Como o Irão encostou Trump às cordas

Além da contenção para evitar uma guerra, houve recados na forma como Teerão vingou Soleimani. Há espaço para dialogar

O assassínio do general Qasem Soleimani — alvejado por um drone dos Estados Unidos, dia 3, no aeroporto de Bagdade (Iraque) — desencadeou uma comoção entre os iranianos como não se via desde a morte do ayatollah Ruhollah Khomeini, fundador da República Islâmica. As ruas gritaram por “vingança”, e o regime foi destemido na hora de levá-la a cabo, bombardeando duas bases norte-americanas no Iraque. “Uma bofetada na cara” dos EUA, declarou o Líder Supremo, ayatollah Ali Khamenei.

Talvez em Washington a pancada tenha sido sentida mais como um murro, daqueles que deixa qualquer um atordoado. No discurso à nação com que reagiu ao ataque do Irão — e quando a imprevisibilidade de Donald Trump fazia prever um contra-ataque militar —, o Presidente dos EUA ‘fcou-se’ pela aprovação de novas sanções a Teerão e declarou-se disposto ao diálogo. “Todos devemos trabalhar juntos para fazer um acordo com o Irão que torne o mundo um lugar mais seguro e pacífico”, disse, quarta-feira. “O Irão pode ser um grande país.”

Responder à letra ao Irão poderia ser o gatilho de uma guerra total no Médio Oriente. A retaliação iraniana pela morte do general teve pelo menos três avisos importantes nesse sentido. Os 22 mísseis usados foram lançados de território iraniano, o que revela vontade de vingar a execução de Soleimani pelas próprias mãos e não “por procuração”, como acontece muitas vezes. Uma grande vantagem estratégica do Irão na região é possuir um “arco de infuência xiita” no mundo árabe, maioritariamente sunita — o país não é árabe, antes persa. São exemplos de grupos aliados do Irão o Hezbollah no Líbano, forças paramilitares na Síria, milícias armadas no Iraque e os huthis no Iémen.

Um segundo recado é a promessa de retaliação iraniana sobre alvos sensíveis como o Dubai e Haifa. O Dubai é um dos sete emirados que compõem os Emirados Árabes Unidos, país aliado dos EUA na região, e Haifa é uma cidade de Israel, o país que mais tem pressionado os americanos no sentido de um confronto militar com Teerão. Um ataque a estes dois alvos arrastaria o Médio Oriente para uma guerra total, com consequências em todo o mundo.

Um ataque do Irão a Israel ou ao Dubai arrastaria o Médio Oriente para uma guerra com impacto em todo o mundo

Um terceiro aspeto de grande significado neste ataque tem que ver com a utilização de mísseis balísticos, projéteis com capacidade para transportar ogivas nucleares. Uma vitória do Irão aquando da negociação do acordo internacional sobre o seu programa nuclear, em 2015, foi a não inclusão dos mísseis balísticos no programa. Este ataque prova que, apesar de condicionado na produção de armas nucleares, o Irão tem capacidade para ameaçar com o seu veículo de entrega, ou seja, os mísseis balísticos.

Ao atacar sem provocar vítimas, o Irão procurou o maior efeito psicológico com o mínimo de estragos. Em Washington acredita-se que Teerão não derramou sangue americano de forma deliberada, apesar de o Governo iraniano ter anunciado, para consumo interno, a morte de “80 terroristas”. O Irão revelou não querer a escalada e a predisposição para o diálogo possível.

(FOTO Mural no exterior do edifício da antiga embaixada dos EUA em Teerão KAMYAR ADL / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de janeiro de 2020

Uma relação compatível que a Revolução complicou

Com os ayatollahs no poder, os EUA tornaram-se o Grande Satã. Obama foi quem esteve mais perto de alterar a relação

“Existem poucas nações no mundo com as quais os Estados Unidos tenham menos motivos para discutir e interesses mais compatíveis do que o Irão”, disse Henry Kissinger, um insuspeito ‘falcão’ que foi secretário de Estado dos EUA entre 1973 e 1977. Porém, os últimos 40 anos têm sido a antítese dessa realidade, com a predominância de momentos críticos que colocam todo o mundo em estado de alerta. O momento definidor dessa tensa relação foi a Revolução Islâmica de 1979.

JIMMY CARTER, Dem. (1977-1981)

No último dia de 1977, Carter está em Teerão e brinda com o xá à “ilha de estabilidade” que é o Irão. Os contestatários ao monarca registam. Consumada a Revolução Islâmica, estudantes invadem a embaixada dos EUA e mantêm reféns durante 444 dias. A crise contribui para a não reeleição de Carter.

RONALD REAGAN, Rep. (1981-1989)

Com a guerra Irão-Iraque em curso, os EUA ficam do lado do Iraque de Saddam Hussein. O apoio mantém-se após Bagdade atacar os iranianos com armas químicas. Data desta altura o escândalo Irão Contras, em que a CIA é acusada de facilitar o tráfico de armas para o Irão, apesar do embargo.

GEORGE BUSH, Rep. (1989-1993)

Os EUA premeiam o apoio do Irão na Guerra do Golfo — desencadeada para conter o Iraque, que invadira o Kuwait — e não se opõem a que o Banco Mundial aprove um empréstimo ao Irão.

BILL CLINTON, Dem. (1993-2001)

Considera de “esperançosa” a eleição do reformista Mohammad Khatami para Presidente do Irão, em 1997. Três anos depois, a secretária de Estado Madeleine Albright aborda o papel dos EUA no golpe de 1953 para colocar o xá no poder. Mas a relação não evolui.

GEORGE W. BUSH, Rep. (2001-2009)

Após os atentados de 11 de Setembro, inscreve o Irão no “eixo do mal” que apoia o terrorismo internacional, juntamente com Iraque e Coreia do Norte.

BARACK OBAMA, Dem. (2009-2017)

Dias depois de tomar posse, diz que os EUA estão dispostos a estender a mão ao Irão se este “abrir o punho”. A diplomacia desbrava caminho e em 2015 é assinado um acordo que coloca o programa nuclear iraniano sob controlo internacional.

DONALD TRUMP, Rep. (2017-…)

Leva uma semana no poder e decreta a proibição de entrada no país a cidadãos de sete países muçulmanos, Irão incluído. Na Arábia Saudita, destino da sua primeira viagem ao estrangeiro, responsabiliza o Irão pelo terrorismo global. Em 2018, retira os EUA do acordo nuclear e repõe as sanções.

TRAGÉDIA SUSPEITA

► Um avião comercial ucraniano que ligava Teerão a Kiev despenhou-se no Irão, quarta-feira, oito minutos depois de ter descolado da capital iraniana. O desastre aconteceu no dia do ataque iraniano a bases militares do Iraque que albergam tropas americanas

► Seguiam a bordo 176 pessoas, entre elas 63 canadianos. Ninguém sobreviveu

► O Governo canadiano afirmou ter informação de que o aparelho foi abatido por um míssil. Os EUA acreditam que o disparo possa ter sido “acidental”. “Alguém pode ter cometido um erro”, admitiu Trump

► O Irão, que diz estar “certo” de que não houve qualquer míssil envolvido na queda do avião, abriu as portas a investigadores internacionais. As agências de aviação dos EUA, Canadá e França enviaram representantes para Teerão

► A televisão americana CBS constatou no local da tragédia que pouco restava dos destroços do avião. O embaixador do Irão no Reino Unido considerou “absolutamente absurda” a ideia de ter havido bulldozers a remover partes da aeronave, apesar de haver fotos e vídeos que sugerem isso

(FOTO Pintura anti-americana no muro da antiga embaixada dos Estados Unidos em Teerão PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui ou aqui

A democracia vai sobreviver?

Dos ataques cibernéticos aos locais onde é regime estabelecido, à dificuldade em singrar nas paragens que ainda não a abraçaram, a democracia parece ameaçada neste final de década. Mas será que os reais perigos que enfrenta são aqueles de que mais se fala?

Demagogos, populistas, extremistas. Pós-verdade, factos alternativos, desconfiança dos políticos. Eis as ameaças que pesam sobre a democracia liberal, a tal que num período entre há 30 e 25 anos parecia rumar à conquista do mundo. Certo? Talvez não. “A pós-verdade não é necessariamente má”, afirma ao Expresso o académico americano Steve Fuller. Professor de Ciências Sociais na Universidade de Warwick, autor de “Post-Truth: Knowledge as a Power Game” (Anthem, 2018), compreende os receios de hoje relativos ao efeito da desinformação — mormente via redes sociais — sobre os processos democráticos, mas vê-los como “dores de crescimento” de uma nova forma de democracia.

“Com o aumento da educação e do acesso à internet há mais fontes de informação, e isso ajuda ao processo de democratização. Se queremos mais democracia, é de esperar que aceitemos que se questionem as autoridades estabelecidas. Levanta imensos problemas, mas sobretudo às elites, àqueles que no passado eram fontes de conhecimento reconhecidas”, diz Fuller, durante uma conferência sobre inteligência artificial, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Reconhece que “há muito mais material na internet” e que “pode ser usado para minar a democracia”, mas não crê que as pessoas olhem para ele cegamente e julga que há mais risco de esse material aprofundar crenças já estabelecidas, no efeito conhecido como “bolha de filtro”, do que propriamente para espalhar persuasão geral sobre algo que é falso. “Podemos estar num período de transição, mas à medida que se vai percebendo como a informação é propagada, é possível consumi-la com espírito crítico”, acrescenta. Comenta que os que tiverem más intenções não precisam sequer de grande sofisticação. “Os maiores ataques às democracias têm vindo da Rússia, que não é o país mais avançado do mundo em muitos outros aspetos, e cujos hackers podem causar danos a nível global, sem precisarem sequer de ser diretamente comandados por Vladimir Putin.”

Fuller preocupa-se com a desresponsabilização das redes sociais pelos conteúdos que nelas circulam. “O problema do Facebook é afirmar-se como plataforma neutra. Futuramente terá de decidir o que é ou não apropriado, o que é ou não falso, e não me parece que esteja preparado para isso.” Insiste, porém, que é mais democrático haver “produtores e consumidores de informação em números semelhantes, ao passo que outrora havia poucos emissores para muitos recetores, e estes não tinham possibilidade de dar feedback. Ora, o fluxo de informação deve ser livre”.

Quando o centro se esvazia

“Há um risco para a democracia quando se constroem identidades muito fortes e todo o sistema tende para a polarização”, alerta, em declarações ao Expresso, a politóloga holandesa Catherine De Vries. Impressionada com dados que indicam que “nos Estados Unidos um apoiante do Partido Democrata confia mais num criminoso do que em alguém do Partido Republicano, ou vice-versa”, vê nesta falta de confiança — que as redes sociais alimentam — um obstáculo a qualquer compromisso que permita aos países avançar. Exemplifica com as tensões que o processo de saída da União Europeia (UE) tem criado no Reino Unido, com subsequente degradação do discurso público e falsidades propaladas “de ambos os lados”.

Especialista em euroceticismo, De Vries indica “os vetos cruzados” como impedimento a que os cidadãos consigam perceber o bem que a UE lhes faz. “Isso muitas vezes não se vê”, afirma, citando pesquisas que sugerem que “os partidos nacionais não falam muito do contributo da UE, porque isso seria assumirem que não são tão poderosos”. Recorda que a maioria das forças políticas europeias nasceu a nível nacional, de fricções sociais e económicas não centradas na pertença ou não a um projeto comum. A seu ver, “a única forma de a UE amadurecer é debater-se a si mesma”. Se a maioria dos seus 500 mil cidadãos se sente oriundo do país onde vive ou onde nasceu, e não “cidadão da UE”, tal deve-se à falta de cariz emocional desta última. “Vê-se a UE como algo com quem se tem uma transação, aceita-se se de lá vierem coisas boas, mas a cada coisa má vem logo a tentação de deitar tudo fora”. E aí é preciso refletir: “Queremos mesmo tornar-nos paus-mandados da Rússia, da China ou dos Estados Unidos?”

Aponta como momento crítico para a democracia na UE a crise do euro, os “ralhetes” de Bruxelas às opções democráticas dos países (sobretudo dos intervencionados). Frisa, porém, que desde então vários partidos “do centrão” ganharam eleições — em Portugal, Áustria e Dinamarca, por exemplo — e nota que “os populistas definem-se mais por aquilo a que se opõem, sendo anti-imigração, anticapitalistas ou anti-UE, em vez de serem a favor de algo. “E o povo quer é ver os políticos a fornecerem soluções”, razão pela qual “muitos demagogos, ao chegarem ao poder, caem antes do fim do mandato”.

Direitos dos androides?

Se De Vries fala da democracia representativa, Fuller considera-a em “transição para a democracia direta” e acha que isso é bom: “A democracia representativa é, na melhor das hipóteses, o último nível do paternalismo.” O estudioso americano não sabe dizer como será isso viável à escala de um país ou mais, mas “é para aí que o mundo vai”. “Há visões que se dividem entre, por exemplo, pensar que Trump é uma aberração e que quando ele se for embora volta tudo ao normal, ou pensar que isto é o novo normal. Tendo a acreditar na segunda”, afirma.

Fuller admite que, embora a maioria das pessoas não veja no processamento de dados e na inteligência artificial ameaças à democracia, as diferenças no acesso à informação possam criar novas tensões. “Tal como o marxismo nasceu em reação à revolução industrial, podemos assistir a uma reação ao facto de o capitalismo não ter libertado toda a gente.”

A outra vertente da transformação tecnológica com grande impacto na forma como somos governados, prognostica, será a nível do trabalho. As máquinas já substituem muita gente em empregos administrativos médios, “incluindo tarefas de alguns médicos e advogados”, afirma Fuller, para quem o destino do ser humano é “passar a ser o valor acrescentado à máquina”. “Hoje podemos comprar uma mesa do IKEA, barata e produzida em série, ou uma bonita mesa sem igual que só um artesão sabe fazer”, ilustra.

Mas o docente tem visões mais desafiadoras no que diz respeito à presença da tecnologia nas nossas vidas, a curto e médio prazo. “A questão dos direitos dos androides e máquinas vai colocar-se”, antevê. “Não vão tomar conta do mundo”, descansa os que tiverem visões distópicas de uma Humanidade escrava. “Mas à medida que se integram na nossa vida e confiamos cada vez mais no juízo de robôs e outros aparelhos, os humanos tenderão a vê-los cada vez mais como iguais.” Fala da assistência a pessoas idosas e incapacitadas como campo onde esse avanço vai dar-se mais depressa. “Se calhar um dia acontece com as máquinas o que aconteceu com as raças, torna-se inaceitável discriminar.”

Água mole em pedra dura

Até aqui temos falado de problemas “do primeiro mundo”, isto é, do sentimento de que a democracia não é o “fim da História” que até Francis Fukuyama já renegou. Mas é bom ver, e este ano foi nisso generoso, que essa História não chega a todo o lado ao mesmo tempo nem da mesma forma. Olhando para lá do chamado mundo Ocidental, há democracias ou laivos delas a tentar brotar em solos que lhe têm sido aziagos.

Indo ao berço da nossa espécie, a maioria dos africanos quer democracia, mas não vive em regimes democráticos. África é um mosaico de 54 países que nem a divisão em sub-regiões — África Oriental, Ocidental, do Norte, Austral — permite homogeneizar. Tem uma história de democratização recente de 30 ou 40 anos, se a entendermos como processo que visa atingir a democracia. Esta deve implicar, em África, muito mais do que a importação do modelo ocidental e a sua análise não pode ignorar os séculos de escravatura e colonialismo de que o Ocidente foi o grande beneficiário.

Em abril de 2019 o mundo viu cair o regime autoritário do Sudão, chefiado por Omar Al-Bashir, seguindo-se o acordo entre o conselho militar de transição e os líderes da contestação, que permitiu pôr em funções um primeiro Governo a 5 de setembro. A sua principal tarefa é abrir caminho ao poder civil e a eleições democráticas no prazo de três anos. Há não muito tempo, o Sudão seria dos países menos prováveis para palco de protestos populares consequentes. A realidade provou, todavia, que não era impossível criar um horizonte político com vista a uma abertura democrática e civil, a reivindicação exigida pelos manifestantes.

Há cada vez mais atos eleitorais no continente africano. A Freedom House conta 21 democracias plenas ou quase entre os 54 países, enquanto uma perspetiva mais conservadora, como a da Economist Intelligence Unit — que avalia o estado da democracia em 167 Estados, classificando-os como “democracias plenas”, “democracias imperfeitas”, “regimes híbridos” e “regimes autoritários” —, considera que apenas nove governos africanos estão no primeiro grupo, o equivalente a 12% da população do continente. Um estudo do Institut for Security Studies conclui que a democracia plena teria um impacto muito positivo no desenvolvimento individual dos países, porém, a maioria dos Estados é pobre, a robustez das instituições fraca e os partidos no poder controlam, em muitos casos, os processos eleitorais, comprometendo os seus resultados.

Olhando para lá do chamado mundo Ocidental, há democracias ou laivos delas a tentar brotar em solos que lhe têm sido aziagos

Os parâmetros são díspares e as histórias nacionais são únicas. Depois de uma transição presidencial considerada democrática por todos os padrões, a Zâmbia acaba de legalizar a produção de marijuana para exportação para fins medicinais, ao mesmo tempo que pretende expulsar o embaixador dos Estados Unidos no país por defender os direitos de um casal homossexual, condenado a 15 anos de prisão. Yoweri Museveni liderou a libertação do Uganda, mas perpetua-se no poder há décadas com uma mão cada vez mais pesada sobre a oposição e os direitos cívicos dos cidadãos. Porém, é o país de África mais aberto ao acolhimento de migrantes numa região — Grandes Lagos — flagelada por conflitos endémicos.

Mesmo países como a África do Sul, que beneficiam de uma Constituição e de instituições democráticas sólidas e propositadamente projetadas para avançarem para longe do passado de abuso de que foram objeto pelo regime de Apartheid, extinto em 1994, veem-se enredados em situações de captura do Estado por grupos económicos que foram favorecidos pela conivência do ex-Presidente Jacob Zuma, entretanto deposto.

Ao contrário do que é muitas vezes defendido, os países têm os seus mecanismos internos e a capacidade de forjar alianças para o desenvolvimento. A crescente influência da China e, mais recentemente, da Rússia, no continente preocupa parceiros tradicionais, que equivalem, ainda em muitos casos, às zonas de influência pós-coloniais. O desafio do continente é o crescimento da sua população, que terá duplicado em 2050 relativamente ao presente para 2400 milhões de habitantes, metade dos quais com menos de 25 anos, segundo projeções das Nações Unidas. Em 2018, 60% destes jovens estavam desempregados.

O gigante chinês

Na Ásia, a democracia é ainda, na esmagadora maioria dos países, um projeto. No supracitado índice Economist de 2018, a maior parte dos países asiáticos integra o bloco dos regimes autoritários. Um caso extremo é a Coreia do Norte, país hermético, apostado na autossuficiência económica e liderado, desde há 70 anos, por uma mesma família — os Kim — ao estilo de uma república dinástica em que o poder vai passando de pai para filho. No polo oposto estão exceções como o Japão, a Coreia do Sul ou a Índia, com democracias consolidadas e funcionais, ainda que posicionados no grupo das “democracias imperfeitas”, onde está também Portugal (com nota baixa no critério da “participação política”).

Ao longo de 2019, uma importante batalha pela democracia tem-se travado no interior de um dos maiores gigantes asiáticos: a República Popular da China, onde no ano passado o “Pensamento de Xi Jinping”, o atual líder, ganhou estatuto de nova doutrina política oficial, inserida na Constituição. Essa batalha está a acontecer em Hong Kong, região autónoma especial cuja soberania transitou, em 1997, do Reino Unido para a China. Protestos populares de massas, que chegaram a envolver dois milhões de pessoas, estão nas ruas desde 9 de junho, sem indícios de que o fim esteja para breve.

Espoletada inicialmente pela contestação a uma polémica nova lei da extradição — que os locais sentiam como o estender do braço autoritário de Pequim sobre a autonomia de que ainda gozam —, a contestação evoluiu no sentido de reivindicações mais políticas. Entre as exigências que os incansáveis manifestantes querem ver concretizadas a curto prazo, para saírem das ruas, está a eleição do chefe do governo local por sufrágio direto e universal, o que não acontece atualmente.

A longo prazo, está em causa a manutenção das liberdades de que hoje usufruem e que não são possíveis na China continental, na secreta esperança de que, chegados a 2047 — fim do período de transição de 50 anos—– tenha germinado na China a semente democrática que em Hong Kong tanto querem preservar.

Tão ou mais persistentes do que os habitantes de Hong Kong, este ano, só os argelinos que têm saído às ruas todas as sextas-feiras desde 22 de fevereiro. Apesar de a chamada “primavera árabe”, em 2011, ter resultado num rotundo fracassado — a queda dos ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen não trouxe a democracia —, na Argélia o povo parece apostado em repetir a fórmula. Já conseguiram impedir que o Presidente Abdelaziz Bouteflika, que vive preso a uma cadeira de rodas, se recandidatasse a um quinto mandato. Mas insistem numa total substituição do regime, uma verdadeira revolução.

Os pedidos de “fim do regime” fazem-se ouvir noutros países árabes, como o Líbano e a Jordânia, onde queixas relativas à qualidade de vida das populações e à corrupção que domina o aparelho do Estado têm levado milhares às ruas. Noutras latitudes o povo também protesta — Irão, Iraque, Chile, Bolívia, ou Equador —, seja por motivos domésticos seja por causas transversais, como a mudança climática. Se há lição das décadas que vivemos desde o fim da Guerra Fria, é que a História teima em não acabar, seja nos locais onde julgámos a democracia indestrutível, seja onde não imaginávamos que pudesse germinar.

Texto escrito com Cristina Peres e Pedro Cordeiro.

Artigo publicado na Revista E do “Expresso”, a 11 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Seis recados que o Irão enviou com o ataque aos EUA

O Irão consumou a prometida vingança à morte do general Qasem Soleimani bombardeando duas bases militares dos Estados Unidos no Iraque. O ataque tem implícitas mensagens importantes para dentro e, sobretudo, para fora do país

As ruas iranianas clamaram por vingança e ela foi servida exatamente cinco dias após os Estados Unidos terem assassinado o general iraniano Qasem Soleimani, que comoveu toda a nação persa.

Duas rajadas de mísseis atingiram esta madrugada outras tantas bases norte-americanas no Iraque. “Uma chapada na cara” dos EUA, disse o Líder Supremo do Irão, o “ayatollah” Ali Khamenei. A bola está agora do lado dos Estados Unidos. Até se perceber se haverá resposta, é importante atentar nos recados que o Irão quis enviar com este ataque, para dentro e fora de portas.

O ataque vingou o assassínio do general

A operação “Vingança Dura”, como Teerão batizou o ataque, foi desencadeada sensivelmente à mesma hora a que, na sexta-feira passada, Qasem Soleimani foi atingido mortalmente por um drone dos EUA no aeroporto internacional de Bagdade. “Entre a 1h45 e as 2h45 [mais três horas do que em Portugal Continental], o Iraque foi atacado por 22 mísseis”, anunciaram os militares iraquianos em comunicado. “Todos os mísseis atingiram bases da coligação [internacional].”

Se na sexta-feira, Donald Trump reagiu no Twitter publicando apenas uma imagem da bandeira norte-americana, desta vez foi Saeed Jalili, representante do Líder Supremo no Conselho Supremo de Segurança Nacional, a responder-lhe à letra, ‘postando’ a bandeira do Irão. Uma brincadeira na rede social favorita de Trump reveladora da predisposição das partes para seguirem com a tática de “olho por olho”.

O Irão atacou por si e não através de terceiros

Uma das (enormes) vantagens estratégicas do Irão no Médio Oriente é o chamado “arco de influência” que construiu no mundo árabe (o Irão não é árabe, mas sim persa). São atores importantes ao serviço dessa estratégia o Hezbollah no Líbano, forças paramilitares na Síria, milícias armadas no Iraque e os huthis no Iémen, que em setembro reivindicaram um espetacular ataque contra refinarias na Arábia Saudita que afetou fortemente a produção de petróleo do reino.

Qasem Soleimani era o grande arquiteto das intervenções militares iranianas e um comandante muito presente no terreno, junto desses atores. Na hora de retaliar a sua morte, Teerão quis faze-lo por mãos próprias — e não recorrendo a um ou vários dos seus próximos (“proxies”). Não há dúvidas de que o ataque foi lançado a partir do seu território.

O programa balístico iraniano funciona

Nos dois bombardeamentos, o Irão utilizou mísseis balísticos, projéteis sofisticados com capacidade para transportar ogivas nucleares que seguem trajetórias pré-determinadas.

Uma das críticas mais fortes ao acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano — co-assinado pelos EUA de Obama em 2015 e do qual Trump retirou o país em 2018 — é o facto de excluir restrições ao programa de mísseis balísticos do Irão. Na altura, este facto foi uma grande vitória negocial do Irão: apesar de condicionado na produção de armas nucleares, ficava de mãos livres para continuar a desenvolver o seu veículo de entrega, ou seja, os mísseis balísticos.

As bases atingidas são simbólicas

Os alvos da operação iraniana foram bases militares de grande importância estratégica para os EUA. Uma delas, Al-Assad, localizada na província de Anbar, a 180 km para oeste de Bagdade, é a maior base aérea do Iraque.

Foi esta base que Trump visitou aquando da sua primeira visita a tropas em missão, no Natal de 2018. No ano passado, foi ali que o vice-presidente Mike Pence passou o Dia de Ação de Graças.

Começou a ser usada pelas forças americanas após a invasão do Iraque que derrubou Saddam Hussein, em 2003; deixou de funcionar após a retirada das tropas de combate dos EUA, em finais de 2011; e foi reativada no contexto da luta contra os jiadistas do Daesh.

A outra base alvejada situa-se em Erbil, no Curdistão iraquiano. Em outubro, foi desta base que partiu a unidade de comandos que surpreendeu e eliminou Abu Bakr al-Baghdadi, líder do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh), na cidade síria de Barisha.

No combate ao Daesh, EUA e Irão estiveram do mesmo lado da barricada e, no Iraque, foi crucial o desempenho das Forças de Mobilização Popular (xiitas), apoiadas pelo Irão. O seu nº 2, o iraquiano Abu Mahdi al-Muhandis, foi assassinado pelos EUA no mesmo ataque que vitimou Qasem Soleimani.

Se os EUA retaliarem, há outros países em mira

Com os ecrãs das televisões tomados por rastos de luz no céu escuro do Iraque à passagem dos mísseis iranianos, correspondentes de órgãos de informação ocidentais em Teerão eram porta-vozes de mais recados do regime dos ayatollahs.

“O Irão está a avisar que se houver retaliação às duas vagas de ataques lançadas, a terceira vaga destruirá o Dubai e Haifa”, escreveu no Twitter Ali Arouzi, da televisão norte-americana NBC.

O Dubai é um dos sete emirados que compõem os Emirados Árabes Unidos, um aliado dos EUA na região. E Haifa é uma cidade de Israel, o país que mais tem pressionado o amigo americano no sentido de um confronto militar com o Irão.

Um ataque a estes dois países arrastaria todo o Médio Oriente para uma guerra total, com consequências em todo o mundo. Esta quarta-feira, o primeiro-ministro israelita advertiu: “Estamos firmes contra aqueles que buscam as nossas vidas. Estamos de pé com determinação e força. Quem tentar atacar-nos receberá em troca um golpe esmagador”, declarou Benjamin Netanyahu, numa conferência em Jerusalém. De forma não oficial, Israel tem armas nucleares.

Mensagens para dentro de portas

Na euforia do ataque, as autoridades iranianas disseram que tinham sido mortos “80 terroristas”, como o Irão passou a designar os soldados norte-americanos. Mas nem os EUA nem o Iraque confirmam a existência de vítimas mortais.

A informação terá, porém, confortado muitos iranianos, feridos no seu orgulho pela execução de uma figura popular como o general e que os orgulhava.

O ódio ao “Grande Satã” (como a República Islâmica se refere aos EUA) é um factor de unidade nacional no Irão e a primeira reação oficial iraniana ao ataque espelha-o: “Saiam da nossa região!”, escreveu no Twitter o ministro das Telecomunicações, Azari Jahromi.

Nos EUA, no conta-gotas noticioso relativo ao perfil deste ataque começaram a surgir insinuações de que o Irão pode não ter atingido soldados norte-americanos “intencionalmente”. Se assim foi, e atendendo às palavras do seu chefe da diplomacia — “Não queremos guerra com os EUA”, disse Mohammad Javad Zarif —, o Irão dá sinais de querer resolver esta crise pela via do diálogo possível.

(IMAGEM Pelo menos cinco estruturas da base foram atingidas pelos ataques com mísseis do Irão, como mostra esta imagem de satélite ©2020 Planet Labs, Inc. cc-by-sa 4.0 / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 8 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Quatro dúvidas sobre o regresso da tensão máxima ao Médio Oriente

Há espaço para uma negociação? O acordo nuclear tem condições para sobreviver? Os EUA vão retirar as suas tropas do Iraque? O que ganham os EUA com tudo isto? Analistas ouvidos pelo Expresso anotam as interrogações pós-morte de Qasem Soleimani. A resposta vai sempre parar ao mesmo destinatário: Donald Trump

O mundo está de respiração suspensa à espera da prometida “vingança” do Irão ao assassínio do general Qasem Soleimani pelos Estados Unidos. Esta terça-feira, Ali Shamkhani, secretário do Conselho Supremo Nacional do Irão, disse que estão a ser avaliados 13 “cenários de retaliação”.

O militar ia a enterrar esta terça-feira, em Kerman (sul), a sua cidade natal, mas o funeral foi adiado por circunstâncias trágicas: pelo menos 32 pessoas morreram e 190 ficaram feridas numa debandada durante as exéquias participadas por muitos milhares de pessoas. Os iranianos choram a morte do comandante como que se de um familiar se tratasse e cerram fileiras em torno do regime dos ayatollas. A ameaça do regresso da guerra ao Médio Oriente atirou o preço do ouro para máximos e fez disparar o preço do petróleo. Um pouco por todo o mundo, multiplicam-se sinais de nervosismo e sobram interrogações.

Há espaço para negociação entre EUA e Irão?

Esta terça-feira, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros denunciou que lhe foi negado visto de entrada nos EUA para participar na reunião do Conselho de Segurança da ONU, agendada para quinta-feira, em Nova Iorque. “Receiam que alguém venha aos EUA e revele a realidade das coisas”, acusou Mohammad Javad Zarif.

O diálogo entre Washington e Teerão não se afigura fácil, mas a politóloga iraniana Ghoncheh Tazmini acredita que uma negociação ainda é possível, “mesmo no meio do rancor e da dor”, diz ao Expresso. “Um porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros disse que a Administração Trump continua a ser bem vinda para se juntar Irão e ao E3+2 [França, Reino Unido, Alemanha, Rússia e China] à mesa das negociações. Mas isso implica, em primeiro lugar, suspender as sanções ao Irão, que provocam escassez de alimentos e remédios junto do povo (não do regime nem do Estado)”, diz a investigadora na Escola de Estudos Orientais e Africanos, da Universidade de Londres.

O acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano foi um sucesso da Administração Obama que Donald Trump reverteu, em maio de 2018, retirando os EUA desse compromisso. Em consequência, o Irão já adotou “medidas corretivas” ao acordo por cinco vezes, a últimas das quais esta semana ao anunciar que vai deixar de respeitar os limites relativamente ao enriquecimento de urânio.

O acordo nuclear tem condições para sobreviver?

Recordemos: Qasem Soleimani era o grande arquiteto das intervenções militares iranianas no Médio Oriente assentes em grupos xiitas como o Hezbollah libanês, os Huthis no Iémen, forças paramilitares na Síria e milícias armadas no Iraque, que visitava quando foi alvejado por um drone norte-americano, em Bagdade.

Os EUA vão retirar as suas tropas do Iraque?

Dezassete anos após terem invadido o Iraque, deposto o ditador Saddam Hussein (sunita) e possibilitado — pela via do voto popular — a ascensão ao poder da maioria xiita, os EUA receberam “guia de marcha” para regressarem a casa. No domingo, o Parlamento iraquiano aprovou uma resolução exigindo a saída das tropas estrangeiras do país.

Foi Barack Obama quem anunciou o fim da guerra e o regresso a casa das tropas de combate, que se concretizou em finais de 2011. Mas cerca de 5000 americanos estão ainda no Iraque, em funções sobretudo de assessoria, num ambiente cada vez mais hostil.

Horas após o assassínio do general, a NATO suspendeu a missão de treino das forças iraquianas. Na segunda-feira, em Bruxelas, a Aliança apelou à contenção e à diminuição da escalada. “Um novo conflito não será do interesse de ninguém”, alertou o secretário-geral Jens Stoltenberg. “O Irão deve abster-se de mais violência e provocações.”

Mas a tensão é inegável e, nos países com tropas destacadas no Iraque, o nervosismo é indisfarçável. A Alemanha anunciou que vai deslocar 30 dos seus 120 militares de Bagdade para a Jordânia e Kuwait. Os restantes 90 estão mais ‘protegidos’, na região curda (norte).

O que ganham os EUA com tudo isto?

Com os órgãos de informação saturados com notícias sobre o “impeachment” a Donald Trump e, agora, a tensão com o Irão, quase não se dá conta que as eleições primárias que irão escolher os candidatos às presidenciais de 3 de novembro começam em menos de um mês, no Iowa (3 de fevereiro).

Aos olhos de muitos norte-americanos, Trump poderá surgir como um líder corajoso e destemido, o melhor de todos para os defender, mas para o interesse nacional do país, o assassínio do general Soleimani pode ter sido um tiro no pé. “Colocam os EUA numa situação extremamente complicada no Iraque, já que se tratou de uma clara violação da soberania”, diz ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, professor na Universidade Complutense de Madrid. A confirmar-se a saída das tropas, “a morte de Soleimani não só não enfraqueceria a posição do Irão na região, como a fortaleceria. Os EUA podem ser a principal vítima de uma decisão claramente precipitada que pode ter o efeito oposto ao desejado.”

“A única tábua de salvação que os EUA têm para mitigar esta crise perigosa fabricada por Trump seria regressar aos termos do acordo nuclear”, realça Ghoncheh Tazmini. “Os iranianos e o mundo árabe xiita estão unidos, fervendo de raiva, rancor e tristeza. Os EUA não estão mais seguros hoje do que há uma semana. A missão suicida de Trump devia ser interrompida e, para mim, a única forma de isso acontecer é retomar o acordo.”

(FOTO Sepultura de Qasem Soleimani, no Cemitério dos Mártires de Kerman MOHAMMAD ALI MARIZAD / WIKIMPEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 7 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui