Um retrato social à boca das urnas

Em dia de eleições, as assembleias de voto transformam-se num miradouro para os vários rostos que compõe a sociedade israelita

Em Israel, vivem hoje mais de nove milhões de pessoas, entre centros urbanos cosmopolitas, como Telavive, ou áreas inóspitas, como o deserto do Negev. Gente que já nasceu neste país criado em 1948 ou que para ali imigrou, vinda dos quatro cantos do mundo, procurando a felicidade na terra dos ancestrais.

A esmagadora maioria da população israelita, a rondar os 75%, é composta por judeus de várias proveniências. Quase um milhão deles são oriundos da antiga União Soviética. Cerca de 20% é de cultura árabe e religião muçulmana ou cristã. No seio desta minoria, uns 200 mil são beduínos (nómadas), que palmilham sobretudo o Negev.

Em dia de eleições, todos são Israel, incluindo os cerca de 500 mil colonos judeus que ocupam o território palestiniano da Cisjordânia, e que também votam.

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A inevitável “selfie” numa assembleia de voto em Telavive, capital de Israel CORINNA KERN / REUTERS
Um grupo de judeus ultraortodoxos vota na cidade de Bnei Brak MENAHEM KAHANA / AFP / GETTY IMAGES
Uma jovem árabe vota perto de Haifa AHMAD GHARABLI / AFP / GETTY IMAGES
Com temperaturas a superar os 30 graus, a vontade de muitos israelitas aproveitarem o feriado eleitoral para se refrescarem foi uma forte concorrência à ida às urnas GIL COHEN-MAGEN / AFP / GETTY IMAGES
Uma pausa para votar durante o passeio com o fiel amigo, em Rosh HaAyin AMIR LEVY / GETTY IMAGES
Beduínos informam-se sobre os locais de votação, na cidade de Beersheva HAZEM BADER / AFP / GETTY IMAGES
Para muitos israelitas, votar é também uma oportunidade para fazer pedagogia juntos dos mais novos RONEN ZVULUN / REUTERS
Mulher judia acompanhada por quatro crianças vota no colonato de Adora, no território palestiniano ocupado da Cisjordânia AMIR COHEN / REUTERS
Pai e filho partilham um dia diferente AMIR LEVY / GETTY IMAGES
Israelitas muçulmanas aguardam a sua vez de votar, numa assembleia da cidade de Rahat AMIR COHEN / REUTERS
Descontração e boa disposição numa secção de voto de Telavive CORINNA KERN / REUTERS
Um judeu vota com tranquilidade ILIA YEFIMOVICH / GETTY IMAGES
Uma dos 6.394.030 eleitores com direito a votar neste escrutínio ILIA YEFIMOVICH / GETTY IMAGES
Família beduína residente no Negev regista-se para votar, em Beersheva HAZEM BADER / AFP / GETTY IMAGES
Eleitora com segurança apertada em Rosh HaAyin AMIR LEVY / GETTY IMAGES
Mulheres árabes, uma exercendo o direito ao voto, outra em serviço na mesa OREN ZIV / GETTY IMAGES
Pai e três filhos judeus, na capital de Israel, Telavive GIL COHEN-MAGEN / AFP / GETTY IMAGES
Muçulmanas conservadoras preparam-se para votar em Beersheva HAZEM BADER / AFP / GETTY IMAGES
Judia conservadora vota em Bnei Brak MENAHEM KAHANA / AFP / GETTY IMAGES
Um homem, dois cães, um papagaio e um destino, numa assembleia de Telavive GIL COHEN-MAGEN / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui

O regresso às urnas cinco meses depois. Para tudo ficar na mesma?

As sondagens dizem que o empate técnico registado nas eleições de abril pode repetir-se nas legislativas desta terça-feira em Israel. Para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o escrutínio será sempre uma confirmação: ou do seu talento político ou da sua decadência final

Os israelitas voltam esta terça-feira às urnas para tentar desfazer o empate técnico que resultou das eleições legislativas de 9 de abril passado. Então, o Likud (o partido de direita liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu) e a aliança Kahol Lavan (Azul e Branco, as cores da bandeira de Israel, de centro) elegeram 35 deputados cada (num universo de 120 que compõem o Parlamento). As últimas sondagens, divulgadas sábado passado, atribuem a cada uma das formações 32 parlamentares.

Em abril, e apesar dos escassos 0,33% de votos de vantagem do Likud, foi Netanyahu quem o Presidente Reuven Rivlin encarregou de formar Governo, o seu quinto mandato, o quarto consecutivo. Essa responsabilidade levou-o a fazer história: a 20 de julho, ultrapassou David Ben-Gurion – um dos pais fundadores do Estado de Israel – como o israelita que mais tempo desempenhou o cargo de primeiro-ministro, completando 4876 dias no poder, em dois períodos não sucessivos.

Mas ao contrário do que sempre aconteceu anteriormente, Netanyahu não conseguiu formar equipa nas seis semanas que tinha para o fazer. O regresso às urnas esta terça-feira decorre desse fracasso negocial.

Comparativamente ao ato eleitoral de há cinco meses, onde os partidos políticos concorreram de forma muito fragmentada – na ordem das 40 opções de voto –, desta vez haverá mais coligações – ainda assim 32. Entre aqueles que aprenderam com os erros estão os quatro partidos árabes, representativos de cerca de 20% da população israelita. Se em abril se apresentaram divididos em duas coligações – desunião que contribuiu para uma grande abstenção entre o seu eleitorado tradicional –, agora vez participam unidos na Lista Conjunta. As sondagens dizem que será a terceira formação mais votada e que poderá eleger 12 deputados.

Num país onde, desde a sua fundação (1948), os governos sempre foram de coligação, para além do resultado individual de cada partido é crucial o somatório dos votos angariados por eventuais parceiros de Governo. Nestas eleições, essa disputa trava-se entre um bloco conservador – integrado pelo Likud, pela nova coligação Yamina (nascida da reordenação dos partidos ultranacionalistas) e pelos dois partidos religiosos ultraortodoxos, Shas e Judaismo da Torah Unida – e outro de centro-esquerda, composto pela aliança Azul e Branco, pelos trabalhistas, pela União Democrática (esquerda pacifista) e pela Lista Conjunta árabe.

A última sondagem divulgada no sábado pelo Channel 13 atribui ao primeiro 54 deputados e 53 ao segundo – ou seja, ambos aquém da fasquia dos 61 parlamentares que garante a maioria absoluta no Parlamento (Knesset).

A chave para resolver o imbróglio – e conseguir uma maioria de Governo – poderá passar pelos ultranacionalistas do Israel Beitenu (Israel é a nossa casa), liderado pelo ex-ministro da Defesa Avigdor Lieberman. Em abril elegeu cinco parlamentares, agora as sondagens atribuem-lhe entre sete e nove. Ex-ministro de Netahyanu, bateu com a porta em novembro de 2018 após o primeiro-ministro ter optado por assinar um cessar-fogo com os islamitas do Hamas em vez de bombardear a Faixa de Gaza, como Lieberman defendia. Apologista de uma linha dura para com os palestinianos, ele é protagonista na primeira pessoa da ocupação israelita da Palestina já que vive, com a mulher e três filhos, no colonato de Nokdim, a sul de Belém (Cisjordânia).

Pode bem ter sido para o eleitorado de Avigdor Lieberman que Netanyahu tentou falar nos últimos dias, quando anunciou “a intenção de estender a soberania israelita ao Vale do Jordão e ao Norte do Mar Morto” (cerca de 30% do território palestiniano ocupado da Cisjordânia) se vencer as eleições. “Desde a Guerra dos Seis Dias [de 1967] que não temos esta oportunidade e duvido que voltemos a tê-la nos próximos 50 anos. Deem-me o poder para garantir a segurança de Israel. Deem-me o poder para definir as fronteiras de Israel”, afirmou.

Com estas palavras, Netanyahu garantiu manchetes em todo o mundo, como já o havia conseguido na reta final da campanha para as eleições de abril. Então, tentou disparar nas intenções de voto afirmando: “Um Estado palestiniano colocará em perigo a nossa existência” e também “não dividirei Jerusalém, não evacuarei nenhuma comunidade [de colonos] e garantirei que controlaremos o território a Ocidente do [rio] Jordão”, ou seja, toda a Cisjordânia. Nada de novo, pois.

(FOTO ATLANTA JEWISH TIMES)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 16 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui

O coração da Terra está doente

Algumas zonas da grande floresta tropical já emitem
mais dióxido de carbono do que a quantidade que absorvem

Se o funcionamento da Terra se regesse por um orçamento, a verba para este ano tinha-se esgotado a 29 de julho. O apuramento resulta do projeto “Earth Overshoot Day” (Dia da Sobrecarga da Terra) que, anualmente, publica a pegada ecológica global após cruzar os recursos do planeta com os gastos da população mundial. Em 1970, a capacidade de suporte da vida na Terra cobria os 12 meses. Em 1980, acabou a 4 de novembro, em 1990 a 10 de outubro e em 2000 a 22 de setembro. A cada década, a Humanidade consome os recursos do planeta um mês mais cedo.

Para suprir o resto do ano, a solução passa por sobre-explorar os ecossistemas. É o que acontece na Amazónia — uma área de 5.500.000 km2 de floresta tropical (correspondente a 60 territórios de Portugal), dispersa por nove países — onde, segundo um estudo recente da revista “Nature”, há já zonas que lançam mais dióxido de carbono para a atmosfera do que aquele que absorvem.

“A Amazónia tem um papel de relevância para todo o planeta. Ela funciona como uma grande bomba de água que recicla a humidade que vem do Oceano Atlântico e a envia para o mundo inteiro. Isso tem um impacto sobre o regime de chuvas de todo o planeta”, explica em entrevista ao Expresso Virgílio Viana, que dirige a Fundação Amazonas Sustentável (FAS), galardoada com o Prémio Calouste Gulbenkian 2016. “Ainda que ela possa estar fisicamente distante, existe uma relação de todo o mundo com a Amazónia. É como se ela fosse o coração do planeta.”

Agente e vítima do clima

Dois fatores contribuem para uma acentuada degradação do bioma amazónico. Um está à vista nos quatro cantos do mundo, em fenómenos climáticos extremos e cada vez mais frequentes. “A Amazónia é agente das mudanças climáticas e ao mesmo tempo vítima das alterações climáticas. A temperatura está a aumentar na Amazónia e o regime das chuvas está a alterar-se.”

Outra causa decorre da intervenção humana em torno do que este professor brasileiro designa como “economia do desmatamento” (ver texto em baixo). “O Brasil é o maior produtor mundial de carne e de soja. Em muitos casos, ambas estão relacionadas com o desmatamento”, alerta, realçando que um quarto da economia brasileira está ligado ao agronegócio.

“Há um grande debate na Europa sobre controlo de madeira que vem da Amazónia, e sobre a questão da carne também”, diz, para realçar a importância de serem criados sistemas de rastreabilidade que permitam atestar se determinada carne tem origem em atividades ilegais de desmatamento. “Os consumidores portugueses e europeus têm um papel importante em certificar que os supermercados não compram carne de desmatamento.”

“A estratégia de quem defende a sustentabilidade é fazer com que a engrenagem económica que hoje move o desmatamento passe a mover-se noutra direção, desestimulando as cadeias produtivas ligadas ao desmatamento e estimulando as cadeias ligadas ao uso sustentável. O açaí, a castanha, o peixe são cadeias do bem”, diz. “Defendo há muito tempo uma política tributária global que reduza os impostos desses produtos, uma política de imposto zero para produtos sustentáveis da Amazónia.”

Virgílio Viana, especialista na Amazónia, fotografado no Jardim Botânico do Porto FERNANDO VELUDO/NFACTOS

Virgílio Viana falou ao Expresso no Jardim Botânico do Porto. Na Invicta, participou no segundo seminário sobre a Amazónia, do Instituto Amigos da Amazónia (IAMA), criado na cidade em março de 2020 e que o próprio dirige. “Queremos a partir daqui dialogar com a comunidade europeia, trazer a filantropia europeia, as grandes empresas, a opinião pública, porque os governos respondem àquilo que a sua população pensa. Um dos temas que eu trouxe foi a oportunidade de celebrarmos os 200 anos de independência do Brasil, em 2022, no Porto com atividades relativas à Amazónia. O coração de D. Pedro [I do Brasil, IV de Portugal] está aqui. Há esse vínculo físico, além do histórico, entre a Amazónia e a cidade.”

A revolução do Papa

Nascido em 1960, em Belo Horizonte (estado de Minas Gerais) e a viver em Manaus (Amazonas) desde 2002, Viana foi secretário de Estado de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Sustentável entre 2003 e 2008, era Lula da Silva Presidente. “Reduzimos o desmatamento em 66% e ampliámos as áreas de reservas. Criámos 12 milhões de hectares em unidades de conservação, mais ou menos um Portugal.”

O contraste com a era Jair Bolsonaro, que regista uma explosão do desmatamento, é evidente. “O Governo é uma tragédia para a Amazónia. O discurso político é que a legislação ambiental atrapalha.” Para o Presidente, “a mudança climática não existe, é bobagem, fake news, e desmatamento é exagero.”

Viana, que integra a Comissão de Ética da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano (que existe desde Galileu), invoca a encíclica “Laudato Si” (2015, sobre o “Cuidado com a Casa Comum”), na qual o Papa Francisco apela a “uma mudança radical” nos padrões de produção e consumo. “Temos de olhar para a Amazónia na perspetiva de que não é um problemazinho lá longe. Precisamos de mudar profundamente as coisas no nosso quintal”, conclui. “Costumo dizer que a Amazónia é too big to fail [grande demais para falhar]. Esta expressão foi usada na crise de 2018 quando pacotes de muitos milhões de dólares e euros foram usados para salvar os bancos. A Amazónia é muito mais importante do que esses banquinhos de Wall Street ou da City. Temos de mobilizar recursos de grande escala para a Amazónia.”

SEIS ETAPAS DA ECONOMIA DO DESMATAMENTO

Do abate de árvores à expulsão de comunidades indígenas, a degradação da Amazónia resulta de muitas ilegalidades

A desflorestação está identificada como uma das principais causas do aquecimento global. No caso da Amazónia, o corte de árvores é apenas a primeira etapa de uma indústria de exploração desenfreada, e por vezes ilegal, montada por interesses económicos.

DESMATAMENTO A economia do desmatamento começa com a extração ilegal de madeira. A madeira de alto valor paga a abertura de estradas e a construção de pontes, ou seja, prepara o terreno para a indústria da grilagem.

GRILAGEM Trata-se da apropriação de terras públicas por parte de privados, muitas vezes com recurso a documentação falsa, “mais ou menos como se fosse o velho oeste nos EUA”, compara Virgílio Viana, que dirige a Fundação Amazonas Sustentável. Esta é uma indústria marcada pela ilegalidade. A grilagem é das principais ameaças às comunidades indígenas.

QUEIMADAS Quando uma terra é grilada, o dono reivindica a posse de duas formas: desmatando o terreno ou fazendo queimadas. “No Brasil, tem até um slogan: ‘Dono é quem desmata’”, diz o perito brasileiro. “A maneira de mostrar que se é dono de um pedaço de terra é desmatar e atear fogo.” Há dois tipos de incêndio: o que consome o lugar que foi desmatado e o que evolui de forma descontrolada, propaga-se pela floresta e degrada o ecossistema.

GARIMPO Juntamente com a grilagem, surge o garimpo — a extração de ouro — que hoje também está muito descontrolado. Dados recentes da MapBiomas (que monitoriza as transformações no uso da terra no Brasil) revelam que a Amazónia concentra atualmente 93,7% dos garimpos que ocorrem no país.

PECUÁRIA A melhor forma de lavar o dinheiro que resulta do garimpo é investir tanto na compra de terras (grilagem) como na produção agropecuária. “A pecuária gera muita liquidez, é um porto seguro para quem tirou o dinheiro do garimpo ou da madeira ilegal ou do tráfico de drogas, que é outra componente muito importante da economia do desmatamento. O narcotráfico está a aumentar muito na Amazónia.”

EXPULSÃO DE INDÍGENAS “A Amazónia não é só bicho, planta e água. Na maior parte das terras públicas tem gente”, alerta Viana, que enumera 353 povos indígenas, falantes de mais de 60 línguas. “O lugar mais distante com que nós trabalhamos fica a 15 dias de viagem de barco…” A grilagem “tem sempre uma mancha de sangue. Ela avança sobre terras usadas por indígenas ou por populações tradicionais” — descendentes de seringueiros, pescadores, quilombolas (remanescentes de escravos). “E avança com um exército de motosserras e capangas armados. Em muitos casos, os povos resistem.”

(FOTO PRINCIPAL GUSTAVO BASSO / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso”, a 10 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui