãos de Hong Kong para serem julgados na China.
“As pessoas temem que, dadas as falhas dos sistemas legais da China — acusações falsas, recurso à tortura, confissões forçadas —, todos possam potencialmente ser presos e extraditados para a China para enfrentar acusações. Como se diz em Hong Kong, a lei da extradição produzirá ‘desaparecimentos’ legais, com agentes a raptarem pessoas e a levarem-nas para a China. Há muito medo. Hong Kong deixará de ser um lugar seguro, não será diferente do resto da China.”
Num plano mais sistémico, os protestos em Hong Kong revelam uma acérrima defesa das liberdades num território que não goza de uma democracia plena. O sufrágio universal popular apenas é usado para eleger os conselheiros distritais (que não têm poder político) e metade dos 70 lugares do Conselho Legislativo, o órgão onde ia ser debatida a nova lei da extradição até o Governo a ter suspendido por pressão da rua. O chefe do Executivo — que desde 2017 é Carrie Lam, de 62 anos — é escolhido por um colégio eleitoral, maioritariamente pró-Pequim.
“Este sistema é menos democrático do que aquele que Chris Patten [o último governador britânico de Hong Kong] implantou com a reforma de 1994”, diz Evan Fowler. “Está desenhado para assegurar a forma de governação de Hong Kong e que os interesses pró-Pequim beneficiem de uma maioria na assembleia legislativa. Por isso o povo de Hong Kong recorreu à obstrução para atrasar o processo legislativo. O protesto do dia 12 [dia em que o Conselho Legislativo ia começar a debater a nova lei e os manifestantes cercaram o edifício] foi um exercício de obstrução pública”, para boicotar a sessão da assembleia.
Um país, um sistema?
Em 2014, numa ação de protesto que ficaria conhecida como Movimento dos Guarda-Chuvas, o centro de Hong Kong foi ocupado e bloqueado durante 77 dias por manifestações permanentes. O motivo da contestação foi uma reforma do sistema eleitoral que daria ao povo o direito de voto na escolha do chefe do Executivo, mas subordinaria os candidatos ao cargo à aprovação de Pequim. A proposta seria rejeitada pelo Conselho Legislativo por 28 votos contra 8, com muitos legisladores pró-Pequim a saírem da sala para tentar evitar a votação.
Antes, Hong Kong era a ‘vanguarda’ que abriria caminho à China. Agora Hong Kong tem de mudar para se integrar na China autoritária
Ceder à pressão das ruas — neste caso, retirando a lei em definitivo e não apenas suspendendo-a — é incómodo para Pequim pelo sinal que dá a nível interno. Porém, o tempo corre a seu favor… O estatuto especial de que beneficia Hong Kong desde 1997 não pode ser alterado durante 50 anos. No território receia-se que, chegados a 2047, entre em vigor uma fórmula “um país, um sistema” que prive os habitantes das liberdades de que agora usufruem.
“Antes dizia-se que Hong Kong seria a ‘vanguarda’ que abriria caminho à China, enquanto esta se liberalizava. A esperança era de que a China se tornasse um país mais aberto, liberal e democrático, no sentido do que Hong Kong representa. Infelizmente, não me parece que a China tenha intenção de ir por esse caminho. Desde 2012 o sentimento é de que é Hong Kong que tem de mudar para se integrar na China autoritária em 2047”, conclui Evan Fowler.
“A questão é: quanto tempo demorará Hong Kong a ser despojado das suas diferenças fundamentais para garantir uma integração suave na China Continental?” É contra esse desígnio que o povo de Hong Kong se manifesta.
IMAGEM Megaprotesto em Hong Kong contra a lei da extradição, a 16 de junho de 2019 STUDIO INCENDO / WIKIMEDIA COMMONS
Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui
