Bolsonaro levou uma indígena às Nações Unidas. A encenação correu mal

Jair Bolsonaro levou uma apoiante sua indígena à Assembleia Geral das Nações Unidas, onde discursou esta terça-feira. O Presidente do Brasil quis calar o mundo que o acusa de negligência ambiental provando que os nativos da Amazónia estão com ele. A reação revoltada dos indígenas brasileiros ecoou em Nova Iorque

Ysani Kalapalo ao lado de Jair Bolsonaro, durante a viagem às Nações Unidas INSTAGRAM YSANI KALAPALO

O Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, cumpriu esta terça-feira uma tradição com mais de 60 anos e realizou o discurso de abertura da 74ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. “Obrigado a Deus pela minha vida, pela missão de presidir o Brasil e pela oportunidade de restabelecer a verdade”, assim começou Bolsonaro um discurso de meia hora, grande parte dedicado à questão da Amazónia.

Sentada na plateia, integrada na delegação brasileira, esteve Ysani Kalapalo, uma indígena de 28 anos que Bolsonaro levou na comitiva. Habitante no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, Ysani — que no Twitter se descreve como “a indígena do século 21”, “apresentadora” e “YouTuber” — é uma crítica da retórica catastrofista que se seguiu aos grandes incêndios na Amazónia que, diz ela, decorre de notícias falsas.

Em Nova Iorque, Bolsonaro leu uma carta aberta de apoio à presença da indígena na sua comitiva assinada pelo “Grupo dos Agricultores Indígenas do Brasil”. Com ela, procurou responder a uma carta de repúdio divulgada horas antes onde os caciques (chefes) dos 16 povos do Território Indígena do Xingu dizem: “O governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente nas redes sociais com o objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil”.

E acrescentam: “O governo brasileiro não se contentando com os ataques aos povos indígenas do Brasil, agora quer legitimar sua política anti-indígena usando uma figura indígena simpatizante de suas ideologias radicais com a intenção de convencer a comunidade internacional de sua política colonialista e etnocida.”

Para Bolsonaro, a indígena era o melhor trunfo que poderia jogar diante do mundo para responder a quem o acusa de ser um governante negligente em relação ao ‘pulmão da Terra’ — ideia que Bolsonaro, na ONU, disse ser “um equívoco”, tal como dizer que a Amazónia é património da Humanidade é “uma falácia”. Indiferente às polémicas internas, Ysani foi, para Bolsonaro, a prova de que é apoiado pelas vítimas imediatas da destruição da Amazónia.

No Brasil, 14% do território está demarcado como terra indígena, há 225 povos indígenas identificados e referências a 70 tribos isoladas. Vivem do que a floresta lhes dá: alimentos e medicamentos, materiais para construir casas, arcos e flechas, cestas e redes. Essa autossuficiência faz deles botânicos e zoólogos de excelência — os melhores cuidadores que a Amazónia pode ter.

“Nossos nativos são seres humanos”, contrapôs Bolsonaro, que “querem e merecem usufruir dos mesmos direitos que todos nós”. “Infelizmente, algumas pessoas de dentro e fora do Brasil, apoiadas por organizações não governamentais, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas.”

Uma das organizações que está na mira de Bolsonaro é a Survival International, considerada o movimento global de defesa dos povos indígenas. “Quando a floresta é destruída, o acesso aos territórios indígenas torna-se mais rápido e mais fácil, o que incentiva invasores ilegais: grileiros, mineiros, agricultores”, explica ao Expresso Fiona Watson, ativista da organização.

“Alguns incêndios começam deliberadamente, ateados por grileiros e colonos que querem roubar terras indígenas para vende-las ou ocupa-las ilegalmente. Muitos sentem-se encorajados pelo discurso de ódio do Presidente Bolsonaro e pelo seu apoio ao sector do agronegócio, interessado na exploração de terras indígenas.”

No estado brasileiro do Maranhão (nordeste), um grupo de Guajajaras — um dos povos indígenas mais numerosos no Brasil — realiza patrulhas na floresta. Conhecidos como “Guardiões”, estão atentos às visitas indesejadas de madeireiros e fazendeiros. “Eles são forçados a defender os seus territórios das máfias madeireiras e dos colonos que as invadem impunemente”, denuncia Fiona Watson. “É um trabalho perigoso, pois esses invasores estão fortemente armados.”

Data de 23 de julho o último assassínio conhecido de um indígena. O sexagenário Emyra Waiãpi, um dos líderes do povo Waiãpi, foi encontrado morto pela mulher junto a um rio, na região do Amapá. O cadáver tinha os olhos perfurados e o órgão genital decepado. Numa posição excecional na cultura waiãpi, os familiares autorizaram a exumação do cadáver para ajudar as investigações. Antecipando-se a conclusões, acusaram garimpeiros da morte de Emyra.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 24 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui

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