A pobreza e a saturação demográfica de Manila empurram famílias inteiras para dentro dos cemitérios da cidade. Vivem ali anos a fio, improvisando formas de sustento. O Dia de Todos os Santos, que se assinala esta sexta-feira, é uma oportunidade para ganharem um dinheiro extra e iludirem a profunda miséria em que vivem
Aquela que é para milhões de filipinos a sua última morada é também, para uns quantos milhares, a única casa possível. Em Manila, famílias inteiras vivem no interior de cemitérios públicos. Muitos ali nasceram, ali tiveram filhos e enterraram os pais. Sem condições para viverem na cidade, refugiam-se onde lhes é garantido teto de forma gratuita.
É o que acontece no Cemitério do Norte, um dos maiores e mais antigos da capital das Filipinas, onde jazem cerca de um milhão de pessoas, entre as quais personalidades históricas e celebridades. Inaugurado em 1904, é uma espécie de cidade dentro da cidade que se estende por 54 hectares (aproximadamente 54 campos de futebol) e onde se (sobre)vive sem saneamento, eletricidade e água potável.
A qualquer hora do dia, há colchões estendidos em cima de tumbas de mármore onde alguém dormita. Dentro de mausoléus, vê-se televisão com eletricidade desviada da rede pública. Os jazigos servem de mesa de refeições ou de tampo para jogos de tabuleiro, da preferência dos mais velhos. Os mais jovens jogam basquetebol nas ruas com cestos afixados em paredes com ossários. E há sempre alguém que toma banho ao ar livre, com água do balde tirada de um poço.
Nas ruas do cemitério, o lixo abunda, misturado com crânios e esqueletos abandonados a céu aberto e roupas rotas de cadáveres exumados ou à espera de serem incinerados.
Para as crianças — que recebem alguma instrução graças à generosidade de voluntários —, saltar de jazigo em jazigo é uma diversão indescritível. Indiferentes à chegada de mais um funeral — e são dezenas por dia, no Cemitério do Norte — convivem com a morte num registo chocante de grande banalidade.
Pressão demográfica
Viver no cemitério é o recurso possível para quem não tem meios para se aguentar na cidade. As Filipinas são um país de 110 milhões de habitantes onde, segundo o Banco Mundial, cerca de 22 milhões vivem abaixo do limiar nacional de pobreza. A capital, Manila, é uma das megacidades do mundo, com 12 milhões de habitantes: segundo o recenseamento de 2015, a cidade tem uma média de 71 mil habitantes por quilómetro quadrado.
Antiga colónia espanhola, as Filipinas são um país onde as tradições católicas são vividas com devoção e fervor, como acontece no Dia de Todos os Santos, que se assinala esta sexta-feira. Para quem vive nos cemitérios, estes rituais fúnebres são oportunidades para amealharem uns pesos extra e viverem os tempos que se seguem de forma mais desafogada.
Quem tem os seus ali enterrados quer ver os jazigos asseados e solicita os serviços de quem, morando nos cemitérios, tenta ganhar a vida a limpar túmulos, a cinzelar os nomes dos defuntos nas lápides de mármore, a trabalhar como pedreiros e coveiros, a ajudar a transportar caixões ou a vender flores e velas feitas com cera reciclada.
Esta “economia fúnebre” passa também por algum comércio voltado para os próprios moradores, como lojas de conveniência, cafés e karaokes. Há quem trabalhe na cidade e durma no cemitério. Todos sentir-se-ão esquecidos pelo “mundo lá fora”, mas tentam mentalizar-se que pelo menos ali conseguem viver.
E excetuando os dias em que há raides da polícia na perseguição a narcotraficantes e “zombis” — como o polémico Presidente das Filipinas, Rodrigo Duterre, chama aos toxicodependentes —, viver nos cemitérios é incomparavelmente mais calmo do que na confusão de Manila.
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Brincadeiras na água dentro de um mausoléu, num cemitério de Manila MASSIMO RUMI / BARCROFT MEDIA / GETTY IMAGESVida e morte convivem no quotidiano de milhares de filipinos que vivem em cemitérios ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGESCrianças alegres, num triciclo que circula entre jazigos CHERYL RAVELO / REUTERSUm casal apoia-se numa tumba, junto ao seu pequeno negócio ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGESChegada de um funeral, junto a uma casa feita com blocos de cimento e chapas de zinco PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGESNos cemitérios de Manila, não há escolas. A educação das crianças depende de voluntários CHERYL RAVELO / REUTERSHora de diversão dentro do Cemitério do Norte, em Manila EZRA ACAYAN / GETTY IMAGESPartida de basket junto a uma parede com ossários EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGESConcentrados no jogo de bilhar, indiferentes ao que os rodeia NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGESRoupas de moradores num cemitério de Manila MASSIMO RUMI / BARCROFT MEDIA / GETTY IMAGESUma residente põe a roupa a secar junto a um amontoado de jazigos TAKAHIRO YOSHIDA / GETTY IMAGESOssadas humanas num depósito de lixo NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGESQualquer sítio é bom para dormir, mesmo nos dias de maior afluência ao cemitério MOHD SAMSUL MOHD SAID / GETTY IMAGESNo Cemitério do Norte, há vida até no beco mais estreito MASSIMO RUMI / BARCROFT MEDIA / GETTY IMAGESCrisóstomo não perde a fé, ainda que o espaço a que chama casa seja este pequeno cubículo PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGESMural no cemitério público de Navotas, em Manila NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGESAs casas crescem por cima de filas de túmulos EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGESQualquer sítio serve para conviver e tomar-se uma refeição EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGESO conforto possível, no interior de um mausoléu, no Cemitério do Norte PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGESNão há tanque para lavar a roupa. Quanto à água, há que ir buscar ao poço CHERYL RAVELO / REUTERSUma loja de conveniência, dentro do Cemitério do Norte ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGESBasta uma bola e a brincadeira está garantida PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGESJogos de tabuleiro, em cima de um túmulo, no Cemitério de Navotas NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGESSem parques infantis por perto, as crianças dão largas à imaginação possível EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGESUm banho rápido e de água fria, junto a um poço, num cemitério filipino ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGESUma rua coberta de lixo, no Cemitério de Navotas NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGESNo Cemitério do Norte, um grupo de crianças estuda dentro de um mausoléu ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGESTratando-se de crianças, nada dentro do cemitério fica por percorrer EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGESEsta família goza de alguma privacidade, dentro de um mausoléu JOHN JAVELLANA / REUTERSNa falta de escorregas, as crianças improvisam EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGESUm cemitério que mais parece um bairro de lata NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGESO colchão é uma chapa de zinco ondulada DONDI TAWATAO / GETTY IMAGESHá quem nasça nos cemitérios de Manila EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGESApesar de não haver serviço de eletricidade no cemitério, não faltam televisões ROMEO RANOCO / REUTERSA curiosidade de quem vive no cemitério perante o ritual de quem visita a campa de um familiar EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui
Voltamos a publicar o perfil de Abu Bakr al-Baghdadi escrito em julho de 2014, quando o líder radical exigiu obediência a todos os muçulmanos e deu fôlego ao Daesh
A recente aparição pública de Abu Bakr al-Baghdadi numa mesquita de Mosul (norte do Iraque) causou alarido por várias razões. No pulso, o líder da milícia radical Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) [Daesh] — que quer transformar em país as terras que controla na Síria e no Iraque — usava um Rolex. Algo surpreendente num líder islâmico que prega uma vida austera.
Depois, porque é raro Al-Baghdadi deixar-se observar. Até então, eram conhecidas apenas duas fotos suas. Uma delas constava do arquivo do Centro Nacional de Contraterrorismo dos EUA e foi usada em outubro de 2011 para Washington anunciar uma recompensa de 10 milhões de dólares (7,3 milhões de euros) pelo fornecimento de informações que conduzissem à captura ou morte do “terrorista Abu Du’a”, um dos seus pseudónimos.
A outra é uma fotografia tipo passe, divulgada em janeiro de 2014 pelo Ministério do Interior iraquiano, em que Al-Baghdadi surge com pouco cabelo, de barba curta e de fato e gravata escuros. Por essa altura, já o jihadista — agora autodenominado “califa do Estado Islâmico” — era visto como uma ameaça à estabilidade do Médio Oriente.
É o próprio Abu Bakr al-Baghdadi a alimentar a aura de mistério. Não dá entrevistas nem grava vídeos com mensagens, como Osama bin Laden ou o sucessor deste, Ayman al-Zawahiri. Por isso, entre os seus, ganhou a alcunha de “xeque invisível”.
Um dos líderes anteriores do movimento pagou com a vida os descuidos da exposição pública. O jordano Abu Musab al-Zarqawi — então líder da Al-Qaeda do Iraque (AQI), antecessora do EIIL [Daesh] — foi localizado e abatido pelos Estados Unidos em 2006.
Crê-se que Abu Bakr al-Baghdadi (este é, na realidade, o seu nome de guerra) tenha nascido em 1971, na cidade iraquiana de Samarra, a norte de Bagdade. Aos 18 anos, Ibrahim Awwad Ibrahim Ali al-Badri al-Samarrai (nome real) foi viver para Tobchi, um bairro pobre de Bagdade, habitado por sunitas e xiitas. “Era uma pessoa sossegada e muito educada”, disse Abu Ali, um residente do bairro, à reportagem do jornal britânico “The Telegraph”.
Enquanto estudante na Universidade Islâmica da capital, Al-Baghdadi vivia num quarto anexo à pequena mesquita de Tobchi e fazia parte da equipa de futebol da instituição. “Era o nosso Messi”, diz Abu Ali. “Era o nosso melhor jogador.” Abu Ali recorda também um episódio revelador de um “conservadorismo salafita” (fundamentalismo) na forma como Al-Baghdadi encarava o exercício do Islão. “Lembro-me de haver um casamento e de homens e mulheres dançarem e saltarem alegremente na mesma sala.
Ele ia na rua, viu a situação e gritou: ‘Como é possível homens e mulheres a dançarem alegremente desta maneira? Isto não é religioso.’ E logo acabou com a dança.”
Um estratego silencioso
Após a invasão norte-americana de 2003, que derrubaria o ditador Saddam Hussein, Al.Baghdadi não exibiu uma hostilidade particular aos Estados Unidos, diz Abu Ali. “Ele não ferve em pouca água. Foi sempre um estratego silencioso.” Outro residente em Tobchi diz que Baghdadi costumava liderar orações na mesquita local. “Era calmo e reservado”, diz Ahmed al-Dabash. “Passava algum tempo sozinho. Era discreto.
Ninguém reparava nele.” Episódio importante na radicalização do “califa do Estado Islâmico” foram os quatro anos que passou em Camp Bucca, um centro de detenção dos EUA no sul do Iraque, por onde passaram vários comandantes da Al-Qaeda. Foi libertado em 2009 e, no ano seguinte, subiu à liderança do Estado Islâmico do Iraque (ex-AQI), depois de o líder ser morto por forças americanas e iraquianas.
Al-Baghdadi saltou para as notícias em abril de 2013 quando anunciou a fusão do seu grupo com a Frente al-Nusra, a maior milícia islamita anti-Bashar al-Assad, a qual rejeitou a proposta aliança. Ao fazê-lo, criou o EIIL [Daesh] e abriu uma guerra com a Al-Qaeda mãe, cujo líder, o egípcio Ayman Zawahiri, queria que o EIIL [Daesh] se dedicasse ao “Iraque ferido” e deixasse a Síria para a Nusra.
“Tendo de escolher entre a lei de Deus e a lei de Zawahiri”, disse então Al-Baghdadi, “escolho a lei de Deus.” O desafio à Al-Qaeda granjeou-lhe prestígio entre os combatentes mais extremistas e tornou o EIIL [Daesh] atrativo para milhares de novos jihadistas.
O seu modus operandi inclui ataques suicidas, raptos, vergastadas, decapitações, crucificações e execuções sumárias. Com estes métodos bárbaros, o califa — título que não existia desde a abolição do Império Otomano, em 1924 — reclama-se “líder de todo e qualquer muçulmano”. E nessa condição quer incentivar a luta até à conquista… de Roma.
Curdos deixam governo de Maliki
Os políticos curdos não gostaram que o primeiro-ministro iraquiano, Nouri al-Maliki, acusasse a sua comunidade de dar abrigo a rebeldes islamitas na capital regional, Erbil. Resolveram, por isso, suspender a participação no Governo iraquiano, disse à agência Reuters, na quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros, o curdo Hoshiyar Zebari. Também são curdos o vice-primeiro-ministro e os titulares do Comércio, Migrações e Saúde.
Os curdos continuarão a desempenhar as funções de deputados, mas a notícia não augura nada de bom para a tentativa de formar um governo de união que fortaleça o combate contra os radicais do Estado Islâmico do Iraque e do Levante. Zebari teme uma desintegração do país caso não seja formado um Executivo de união. “O país está literalmente dividido em três Estados: o curdo, o Estado negro (EIIL) [Daesh] e Bagdade”.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui
O Médio Oriente deixou de ser a região mais crítica para os cristãos. Nos últimos dois anos, a perseguição intensificou-se na Ásia Meridional e Oriental, denuncia o último relatório da fundação Ajuda à Igreja que Sofre
O pesar com que, tradicionalmente, os cristãos celebram a morte de Jesus Cristo ultrapassou este ano as fronteiras do simbólico. No Sri Lanka, a 21 de abril — era Domingo de Páscoa —, três ataques contra outras tantas igrejas mataram 258 fiéis e feriram mais de 500. Reivindicados pelos extremistas do Daesh — o autodenominado “Estado Islâmico”, que estava em perda no Iraque e na Síria —, aqueles atentados provavam que, naquele país de maioria budista, a estratégia de ataque terrorista tinha como alvo primordial a minoria cristã.
Nos últimos dois anos, esta chacina cingalesa foi, de longe, a pior atrocidade cometida contra cristãos em todo o mundo. Outra ataque sangrento aconteceu nas Filipinas — país maioritariamente católico —, durante a eucaristia dominical de 27 de janeiro último: 22 pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridas após a explosão de duas bombas junto à Catedral de Nossa Senhora do Monte Carmelo, na ilha de Jolo. O atentado foi também reivindicado pelo Daesh.
A oriente, paralelamente ao “extremismo islâmico”, duas outras frentes contribuem para episódios de opressão aos cristãos: “o nacionalismo populista” e “regimes autoritários”. Em países como a Índia ou Myanmar (antiga Birmânia), lê-se no relatório, há uma unidade cada vez maior “entre grupos religiosos nacionalistas e governos”, que colocam as minorias religiosas na mira da intolerância.
Há cerca de duas semanas, na cidade indiana de Guwahati, membros de uma organização de camponeses saíram à rua em protesto contra uma proposta de revisão da Lei da Cidadania de 2016 que prevê que imigrantes hindus, sikhs, budistas e cristãos, entre outros, oriundos do Afeganistão, Bangladesh e Paquistão passem a ser elegíveis para obter a cidadania indiana.
Na “maior democracia do mundo”, onde o nacionalismo hindu impulsiona a perseguição a minorias religiosas, registaram-se mais de 1000 ataques contra cristãos entre o início de 2017 e finais de março de 2019. Em resposta ao extremismo… foram encerradas mais de 100 igrejas.
No vizinho Paquistão — onde os cristãos são 1,5% de uma população de 200 milhões —, a Constituição consagra a liberdade religiosa. Há igrejas e escolas, hospitais e instituições cristãs que atendem todos sem exceção, mas os preconceitos e as perceções negativas em relação a quem não é muçulmano incentivam ao ódio.
“Os empregos considerados menores, sujos e humilhantes, são frequentemente ocupados por cristãos”, refere o relatório da AIS. “Os trabalhadores cristãos constituem uma fatia muito elevada da força de trabalho nos esgotos e na limpeza de estradas.”
Médio Oriente em contagem decrescente
O agravamento da situação dos cristãos no Oriente coincide com uma melhoria na conturbada região do Médio Oriente, onde o êxodo contínuo de cristãos para longe das terras onde sempre viveram assemelha-se, nas palavras do Arcebispo de Alepo (Síria), o maronita Joseph Tobji, a “uma ferida que sangra”.
Declarada em 2017, a derrota do Daesh contribuiu para diminuir consideravelmente a pressão sobre as comunidades cristãs na Síria e no Iraque. Ainda assim, realça o relatório, na região onde a religião cristã nasceu, “a contagem decrescente para o desaparecimento do Cristianismo parece imparável”.
Na Síria, o único país onde ainda é possível escutar o aramaico — a língua falada por Jesus —, os cristãos eram cerca de 1,5 milhões em 2011, quando começou a revolta popular contra Bashar al-Assad, e que evoluiria no sentido da guerra; hoje, não serão mais do que 500 mil. A 11 de julho passado, a explosão de um carro armadilhado junto a uma igreja em Qamishli, no nordeste, mostra que a trégua não é total.
No Iraque, a fuga dos cristãos é mais antiga. Estima-se que por alturas da invasão norte-americana, em 2003, os cristãos eram cerca de 1,5 milhões e que, ainda antes do advento do Daesh, em 2014, já tinham caído para menos de 500 mil. Hoje, os cristãos iraquianos poderão ser menos de 150 mil. “No prazo de uma geração, a população cristã do Iraque teve um declínio de mais de 90%”, constata o relatório.
Os detestados ‘adoradores da cruz’
Quem foi resiliente e ficou vive temeroso de que “uma nova versão do Daesh” possa emergir. Desde a cidade assíria de Bartella, no norte do Iraque, o padre Behnam Benoka é testemunha de uma hostilidade persistente contra os cristãos por parte das milícias shabak (muçulmanos xiitas) numa pressão contínua “para forçar os cristãos a abandonarem as nossas terras”, diz o clérigo. Os cristãos são protegidos por militares, há boicotes às lojas geridas por cristãos e altifalantes nas suas áreas de residência que transmitem as orações nas mesquitas.
“Sobretudo no que diz respeito ao Iraque”, diz o relatório, “não é exagerado dizer que o Daesh pode ter perdido a batalha da supremacia militar no Médio Oriente, mas em partes da região eles vão a caminho da vitória por conseguirem extinguir os muito detestados ‘adoradores da cruz’, os cristãos.”
Papa atento e atuante
Atento ao drama das minorias cristãs, o Papa Francisco realizou, este ano, duas visitas pastorais especialmente relevantes. Em setembro, esteve em Madagáscar, um país maioritariamente cristão onde, segundo denúncias do Cardeal Désiré Tsarahazana, o perigo vem do exterior, com planos de construção de 2600 mesquitas no país. “É uma invasão, com dinheiro de países do Golfo e do Paquistão. Eles compram as pessoas.”
Meio ano antes, o Papa tinha estado em Marrocos, onde se estima que vivam cerca de 25 mil cristãos — a esmagadora maioria africanos subsarianos —, entre 35 milhões de muçulmanos. A 19 de junho de 2018, o então ministro da Justiça, Mohamed Aujjar, afirmou na televisão que não existem “cidadãos cristãos” naquele país muçulmano. Não foi exagero do governante: os cristãos marroquinos não são reconhecidos pelo Estado.
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SRI LANKA. Um segurança protege os fiéis em oração numa igreja de Colombo LAKRUWAN WANNIARACHCHI / AFP / GETTY IMAGESSRI LANKA. No domingo de Páscoa de 2019, a Igreja de Santo António, na capital do país, foi alvo de um atentado sangrento ISHARA S. KODIKARA / AFP / GETTY IMAGESFILIPINAS. Capela inacessível por terra após fortes tempestades, em fevereiro, na província de Bulacan NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGESFILIPINAS. Cerimónia de bênção de ramos junto à Gruta de Nossa Senhora de Lourdes, a norte de Manila, em abril passado NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGESMYANMAR. Catedral católica de Santa Maria, também chamada Catedral da Imaculada Conceição, em Rangum. Em Myanmar, a maioria dos cristãos são protestantes FRANK BIENEWALD / GETTY IMAGESCHINA. Liturgia na Igreja da Intercessão, em Harbin, na província mais setentrional do país ARTYOM IVANOV / GETTY IMAGESCHINA. Uma católica tibetana participa numa cerimónia religiosa na Igreja Cizhong, na zona autónoma tibetana de Diqing, no sudoeste da China TYRONE SIU / REUTERSPAQUISTÃO. Segurança apertada numa igreja metodista, na cidade paquistanesa de Quetta BANARAS KHAN / AFP / GETTY IMAGESPAQUISTÃO. Terços à venda num bairro cristão em Islamabad FAISAL MAHMOOD / REUTERSÍNDIA. A diretora de uma escola feminina preside a uma cerimónia em honra de Nossa Senhora do Rosário, na cidade indiana de Secunderabad, a 21 de outubro passado NOAH SEELAM / AFP / GETTY IMAGESÍNDIA. Celebrando o nascimento de Maria, católicas indianas partem cocos junto a uma imagem religiosa, em Hyderabad NOAH SEELAM / AFP / GETTY IMAGESSÍRIA. Momento da comunhão na Igreja da Virgem Maria (ortodoxa), na cidade de Qamishli, no Curdistão sírio. A 11 de julho, uma bomba junto ao templo fez 11 feridos DELIL SOULEIMAN / AFP / GETTY IMAGESSÍRIA. Uma estátua da Virgem Maria “abençoa” a cidade cristã de Maalula, 56 quilómetros para nordeste de Damasco LOUAI BESHARA / AFP / GETTY IMAGESIRAQUE. A 16 de junho, a Igreja da Virgem Maria, em Bassorá, reabriu portas após obras de reabilitação. “Um sinal de esperança”, disse o arcebispo caldeu Alnaufali Habib Jajou ESSAM AL-SUDANI / REUTERSIRAQUE. O santuário mariano de Bassorá, a segunda cidade mais populosa, está repleto para a eucaristia de domingo ESSAM AL-SUDANI / REUTERSEGITO. Abóbada de uma igreja grega ortodoxa do século X, na cidade velha do Cairo AMIR MAKAR / AFP / GETTY IMAGESEGITO. A maioria dos cristãos egípcios são coptas. Num país com cerca de 100 milhões de habitantes, os coptas são uma minoria de 10 milhões KHALED DESOUKI / AFP / GETTY IMAGESSUDÃO. Este professor sudanês ajudou a improvisar esta igreja, num bairro de Omdurman JEAN MARC MOJON / AFP / GETTY IMAGESERITREIA. Uma menina da tribo Kunama junto a um poster da Sagrada Família ERIC LAFFORGUE / GETTY IMAGESNIGÉRIA. Um homem passa junto a um crucifixo em frente à igreja de um “bairro de lata”, na cidade de Lagos PIUS UTOMI EKPEI / AFP / GETTY IMAGESNIGÉRIA. Missa de domingo, numa igreja de Kajuru, no estado de Kaduna LUIS TATO / AFP / GETTY IMAGESBURKINA FASO. Uma oração solitária, em frente à igreja de Nossa Senhora de Kaya, na cidade com o mesmo nome ANNE MIMAULT / REUTERSMADAGASCAR. Populares esperam na berma de uma estrada de Antananarivo para ver passar o Papa Francisco, que visitou o país em setembro passado RIJASOLO / AFP / GETTY IMAGESMARROCOS. Cristãos subsarianos assistem à missa, em Rabat, capital de Marrocos, outro país visitado pelo Papa este ano FADEL SENNA / AFP / GETTY IMAGESMÉDIO ORIENTE. Na região onde o Cristianismo nasceu, o seu desaparecimento parece imparável LAKRUWAN WANNIARACHCHI / AFP / GETTY IMAGES
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui
A 17 de outubro de 2009, o Governo das Maldivas, um dos países mais ameaçados pela subida da água dos oceanos, reuniu-se no fundo do mar para alertar para os efeitos das alterações climáticas. Dez anos depois, o Presidente que promoveu o insólito encontro está frustrado com a falta de ação e cansado da “linguagem jurássica” usada para defender o planeta
Há exatamente dez anos, o então Presidente das Maldivas, Mohamed Nasheed, promoveu um conselho de ministros original. Num país rodeado pelo azul do Índico, e onde saber mergulhar é algo quase tão natural como aprender a ler, aquela reunião decorreu debaixo de água.
A cinco metros de profundidade, de máscara posta e comunicando por gestos, o Presidente, 14 ministros e o Procurador-Geral do país assinaram um “SOS desde a linha da frente” para enviar às Nações Unidas: “As alterações climáticas estão a acontecer e ameaçam os direitos e a segurança de toda a gente na Terra”, defenderam. “Temos de nos unir num esforço mundial para parar mais aumentos de temperatura.”
A iniciativa foi simultaneamente um alerta para o mundo e um pedido de ajuda: a manter-se o aquecimento global e o consequente degelo dos graciares, as Maldivas — cujo ponto mais alto é inferior a dois metros — vão afundar-se no meio do oceano.
António Guterres está atento
O drama dos países insulares chegou, recentemente, à capa da revista “Time” que fotografou o secretário-geral da ONU, António Guterres, com a água do Oceano Pacífico pelos joelhos e ar de grande preocupação. A foto foi tirada junto à costa de Tuvalu, outro país ameaçado pela subida das águas do mar, mas bem poderia ter sido disparada nas Maldivas.
Neste arquipélago composto por 1192 ilhas (a maioria desabitadas), 26 grandes atóis (anéis de coral à volta de uma lagoa interior) e onde vivem cerca de 400 mil pessoas, as alterações climáticas são uma questão de segurança nacional.
Em 2008, quando se tornou o primeiro Presidente democraticamente eleito — derrotando Maumoon Abdul Gayoom, um dos ‘dinossauros’ da política africana que levava 30 anos na liderança do país —, Mohamed Nasheed comprometeu-se a tornar as Maldivas num exemplo a seguir em matéria de preservação ambiental. A evolução política do país feriu de morte essa ambição pessoal.
Em 2012, em circunstâncias que não colhem a unanimidade no país, foi afastado do poder — por “um golpe de Estado”, diz. Acusado de traição, foi preso e julgado sem direito a testemunhas de defesa. Condenado a 13 anos de prisão, ficou impossibilitado de se recandidatar à presidência durante 16.
Autorizado a sair do país para ser submetido a uma cirurgia, obteve asilo no Reino Unido, em 2016. A vontade de regressar à política subsiste mas para voltar a disputar a liderança do país precisa de resolver os assuntos com a justiça. A advogada Amal Clooney integra a equipa que o defende.
Fala-se muito, faz-se pouco
Em dezembo do ano passado, o ex-Presidente retomou o combate pelo futuro das Maldivas convidado pelo atual chefe de Estado, Ibrahim Mohamed Solih, para liderar a delegação nacional à Conferência de Katowice (Polónia) sobre as alterações climáticas. Foi o 24ª encontro do género organizado pelas Nações Unidas para discutir regras com vista à aplicação do Acordo de Paris de 2015.
Para Nasheed, foi um regresso frustrante. “Quase dez anos passaram desde que eu estive pela última vez nestas negociações climáticas, e devo dizer que nada parece ter mudado muito. Continuamos a usar a mesma linguagem jurássica de sempre”, denunciou ele em Katowice. “As emissões de dióxido de carbono aumentam, aumentam, aumentam e tudo o que parece que fazemos é falar, falar, falar. E continuamos a fazer as mesmas observações entediantes.”
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O ministro das Pescas e da Agricultura das Maldivas assina o “SOS climático” aprovado numa reunião subaquática, a 17 de outubro de 2009 MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESDuas bandeiras das Maldivas sinalizam a realização de um evento oficial MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESA caminho da reunião, levando em mãos um documento para ser assinado MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESParticiparam no conselho de ministros subaquático 16 pessoas MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESMesas, cadeiras e canetas, o essencial para uma reunião fora do comum MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESO Presidente Mohamed Nasheen foi o grande promotor da iniciativa MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESA reunião decorreu com recurso a linguagem gestual MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESO “SOS climático” foi assinado por todos os participantes MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESA vez do ministro do Interior, Mohamed Shihab MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESO equipamento de mergulho não atrapalhou os trabalhos MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVESDe regresso à superfície, cumprida a missão MOHAMED SEENEEN / DIVERS ASSOCIATION OF MALDIVES
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui
Com a saída dos EUA do nordeste sírio, os curdos ficam sem aliados por perto e à mercê da mão castigadora da Turquia
Os apuros de Donald Trump dentro de portas parecem realçar uma certa impaciência do Presidente dos Estados Unidos na hora de lidar com problemas internacionais. Aconteceu no domingo passado, quando Trump anunciou a retirada das tropas norte-americanas em missão no nordeste da Síria. “Desde o primeiro dia em que entrei na política, tornei claro que não queria travar estas guerras intermináveis e sem sentido, em especial as que não beneficiam os EUA”, disse.
Três dias depois, a Turquia começava a bombardear a área desguarnecida pelos norte-americanos. Anunciada pelo Presidente Recep Tayyip Erdogan, a ofensiva “Fonte de Paz”, com fogo aéreo e de artilharia, visa áreas controladas pela milícia curda Unidades de Proteção do Povo (YPG).
O jornal turco “Daily Sabah” noticiava, quinta-feira, que a “operação antiterrorista” já tinha “libertado” 11 aldeias nas imediações das cidades de Tal Abyad e Ras al-Ayn. Há mais de 60 mil pessoas em fuga e notícias de pelo menos 277 mortos. A Turquia diz que são “militantes”, os curdos dizem que alguns são civis.
Ressurgimento do Daesh
Nos EUA, a decisão de Trump e o que se lhe seguiu no terreno geraram críticas, até no campo republicano. “Os EUA estão a abandonar os nossos aliados curdos, que combateram o Daesh [autodenominado Estado Islâmico] e ajudaram a proteger a nossa pátria”, acusou a deputada republicana Liz Cheney, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney. “A decisão ajuda os adversários da América — Rússia, Irão e Turquia — e abre caminho ao ressurgimento do Daesh.” Trump respondeu que os curdos não ajudaram os EUA durante a invasão… da Normandia, em 1944.
No barril de pólvora que a Síria se tornou após 2011, com a esperança de uma primavera árabe a degenerar num inverno sangrento, as forças curdas foram aliadas fiéis, profissionais e destemidas contra os extremistas. Na língua curda, peshmerga — como se intitulam os combatentes curdos — significa “os que enfrentam a morte”.
Passadeira aos turcos
No jornal israelita “Haaretz”, sexta-feira, Akil Marceau, ex-diretor da representação do governo regional do Curdistão iraquiano em Paris, decretou: “Qualquer esforço internacional que não resulte no estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre o norte da Síria e a proteção das suas minorias étnicas será uma cortina de fogo, na melhor das hipóteses — e na pior, uma faca nas costas” dos curdos. Em 1992, foi uma solução desse género que protegeu os curdos iraquianos de Saddam Hussein, após a Guerra do Golfo.
Às primeiras notícias da ofensiva turca, Trump comentou ser “má ideia” e acrescentou que Washington “não apoia” o ataque. Sobre o que faria se Erdogan acabar com os curdos, Trump respondeu: “Se a Turquia fizer algo que eu, na minha grande e ímpar sabedoria, considerar fora dos limites, destruirei e obliterarei toda a economia turca (já o fiz!).”
Por muito que Trump o tente iludir, a saída de cena das tropas americanas funcionou como “luz verde” para a investida turca sobre o nordeste da Síria. Ancara justifica a operação com a necessidade de criar uma “zona segura” — uma extensão de 400 quilómetros de comprimento e 30 de largura entre a fronteira e o rio Eufrates — para repatriar milhões de sírios refugiados na Turquia.
“É improvável que uma chamada ‘zona segura’ no nordeste da Síria, como a prevista pela Turquia, satisfaça os critérios internacionais para o regresso de refugiados”, reagiu Federica Mogherini, chefe da diplomacia da UE. Para Bruxelas, “o regresso de refugiados e deslocados internos aos seus locais de origem tem de ser seguro, voluntário e digno, quando as condições o permitirem. Qualquer tentativa de promoção de alterações demográficas é inaceitável. A UE não dará assistência em áreas onde os direitos das populações sejam ignorados”. Adivinha-se pois nova tragédia humana.
Um povo único
Etnicamente não-árabes — como turcos, iranianos, paquistaneses e afegãos —, os curdos são o maior povo sem Estado do mundo. Cerca de 30 milhões de pessoas vivem na intersecção de quatro países do Médio Oriente frequentemente desavindos: Turquia, Síria, Iraque e Irão. E sonham com um Curdistão independente.
Na Turquia, onde os curdos são entre 15% e 20% de uma população de 80 milhões, essa ambição é sentida como ameaça à segurança nacional. Abdullah Ocalan, líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, ilegalizado e que EUA e UE consideram terrorista), é o inimigo público nº 1. Cumpre prisão perpétua, há 20 anos, na ilha-prisão de Imrali.
Com a retirada dos EUA da região de Rojava — o chamado Curdistão sírio, composto pelos enclaves de Afrin, Kobane e Yazira —, os curdos ficam entregues a si próprios. Não foi a primeira vez que viram um aliado virar-lhes costas. Talvez por isso um velho ditado curdo profetize: “Não temos amigos, apenas as montanhas.”
TRÊS TRAIÇÕES
I GUERRA MUNDIAL — Pelo Tratado de Sèvres (1920), Aliados e Império Otomano contemplam a criação de um Curdistão na atual Turquia. De fora ficam os curdos do Irão, do Iraque (tutelado por britânicos) e da Síria (franceses). Depois o assunto é esquecido
IRAQUE — Os EUA armam os curdos durante o Governo de Abdel Karim Kassem. Após este ser deposto, em 1963, cortam apoio à minoria e ajudam o novo Governo, que investiu contra os curdos
GUERRA DO GOLFO — Em 1991, Bush (pai) apela aos iraquianos que se envolvam na deposição de Saddam Hussein. No norte, os curdos corresponderam. Os EUA não avançam sobre Bagdade e Saddam massacra a minoria
Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.