Como no Brexit, no desporto o Reino Unido é um país desunido, que pode desdobrar-se em cinco (e mais uma invulgar derivação)

No Reino Unido, o desporto ignora fronteiras. Fora de portas, o país ora compete com uma equipa única ora permite que ingleses, escoceses, galeses e norte-irlandeses vão a jogo com seleções próprias. E casos há em que as duas Irlandas se “reunificam” para defrontar os outros britânicos

O processo de saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit) pôs às claras sensibilidades várias que, do lado de lá do Canal da Mancha, expõem… um Reino desunido. Se ingleses e galeses votaram “sim” no referendo que legitimou o “adeus” à Europa, já escoceses e norte-irlandeses querem continuar a pertencer ao bloco europeu.

Estas divergências não terão impacto no desfecho do Brexit, que se aplicará ao “Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte”, como o país é oficialmente designado, ainda que muitas vezes responda por “Inglaterra”, “Grã-Bretanha”, “Reino Unido” ou até “Ilhas Britânicas” (ver glossário no fim).

O desporto é porventura das áreas onde os britânicos mais fórmulas usam para se apresentarem em público. Nos Jogos Olímpicos, por exemplo, os atletas representam o Reino Unido mas participam sob a chancela “Team GB” (Equipa Grã-Bretanha).

“Team GB” de regresso a casa, no Aeroporto de Heathrow, após os Jogos Olímpicos de 2016 FOTO STUART C. WILSON / GETTY IMAGES

Esta marca existe desde 1999 e foi desenvolvida pela Associação Olímpica Britânica (BOA) visando “unificar a equipa como um todo, independentemente da modalidade específica de cada atleta”. O curioso é que sendo a Grã-Bretanha composta por Inglaterra, Escócia e País de Gales, a “Team GB” pode também levar aos Jogos desportistas… da Irlanda do Norte.

“Os termos Grã-Bretanha e Reino Unido são invariavelmente misturados, o que não ajuda. Embora a filiação no Comité Olímpico Internacional (COI) seja concedida ao Reino Unido, que inclui a Irlanda do Norte, há atletas desta última que representam a República da Irlanda nos Jogos Olímpicos”, explica ao Expresso o escocês Alan Bairner, professor de Teoria Social e do Desporto, na Universidade de Loughborough, Inglaterra.

Os norte-irlandeses podem escolher entre competir pela equipa britânica ou pela irlandesa. Em 2016, dos 29 norte-irlandeses que fizeram os mínimos para os Jogos do Rio, apenas oito optaram pela “Team GB”. Entre os 21 que integraram a equipa da Irlanda esteve o pugilista Patrick Barnes, nascido em Belfast, que foi o porta-bandeira na cerimónia de inauguração.

A Irlanda já conquistou 31 medalhas nos Jogos Olímpicos. A Grã-Bretanha, que participou em todas as edições, é um colosso, com 883 FOTO KAI PFAFFENBACH /REUTERS

Quando falta menos de um ano para os Jogos de Tóquio, que começam a 24 de julho, os atletas norte-irlandeses já começaram a tomar posição sobre o assunto. Recentemente, o golfista norte-irlandês Rory Mcilroy, nº 1 do ranking mundial em 2012 e 2014 (em 2013 perdeu para Tiger Woods), anunciou que vai alinhar pela Irlanda.

O Partido Unionista Democrático (DUP), da Irlanda do Norte, tem o assunto na agenda e tem pressionado para ver a designação alterada. A resistência começa no seio da própria Associação Olímpica Britânica — que funciona com fundos privados —, para a qual “Team GB” é a marca comercialmente mais eficaz.

Dada a margem para a controvérsia, impõe-se uma questão: se “Team GB” realça a Grã-Bretanha (da qual não faz parte a Irlanda do Norte), por que não optar pela designação “Team UK” (“Equipa Reino Unido”)?

Dois pugilistas britânicos, durante um treino nos Jogos do Rio de Janeiro FOTO PETER CZIBORRA / REUTERS

“A Associação Olímpica Britânica é o Comité Olímpico Nacional da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, da Ilha de Man, das Ilhas do Canal e dos Territórios Ultramarinos do Reino Unido (incluindo as Malvinas e Gibraltar)”, esclareceu a Associação. Todos estes territórios têm por isso porta aberta da “Team GB”. No caso de uma “Team UK”, campeões como Mark Cavendish, que já averbou 30 vitórias em etapas do Tour de França, ficariam em casa. O ciclista é natural da Ilha de Man, uma dependência da Coroa Britânica que formalmente não faz parte do Reino Unido, apesar da sua Defesa e Relações Externas serem da responsabilidade… do Reino Unido.

“Nem ‘UK’ nem ‘GB’ descreve com precisão as competências da Associação, nem seriam representativas de todos os territórios que se enquadram na sua jurisdição”, concluiu a Associação Olímpica Britânica.

Parada do Liverpool, após vencer a Liga dos Campeões 2018/2019. Nas provas da UEFA, há clubes ingleses, galeses, escoceses e norte-irlandeses FOTO PHIL NOBLE / REUTERS

Se nos Jogos Olímpicos, o Reino Unido participa com uma seleção única, nos torneios de futebol — por seleções ou clubes —, os países participam individualmente. “Isto acontece porque a Irlanda do Norte (inicialmente Irlanda), a Escócia, o País de Gales e a Inglaterra (que foram as primeiras equipas de futebol a nível internacional) aderiram à UEFA e à FIFA como nações separadas”, explica Alan Bairner.

A história explica também por que razão nos campeonatos do mundo de râguebi e de críquete, as duas Irlandas competem unidas numa equipa única. “A Associação Irlandesa de Futebol foi estabelecida como um órgão para toda a Irlanda, em Belfast, em território que se tornaria Irlanda do Norte, enquanto a União Irlandesa de Críquete e a União Irlandesa de Râguebi foram estabelecidas em Dublin antes da cidade se tornar a capital do Estado Livre Irlandês (posteriormente República da Irlanda)”, explica Alan Bairner. “Com a Irlanda dividida, emergiram duas associações de futebol, mas o râguebi e o críquete continuaram a ter os órgãos administrativos de toda a Irlanda com sede em Dublin.”

No râguebi, a equipa irlandesa (de verde) é composta por jogadores das duas Irlandas. A foto refere-se a um Irlanda-País de Gales, a 7 de setembro passado FOTO PHIL NOBLE / REUTERS

Com tantas combinações possíveis, o Reino Unido mais parece um país de ficção. Mas os britânicos convivem bem com isso. No medalheiro olímpico, só norte-americanos, russos e alemães têm mais títulos.

GLOSSÁRIO

Ilhas Britânicas
É o conjunto de duas grandes ilhas (a Grã-Bretanha e a Irlanda) e de milhares de pequenas ilhas, a esmagadora maioria desabitadas.

Grã-Bretanha
É a maior das Ilhas Britânicas. Está dividida em três países não-soberanos: Inglaterra, Escócia e País de Gales.

Irlanda
Está dividida entre a Irlanda do Norte (que pertence ao Reino Unido) e a República da Irlanda, que é um país independente.

Reino Unido
É o Estado soberano, composto pela Grã-Bretanha e pela Irlanda do Norte.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 17 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui

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