Condicionar a fé para fazer face ao medo

As restrições à liberdade religiosa estão em crescendo por todo o mundo. Nuns casos para os Estados blindarem a sua identidade, noutros para se defenderem de medos exteriores

Símbolos religiosos do Judaismo, Islão, Taoismo e Cristianismo WIKIMEDIA COMMONS

César o que é de César, a Deus o que é de Deus. A máxima atribuída a Jesus Cristo — em resposta a um grupo de fariseus que o tentou apanhar em falso, perguntando se era lícito um judeu pagar impostos a César (Mateus 22:21) — tornou-se, com o tempo, um chavão utilizado para enfatizar a separação entre os poderes político e religioso. Passados 2000 anos, contudo, a realidade política global aponta para uma evolução no sentido inverso à sentença bíblica. Hoje, mais de 80 países têm uma religião oficial ou conferem um tratamento preferencial a uma determinada confissão sobre todas as outras. A maioria deles privilegia o Islão, mas a realidade não é estranha à velha Europa cristã.

A Grécia, por exemplo, é um Estado confessional. Os salários dos padres da Igreja Ortodoxa Grega — que a Constituição reconhece como a “religião prevalecente” — são pagos pelo erário público. Nas escolas, só em setembro de 2016 (sob o Governo do Syriza) deixaram de ser obrigatórias as orações de alunos e professores no início de cada dia de aulas. No palco da política, a religião não fica arredada do protocolo: há três semanas o novo primeiro-ministro, Kyriakos Mitsotakis, tomou posse diante do arcebispo Jerónimo, a máxima autoridade religiosa.

No Reino Unido, o monarca é membro da Igreja de Inglaterra (anglicana) e seu governador supremo. Na Finlândia, a Igreja Ortodoxa Finlandesa e a Igreja Evangélica Luterana da Finlândia são reconhecidas como “igrejas nacionais”. Já na Islândia, a Constituição reconhece a Igreja da Islândia como a “igreja do Estado”.

“Desde a mais distante pré-história, encontramos pontos de contacto muito fortes entre as estruturas religiosas e as políticas”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. “Esses contactos foram muitas vezes de ajuda, mas também de afronta. Sempre houve contacto porque ambas são estruturas de organização da sociedade.”

Na Rússia, jeovás têm rótulo “extremista”

Um relatório recente publicado pelo Pew Research Center, um think tank com sede em Washington D.C., conclui que “ao longo da década 2007-2017, as restrições governamentais à religião — leis, políticas e ações de funcionários do Estado restritivas de crenças e práticas religiosas — aumentaram acentuadamente em todo o mundo”.

Em 2007 estavam identificados 40 países com níveis “altos” ou “muito altos” de restrições à liberdade religiosa. Dez anos depois, eram já 52. Um deles é a Rússia, onde, recorda o académico, “toda uma narrativa de fausto e glória, marcada por uma visão etnocentrada, encontra na Igreja Ortodoxa a ligação a uma legitimação história e, assim, fortemente identitária”. O relatório refere o assédio das autoridades russas a minorias religiosas através de ‘visitas’ da polícia a propriedades, em especial das Testemunhas de Jeová, rotuladas como grupo “extremista” desde 2017.

“Por parte do que hoje designamos por Estados, a religião surge como forma de criar uniformidades, discursos e narrativas de identidade”, comenta o professor. “Hoje, a relação que vemos cada vez mais forte entre muitos Estados e algumas religiões vem no seguimento da criação de narrativas de instabilidade, onde o fator religioso é instrumental na solução.”

Fobias várias num quadro de medo

Na Hungria, em 2012, uma nova lei introduziu alterações ao processo de registo de grupos religiosos, as quais afetaram o estatuto de mais de 350, com consequências ao nível do seu financiamento e da prestação de serviços de caridade. Na chefia do Governo desde 2010, Viktor Orbán tem-se destacado, na Europa e no mundo, com um discurso populista, xenófobo e anti-imigração.

“Parte do movimento geral de limitação da liberdade religiosa advém de um quadro de medo, relacionado diretamente com o pós-11 de Setembro de 2001 e, mais recentemente, com o fenómeno do radicalismo islâmico do Daesh”, explica Mendes Pinto. “Esta onda de perceção e representação de insegurança, de medo, condicionou os cidadãos a aceitarem limitação às suas mais variadas liberdades como um sacrifício necessário para a sua segurança.”

Em dez anos, o número de países europeus que levantam obstáculos à liberdade religiosa aumentou de cinco para 20. Este processo vem sendo fortalecido “através de fobias várias”, conclui Paulo Mendes Pinto. “Fobias que levam, por exemplo, a que França seja hoje tida como um Estado que ergue grandes restrições à liberdade religiosa, fruto de um extremar das suas posições laicistas que advogam a proibição, muitas vezes, do uso de vestes religiosas.”

UMA TENDÊNCIA GLOBAL

ANGOLA — A 23 de janeiro deste ano, a Assembleia Nacional aprovou a nova Lei sobre a Liberdade de Religião, Crença e Culto para organizar a proliferação de grupos. Há mais de 2000 ilegais

TAILÂNDIA — A Constituição de 2017 elevou o estatuto do budismo Theravada, quase que dotando o reino de uma religião oficial

SAMOA — Este país da Polinésia passou a ser uma “nação cristã” após a revisão constitucional de 2017

ERITREIA — O Governo reconhece apenas a Igreja Ortodoxa Eritreia, o Islão sunita, a Igreja Católica e a Igreja Evangélica Luterana da Eritreia. Desde 2002 não são autorizadas cerimónias de nenhum outro culto

CHINA — Apenas são autorizados a realizar cultos grupos que pertençam às religiões reconhecidas por Pequim: Budismo, Taoismo, Islão, Catolicismo e Protestantismo. Mas há milhares de muçulmanos (uigures) em “campos de reeducação”

CABO VERDE — A concordata de 2013 garante ao Vaticano privilégios inacessíveis a outro credo

COMOROS — Aprovado em referendo, em 2009, o Islão passou a ser a religião do Estado

MALDIVAS — Promover uma religião que não o Islão é crime punido com até cinco anos de prisão

ALEMANHA — Em 2012, um tribunal de Colónia criminalizou a circuncisão por razões não-médicas. Pressionado por judeus e muçulmanos, Berlim legalizou essa prática religiosa

BIRMÂNIA — A minoria muçulmana (rohingya) não tem direito à cidadania. Tem sido perseguida e alvo de grande violência

HÁ UMA ILHA DE TOLERÂNCIA NO MÉDIO ORIENTE

Arábia Saudita, Irão e Israel são dos países com leis mais restritivas em matéria de liberdade religiosa. Na região, só um país não favorece uma fé

Em todo o mundo, a maioria dos Estados que submetem a vida dos seus cidadãos à vontade de Deus (de forma mais ou menos formal) é muçulmana. No Médio Oriente e Norte de África, há apenas um país que não tem uma única religião oficial ou favorece declaradamente um só credo — o Líbano. Independente desde 1943, o “País do Cedro” é um xadrez étnico-religioso complexo, organizado politicamente com base num Pacto Nacional celebrado entre as principais confissões religiosas. Este acordo não escrito determina que o Presidente da República é sempre um cristão maronita, o Parlamento é presidido por um muçulmano xiita e o primeiro-ministro é um muçulmano sunita.

Este entendimento sobreviveu a uma sangrenta guerra civil (1975-1990). Depois do conflito a proporção entre cristãos e muçulmanos no Parlamento passou de 6/5 para a paridade (5/5). E resistiu também à evolução demográfica do Líbano: se em 1943 havia uma curta maioria de cristãos no país, hoje estima-se que a larga maioria dos quase sete milhões de libaneses seja muçulmana.

Na classificação do Pew Research Center, o Líbano não consta do grupo mais preocupante de países com leis mais restritivas à liberdade religiosa, que é liderado pela Eritreia. Não é o caso, porém, da Arábia Saudita (8º lugar), do Irão (12º) e de Israel (13º).

Israel não tem uma Constituição escrita mas sempre se definiu — e assim foi concebido — como um Estado judaico onde a religião está omnipresente na vida quotidiana. Casamentos, divórcios e funerais, por exemplo, competem à jurisdição do Rabinato Chefe de Israel, uma instituição ortodoxa. E, na maioria das cidades, o respeito pelo Shabat (sábado) implica que não haja transportes públicos a circular.

Na Jordânia, o Governo vigiou as prédicas nas mesquitas e exigiu aos pregadores que não falassem de política

A relação entre o Estado e o judaísmo definiu-se mais claramente a 19 de julho de 2018, com a aprovação de uma nova Lei da Nacionalidade: Israel passou a ser “a nação do povo judeu” e o hebraico a única língua oficial. A aprovação do diploma fez disparar acusações de discriminação e lançou o ceticismo sobre o futuro das minorias, nomeadamente os israelitas árabes (muçulmanos e cristãos), que são 20% da população. Representados no Parlamento, são muitas vezes impedidos de aceder a lugares sagrados como o Monte do Templo, em Jerusalém.

Pátria de uma das comunidades de judeus mais antigas do Médio Oriente — os judeus da Pérsia, anteriores ao advento do Islão —, o Irão tem um histórico de perseguição da comunidade bahai (não-muçulmana). Outrora a maior minoria no Irão, as autoridades consideram-na hoje “herética” e “imunda”.

Teocracia muçulmana xiita desde 1979, o Irão tem no topo da sua hierarquia política um ayatollah. Oficialmente, a República Islâmica reconhece três minorias — zoroastras, judeus e cristãos — e reserva-lhes assentos parlamentares. Uma diferença substancial em relação à rival sunita Arábia Saudita, onde não existem igrejas nem sinagogas. Guardião das mesquitas sagradas de Meca e Medina, o reino considera ilegal a prática de outras religiões, bem como o uso de símbolos religiosos. Os sauditas estão proibidos de se converterem a outras fés e os que professam o ramo xiita são olhados com grande desconfiança.

Em novembro de 2017, Riade fez aprovar uma nova lei de combate ao terrorismo que criminaliza “qualquer pessoa que desafie, direta ou indiretamente, a religião ou a justiça do rei ou do príncipe herdeiro” e proíbe “qualquer tentativa de lançar dúvidas sobre os fundamentos do Islão”. No mesmo ano, alegando preocupações com o terrorismo, as autoridades ordenaram a demolição de um bairro antigo de maioria xiita.

No Médio Oriente, com maior ou menor formalidade, todos os países árabes são condescendentes em relação ao Islão. No Egito, em caso de disputa familiar, por exemplo, se um dos cônjuges for muçulmano e o outro cristão copta, a lei que se aplica é a islâmica (Sharia).

Mas casos há também em que o alvo das restrições governamentais é o próprio Islão. Na Jordânia, o Governo vigiou as prédicas nas mesquitas e exigiu aos pregadores que se abstivessem de falar de política, para não contribuírem para agitação social e visões extremistas. Sugeriu temas e recomendou textos para orientar os imãs. Quem não acatar é multado ou proibido de voltar ao púlpito.

Artigo publicado no “Expresso”, a 27 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui

Nunca ninguém mandou tanto tempo como Benjamin Netanyahu

Benjamin Netanyahu torna-se este sábado o israelita que mais tempo ocupou o cargo de primeiro-ministro. Completa 4876 dias no poder, ultrapassando David Ben-Gurion, um dos pais fundadores do Estado de Israel

Benjamin Netanyahu foi o primeiro chefe de Governo de Israel a nascer no país — em Telavive, a 21 de outubro de 1949, um ano após a criação do Estado. Foi também o primeiro-ministro mais novo a assumir o cargo — tinha 47 anos. A partir deste sábado acumula um terceiro recorde: passa a ser o governante que exerceu a chefia do Governo durante mais tempo.

Ultrapassa o histórico David Ben-Gurion, um dos pais fundadores do Estado de Israel, que foi primeiro-ministro durante 4875 dias: entre 14 de maio de 1948 e 26 de janeiro de 1954 e novamente entre 3 de novembro de 1955 e 26 de junho de 1963.

Aos 69 anos, “Bibi”, como é chamado, foi primeiro-ministro durante 13, em dois períodos não consecutivos: de 18 de junho de 1996 a 6 de julho de 1999 e desde 31 de março de 2009. Este sábado, completa 4876 dias no cargo.

Uma longa caminhada — que poderá continuar após as eleições legislativas marcadas para 17 de setembro — resumida em 10 momentos.

OS PRIMEIROS TRAVOS DO PODER

Benjamin Netanyahu acaba de ser eleito líder do partido Likud, a 21 de março de 1993, em Katzrin ESAIAS BAITEL / GETTY IMAGES

A 4 de novembro de 1995, dois anos após israelitas e palestinianos assinarem os Acordos de Oslo — o último esboço de paz firmado até hoje —, a esperança cai por terra com a notícia do assassínio do primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, às mãos de um fanático judeu. Na liderança do Likud (direita), um dos partidos históricos de Israel, havia dois anos, Benjamin Netanyahu protagonizara uma mudança geracional — da era dos pais fundadores do Estado para o tempo dos cidadãos já nascidos no país. O desaparecimento de Rabin precipita o país para eleições, a 26 de maio de 1996: o Likud vence e Netanyahu toma posse como primeiro-ministro. Herda um país em choque e cético quanto ao seu futuro próximo.

OLHAR OS PALESTINIANOS… COM DESCONFIANÇA

O primeiro encontro entre Yasser Arafat e Netanyahu, a 4 de setembro de 1996, em Erez NADAV NEUHAUS / GETTY IMAGES

Netanyahu encontra-se com Yasser Arafat pela primeira vez a 4 de setembro de 1996, na passagem fronteiriça de Erez, entre Israel e a Faixa de Gaza. A convivência entre ambos pautar-se-ia sempre pela desconfiança, agravada pelas discordâncias de Netanyahu em relação às premissas dos Acordos de Oslo. Para o israelita, não faz sentido — e só encoraja o extremismo — negociar por etapas, fazendo concessões sem que haja um entendimento relativamente aos principais assuntos, como o estatuto de Jerusalém. No poder, Netanyahu não rasga Oslo, mas não faz dele uma prioridade. Os colonatos judeus em território palestiniano intensificam-se irreversivelmente.

RELAÇÃO ENVENENADA COM O HAMAS

Captura de ecrã de um vídeo onde se vê Netanyahu a amachucar e a atirar para o caixote do lixo um documento político do Hamas REUTERS

Nascido na Faixa de Gaza, sob ocupação israelita, o movimento islamita Hamas — que na sua Carta fundadora pugna pelo desaparecimento de Israel — nunca teve em Netanyahu um interlocutor. Em 1997, o primeiro-ministro israelita tenta mesmo decapitar o grupo e autoriza uma operação da Mossad para assassinar o seu líder, Khaled Mashal, na Jordânia. Disfarçados de turistas canadianos, cinco agentes conseguem injetar veneno em Mashal, numa rua de Amã, mas são descobertos. Em fúria, o rei Hussein exige a Israel a cedência do antídoto sob pena de anular o tratado de paz jordano-israelita celebrado três anos antes. Fortemente pressionado pela Casa Branca, onde estava Bill Clinton, Netanyahu cede.

CHOQUE DE FRENTE COM O “BULLDOZER”

Benjamin Netanyahu sentado ao lado de Ariel Sharon de quem foi ministro dos Negócios Estrangeiros e das Finanças GIL COHEN MAGEN / AFP / GETTY IMAGES

Entre os dois períodos que serviu como primeiro-ministro, Netanyahu tem uma fase, fora da política, em que trabalha no sector privado e outra em que participa — como ministro dos Negócios Estrangeiros e das Finanças — em governos liderados por Ariel Sharon. A carreira política leva um forte impulso quando o “bulldozer” promove um plano unilateral de retirada de tropas e colonos da Faixa de Gaza e posterior devolução do território à Autoridade Palestiniana. Netanyahu discorda em absoluto e, a 7 de agosto de 2005, demite-se. Muitos israelitas interpretam a saída de Israel de Gaza como um sinal de fraqueza e identificam-se com a posição assumida por Netanyahu. Em dezembro desse ano, ele recupera a liderança do Likud e lança-se novamente no combate pela liderança do país.

A PALESTINA, SEGUNDO NETANYAHU

Benjamin Netanyahu junto a um mapa relativo à construção de novas casas para judeus na parte oriental (árabe) de Jerusalém MENAHEM KAHANA / AFP / GETTY IMAGES

A 6 de abril de 2009, menos de três meses após entrar na Casa Branca, Barack Obama dirige-se ao mundo islâmico com um discurso na Universidade do Cairo, intitulado “Um novo começo”. “Os Estados Unidos não aceitam a legitimidade de contínuos colonatos israelitas”, diz. Em Israel, Netanyahu é novamente primeiro-ministro, havia uma semana. A 14 de junho seguinte, num discurso na Universidade Bar-Ilan, nos arredores de Telavive, o israelita enumera as suas condições para apoiar uma Palestina independente: Jerusalém seria a capital unificada de Israel, os palestinianos não teriam exército e abdicariam do direito de regresso dos refugiados. Netanyahu reclama também o direito ao “crescimento natural” dos colonatos existentes na Cisjordânia. Fecha assim a porta ao Estado com que os palestinianos sonham.

O DESENHO DA AMEAÇA IRANIANA

Discursando na Assembleia Geral da ONU, a 27 de setembro de 2012, com o Irão em mente LUCAS JACKSON / REUTERS

A 27 de setembro de 2012, Netanyahu sobe ao palanque da Assembleia Geral da ONU munido de um marcador e de uma cartolina com o desenho de uma bomba prestes a detonar. “A questão relevante não é quando vai o Irão obter a bomba”, diz. “A questão relevante é em que fase deixa de ser possível impedir que o Irão obtenha a bomba.” E traça na cartolina uma linha vermelha a partir da qual o Irão não deve ser autorizado a continuar a enriquecer urânio. Nesse discurso, Netanyahu pronuncia a palavra “Irão” 110 vezes. Nos anos que se seguiriam, falar da República Islâmica e das suas ambições nucleares torna-se um clássico nos discursos de Netanyahu nas Nações Unidas, em especial após a assinatura do acordo internacional de 2015 — que ele considera “um erro histórico”.

COMPREENSIVO PARA COM… ADOLF HITLER

Benjamin Netanyahu aponta para um mapa que localiza os campos de extermínio de judeus (Holocausto), durante a II Guerra Mundial JANEK SKARZYNSKI / AFP / GETTY IMAGES

“Hitler não queria exterminar os judeus na altura, ele queria expulsar os judeus. E Haj Amin al-Husseini [o grande mufti de Jerusalém] foi ter com ele e disse: ‘Se os expulsar, eles virão todos para aqui [para a Palestina]’.” Segundo Netanyahu: Hitler terá perguntado: “O que devo fazer com eles?” O mufti respondeu: “Queime-os”. Foi nestes termos que Netanyahu descreveu o encontro entre Hitler e Husseini, em novembro de 1941, perante a plateia do 37.º Congresso Mundial Sionista, a 20 de outubro de 2015, em Jerusalém. Pouco importa se, com estas palavras, choca milhões de judeus com histórias do Holocausto na família. O objetivo é lançar a dúvida e contaminar a pretensão dos palestinianos de continuarem a viver naquela terra.

TOLERÂNCIA ZERO NA FAIXA DE GAZA

Benjamin Netanyahu junto a uma bateria do escudo anti-aéreo Cúpula de Ferro, com que Israel interceta os “rockets” lançados desde a Faixa de Gaza JACK GUEZ / REUTERS

Nos últimos dez anos, a Faixa de Gaza foi alvo de três operações militares israelitas de grande envergadura — só na primeira não era Netanyahu primeiro-ministro. A mais mortífera, a “Barreira Protetora” em 2014 — justificada com a necessidade de retaliar o rapto de três jovens colonos… na Cisjordânia —, começa cerca de um mês após Hamas e Autoridade Palestiniana (AP) anunciarem a formação de um governo de unidade nacional (2 de junho). As duas fações palestinianas estavam desavindas desde 2007 quando o Hamas tomou o poder pela força em Gaza e a Cisjordânia ficou sob controlo da AP. Segundo a ONU, na “Barreira Protetora” morreram 2251 palestinianos, em sete semanas de bombardeamentos. Israel confirmou 67 militares e seis civis mortos.

A CONTAS COM A JUSTIÇA

Benjamin Netanyahu é inquirido, no Supremo Tribunal de Israel, em 2016, sobre a legalidade de um negócio aprovado pelo Governo JIM HOLLANDER / REUTERS

Na agenda de Netanyahu, os próximos dias 2 e 3 de outubro estão provavelmente marcados a vermelho. Está prevista para essas datas a sua audição no âmbito de três grandes investigações a casos de corrupção em que a polícia recomendou que Netanyahu fosse indiciado por suborno, fraude e abuso de confiança. Caberá ao procurador-geral de Israel, Avichai Mendelblit, decidir se as provas são suficientemente fortes para acusá-lo. Se for acusado e continuar a ser primeiro-ministro, não está legalmente obrigado a renunciar, apenas se for condenado e quando esgotados todos os recursos. Netanyahu diz que a atuação da polícia é “uma caça às bruxas”. Em maio passado, é notícia um pacote legislativo em preparação visando fintar as determinações dos tribunais e que pode beneficiá-lo com imunidade. Não vai avante porque Netanyahu não se aguenta no Governo.

REFÉM DOS PARTIDOS RELIGIOSOS

O casal Netanyahu, Benjamin e Sara, celebrando a vitória do Likud nas eleições legislativas de 9 de abril passado THOMAS COEX / AFP / GETTY IMAGES

Nas eleições de 9 de abril passado, os dois partidos mais votados elegem cada um 35 deputados. Mas a escassa vantagem de 0,33% dos votos a favor do Likud é suficiente para que Netanyahu seja reconduzido num quinto mandato — o quarto consecutivo — como primeiro-ministro de Israel. Porém, as negociações para formar governo revelam-se uma missão impossível. Netanyahu garante o apoio dos partidos religiosos ultraortodoxos, prometendo continuar a isentá-los do cumprimento do serviço militar. Essa exceção é polémica, já que a tropa é obrigatória e universal em Israel (com exceções), e vale a Netanyahu a oposição da extrema-direita de Avigdor Lieberman, essencial à maioria parlamentar necessária. Num país em que os executivos são sempre de coligação, Netanyahu torna-se o primeiro candidato a primeiro-ministro a não conseguir formar governo.

(Uma fotografia de Benjamin Netanyahu rodeada de boletins de voto, na sede do Likud, em Telavive AMIR COHEN / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui

O país onde os protestos nasceram nos estádios de futebol

Os argelinos estão nas ruas há 22 semanas em protesto contra quem os governa. Se esta sexta-feira vencerem a Taça das Nações Africanas, as manifestações vão ganhar ainda mais força, vaticina ao Expresso um argelino

Esta sexta-feira é dia cheio na Argélia. Ao final do dia, a seleção nacional de futebol disputa a final da Taça das Nações Africanas (CAN). Antes disso, como vem acontecendo desde 22 de fevereiro, é tempo de… “sexta-feirar” (“vendredire”, em francês).

“É assim que os argelinos chamam às manifestações de cada sexta-feira”, pacíficas e em clima de festa, com que exigem o fim do regime, diz ao Expresso o politólogo Raúl Braga Pires, autor do Blogue Maghreb/Machrek. “Projeta-se um dia em que a polícia irá facilitar a vida aos manifestantes para, ao final do dia, poderem todos ir ver o jogo em harmonia.”

É possível que muitos argelinos optem por ficar nas ruas o dia todo. Afinal, protestar e celebrar o golo são manifestações que, neste país do Norte de África, partilham o mesmo espaço.

“Não podemos separar o ‘Hirak’ (movimento popular de protesto) do futebol. O ‘Hirak’ começou dentro dos estádios, em toda a Argélia”, diz ao Expresso o argelino Youcef Bouandel, professor de Ciência Política na Universidade do Qatar. “Nos últimos anos, os adeptos de futebol têm usado os estádios como locais de manifestações políticas entoando cânticos contra o regime.”

No Egito, onde decorre a CAN, um argelino foi detido, deportado —- e rapidamente condenado a um ano de prisão — após a vitória da Argélia sobre o Quénia, na fase de grupos. O seu “crime” foi mostrar uma tarja que tinha inscrito um dos slogans mais populares das manifestações no seu país: “yetnehaw gaa”, que Raúl Braga Pires traduz por “Demitam-se pá!”.

“Há um vasto reportório de canções que refletem o descontentamento popular e a oposição ao regime”, acrescenta Bouandel, comentador da televisão Al-Jazeera. “Falam sobre corrupção, mudança de regime, falam de uma nova Argélia.”

São cantadas a plenos pulmões especialmente por jovens desempregados que se sentem socialmente marginalizados, sem oportunidades para singrar na vida e vergados a um sentimento de humilhação (“hogra”) — e que só encontram voz em eventos desportivos.

Um exemplo desses cânticos é “La Casa del Mouradia” (nome do bairro onde fica o palácio presidencial argelino) que nasceu em 2018 nas hostes da claque de um clube da capital — a União Desportiva da Medina de Argel (USMA) — e que é hoje um dos hinos dos manifestantes antiregime.

Diz o primeiro verso: “É madrugada e o sono não vem / Eu consumo em pequenas doses / Qual o motivo? / Quem devo culpar? / Estamos cansados desta vida”. A seguir descreve, um a um, os mandatos de Bouteflika da perspetiva das dificuldades criadas para o povo.

“Antes, os cânticos estavam confinados aos estádios”, diz o professor argelino. “Quando o muro do medo foi derrubado, as pessoas levaram o espírito dessas canções para as ruas, um pouco por todo o país.”

Os argelinos perderam o medo após surgirem rumores de que, aos 82 anos, o Presidente Abdelaziz Bouteflika, que vive confinado a uma cadeira de rodas, iria candidatar-se a um quinto mandato. As ruas encheram-se de contestação e Bouteflika foi forçado a sair de cena para todo o sempre.

Os manifestantes subiram então a fasquia das exigências e passaram a pedir o afastamento dos restantes rostos do regime e a transferência do poder para mãos civis.

“Os argelinos sentem que o ‘Hirak’ libertou o país, incluindo o futebol. A nomeação de Djamel Belmadi para selecionador [em agosto passado] resultou de uma exigência popular. Os resultados da equipa de futebol são uma vitória para o ‘Hirak’.”

A final da CAN — entre a Argélia (que venceu o torneio em 1990) e o Senegal (que nunca ganhou) — começa às 20 horas de Portugal Continental, no Estádio Internacional do Cairo. Em Argel, o regime até pode estar convencido de que uma vitória irá anestesiar o povo e leva-lo, por momentos, a esquecer a política. Mas nas redes sociais, o discurso é outro… “Uma vitória da Argélia adicionará força aos protestos”, diz Bouandel. “Nas redes sociais, a mensagem é: sim, será fantástico vencer a CAN, será um grande feito, mas não nos esqueçamos de que isto é só futebol. A maior conquista é o estabelecimento de um regime que proteja o povo.”

Para o ‘Hirak’, os festejos em torno de uma possível vitória na CAN serão usados para passar recados às autoridades do país. Nas ruas, serão realçadas “a ‘competência’ e a ‘juventude’ — numa referência ao treinador Belmadi, que tem 43 anos — como chaves de qualquer sucesso”, conclui o argelino. “Os argelinos dirão: Se conseguirmos aplicar à política o que aconteceu no futebol — políticos jovens e competentes que amam o seu país e estão dispostos a lutar por ele — então o céu é o limite.”

RELACIONADOS:

“La Casa del Mouradia”, pelo cantor argelino Bilal Tamer

Documentário “#Algeria’s Songs of #Protests: from the #Stadium to the Streets”, produzido por Fanack

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 17 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui

As “paredes Lennon” de Hong Kong

Surgiram em 2014, durante os protestos pró-democracia e estão de regresso às ruas de Hong Kong como “arma” de protesto contra a nova lei da extradição. As “paredes Lennon” — que roubam o nome a um protesto anticomunista que decorreu em Praga (República Checa), na década de 1980, e que nasceu em torno da figura de John Lennon e das músicas dos Beatles — mais não são do que murais feitos com “post-its”. Neles os cidadãos fazem votos para que o futuro do território seja mais colorido

Ainda que não pareça, há sempre lugar para mais um “post-it”, na “parede Lennon” de Hong Kong VIVEK PRAKASH / AFP / GETTY IMAGES
Uma mulher deixa a sua mensagem num subterrâneo da zona de Tai Po CHAN LONG HEI / GETTY IMAGES
Colados na parede, ao lado de um saco do lixo, um copo com canetas e blocos de “post-its” garantem que ninguém fica privado de material para deixar o seu recado TYRONE SIU / REUTERS
Em 2014, foi neste local que foi erguida a primeira “parede Lennon” de Hong Kong. Cinco anos depois, a iniciativa repete-se VIVEK PRAKASH / AFP / GETTY IMAGES
“Somos um só!”, “Nunca desistir!!”, “Lutar pela nossa liberdade!!!!!!!” CARL COURT / GETTY IMAGES
Uma atração turística a céu aberto ISAAC LAWRENCE / AFP / GETTY IMAGES
Algumas paredes foram plastificadas, para que as mensagens perdurem TYRONE SIU / REUTERS
Desejos coloridos para o futuro de Hong Kong VERNON YUEN / GETTY IMAGES
Uma iniciativa aberta a todas as idades VERNON YUEN / GETTY IMAGES
Mensagens, desenhos e jogos de palavras, como “Home Kong” CHAN LONG HEI / GETTY IMAGES
Um protesto que se transformou numa exposição temporária, em vários pontos do território TYRONE SIU / REUTERS
Uma presença colorida a que os cidadãos de Hong Kong se vão habituando nas suas rotinas quotidianas ANTHONY KWAN / GETTY IMAGES
Escrever com a concentração, e a convicção, de que a mensagem vai chegar ao seu destino VERNON YUEN / GETTY IMAGES
Reflexão em grupo sobre preocupações comuns CHAN LONG HEI / GETTY IMAGES
“We are back”. Cinco anos depois, os “post-its” com mensagens de protesto estão de volta às paredes de Hong Kong ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES
Recados ao longo de uma escadaria perto do Conselho Legislativo, onde a discussão da contestada lei da extradição foi suspensa CARL COURT / GETTY IMAGES

RELACIONADO: As “paredes Lennon” estão de volta a Hong Kong

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui

As “paredes Lennon” estão de volta a Hong Kong

Em vários locais desta região administrativa especial chinesa multiplicaram-se, esta semana, paredes forradas com coloridos “post-its”. São a mais recente e original forma de protesto em Hong Kong

“We are back” (“Estamos de volta”). A frase, escrita em inglês, ocupa três “post-its” amarelos, um para cada palavra. É uma das muitas mensagens escritas à mão em coloridos pedaços de papel que cobrem cada vez mais paredes em Hong Kong.

Os recados — deixados por manifestantes que, há mais de um mês, estão nas ruas em protesto contra uma nova lei da extradição — irromperam com mais força esta semana, após, na terça-feira, a chefe de Governo de Hong Kong, Carrie Lam, ter admitido que a lei “está morta” mas ter-se recusado a retira-la.

Nesse dia à noite, havia “paredes Lennon”, como lhe chamam, fora de estações de comboio, em passagens subterrâneas, pontes pedonais, edifícios comerciais e mesmo no exterior de templos. Nalguns sítios, para proteger as notas, voluntários deram-se ao trabalho de as plastificar, transformando as paredes em montras e as palavras de ordem em “obras de arte” que os transeuntes gostam de apreciar.

Recupera-se assim uma forma de luta nascida na Europa, mas que, em Hong Kong, surgiu pela primeira vez em 2014, numa escadaria junto a um complexo de edifícios governamentais, durante os protestos pró-democracia (Revolução dos guarda-chuvas).

A primeira “parede Lennon” em Hong Kong, erguida durante a Revolução dos guarda-chuvas, em 2014 CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES

Porém, a “parede Lennon” original, que batizaria todas as que se seguiriam, foi erguida na década de 1980, em Praga, República Checa, no âmbito de um protesto contra o regime comunista de Gustáv Husák.

Coberto por graffitis inspirados em John Lennon e nas músicas dos Beatles, o mural foi, com o tempo, transformando-se e ganhando as cores de outras causas. Mas conservou o mesmo espírito: ser um monumento a valores e a sonhos globais como a paz e o amor.

Parte do muro de Praga, numa foto de 1993, onde é visível uma pintura de John Lennon INFROGMATION / WIKIMEDIA COMMONS

Em Hong Kong, as paredes atraem a curiosidade de locais, desejosos de aí expressarem o que lhes vai na alma, e de forasteiros, que não resistem a fotografar o local como uma atração turística.

Por razões inversas, chamam também a atenção das autoridades. Na quarta-feira, cerca de 100 polícias fizeram uma rusga à “parede Lennon” existente numa passagem subterrânea na zona de Tai Po, junto a uma das mais movimentadas estações de metro de Hong Kong.

Identificaram “post-its” que continham informação pessoal de alguns agentes envolvidos em confrontos verbais com manifestantes, fotografaram-nos e retiraram-nos da parede, deixando ficar todos os outros.

A operação decorreu sem resistência dos transeuntes. Como cantou John Lennon: “Imagine all the people living life in peace” (“Imagina toda a gente a viver a vida em paz”).

Ainda que não pareça, há sempre lugar para mais um “post-it”, na “parede Lennon” de Hong Kong VIVEK PRAKASH / AFP / GETTY IMAGES
Uma mulher deixa a sua mensagem num subterrâneo da zona de Tai Po CHAN LONG HEI / GETTY IMAGES
Colados na parede, ao lado de um saco do lixo, um copo com canetas e blocos de “post-its” garantem que ninguém fica privado de material para deixar o seu recado TYRONE SIU / REUTERS
Em 2014, foi neste local que foi erguida a primeira “parede Lennon” de Hong Kong. Cinco anos depois, a iniciativa repete-se VIVEK PRAKASH / AFP / GETTY IMAGES
“Somos um só!”, “Nunca desistir!!”, “Lutar pela nossa liberdade!!!!!!!” CARL COURT / GETTY IMAGES
Uma atração turística a céu aberto ISAAC LAWRENCE / AFP / GETTY IMAGES
Algumas paredes foram plastificadas, para que as mensagens perdurem TYRONE SIU / REUTERS
Desejos coloridos para o futuro de Hong Kong VERNON YUEN / GETTY IMAGES
Uma iniciativa aberta a todas as idades VERNON YUEN / GETTY IMAGES
Mensagens, desenhos e jogos de palavras, como “Home Kong” CHAN LONG HEI / GETTY IMAGES
Um protesto que se transformou numa exposição temporária, em vários pontos do território TYRONE SIU / REUTERS
Uma presença colorida a que os cidadãos de Hong Kong se vão habituando nas suas rotinas quotidianas ANTHONY KWAN / GETTY IMAGES
Escrever com a concentração, e a convicção, de que a mensagem vai chegar ao seu destino VERNON YUEN / GETTY IMAGES
Reflexão em grupo sobre preocupações comuns CHAN LONG HEI / GETTY IMAGES
“We are back”. Cinco anos depois, os “post-its” com mensagens de protesto estão de volta às paredes de Hong Kong ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES
Recados ao longo de uma escadaria perto do Conselho Legislativo, onde a discussão da contestada lei da extradição foi suspensa CARL COURT / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui