O pior pode estar para vir

Bombeiros recusam aperto de mão ao primeiro-ministro. Scott Morrison não acredita em alterações climáticas

Na Austrália, o pior pode estar para vir. As previsões climatéricas para este fim de semana apontam para um tempo ainda mais quente, seco e ventoso do que o dos últimos dias, que originou cenas verdadeiramente apocalípticas no país. Ontem, as autoridades ordenaram a evacuação de partes dos estados de Victoria e Nova Gales do Sul, na costa sudeste, como medida preventiva ao previsível descontrolo das chamas. “Se valorizam a segurança têm de partir”, alertou Michael Grainger, da polícia de Victoria. “Nestas circunstâncias, os bens pessoais têm muito, muito pouco valor. São circunstâncias terríveis, que não haja dúvidas.”

Com o país a viver níveis de seca recordes, os desgastados bombeiros dizem que apenas a chuva pode extinguir as chamas que se propagam desde setembro. Nalgumas zonas, os dias tornaram-se noites, com o céu coberto de fumo por vezes em tom avermelhado, como que preparando os locais para o apocalipse. Em Mallacoota (Victoria), mil turistas e residentes que estavam numa praia, encurralados pelo fogo, foram ontem resgatados pela marinha. “É uma versão em tempo de paz de algo que vimos durante a guerra”, afirmou Anthony Albanese, líder do Partido Trabalhista, na oposição.

Até ao momento, já morreram pelo menos 18 pessoas, 28 estão desaparecidos e arderam mais de cinco milhões de hectares de mata. Em brasa está também a credibilidade do primeiro-ministro, o conservador Scott Morrison, recebido esta semana com grande contestação nas zonas mais afetadas. “Não é bem vindo aqui, seu cretino!”, gritava um habitante de Cobargo (Nova Gales do Sul).

Sydney não abdicou da festa

“Sempre que há cheias ou incêndios nesta zona não recebemos nada”, acusava outra moradora, recordando que muitas casas tinham ardido. “Se estivéssemos em Sydney ou na costa norte, não nos faltariam donativos e ajuda de emergência.” Enxovalhado pelos locais, o primeiro-ministro enfrentou ainda o embaraço de ficar de mão estendida diante de bombeiros e habitantes que se recusaram a cumprimentá-lo.

Scott Morrison — que lidera o Governo desde agosto de 2018 — colocou-se na linha de fogo pela forma displicente e insensível com que tem reagido ao drama. Antes do Natal, tardou em regressar de umas férias no Hawai com a família. Confrontado com as críticas, colocou-se na posição de um canalizador que enfrenta um dilema… “É sexta-feira à tarde e você tem de decidir se aceita aquele serviço extra de canalização ou se vai buscar as crianças. Este é o tipo de malabarismos que temos de fazer enquanto pais”, justificou.

O mal-estar em relação às autoridades agravou-se após múltiplos apelos ao cancelamento do emblemático fogo de artifício da passagem de ano em Sydney — a capital de Nova Gales do Sul — terem sido ignorados. Nos dias que antecederam o réveillon, uma petição sugerindo que os milhões gastos no evento fossem doados a bombeiros e agricultores recolheu 270 mil assinaturas.

Cinzas têm impacto nos glaciares

Na linha dos Presidentes norte-americano Donald Trump e do brasileiro Jair Bolsonaro, Morrison é um líder que tem desvalorizado o impacto das alterações climáticas. Segundo o “Índice de Desempenho Relativo às Mudanças Climáticas 2020” — elaborado de forma independente por think tanks —, a Austrália está em 56º lugar numa lista de 61 países (Portugal é 25º e os EUA último). “O novo Governo é cada vez mais uma força regressiva nas negociações e tem sido criticado pela sua falta de ambição por parte de várias nações insulares do Pacífico”, lê-se no relatório.

A época dos incêndios é um clássico na Austrália, mas este ano o fenómeno tem sido mais extremo. O fumo e as cinzas provocados pelos fogos percorreram milhares de quilómetros e já chegaram à Nova Zelândia, colorindo os glaciares com um castanho caramelizado amea­çador. “Como a tragédia de um país tem efeitos colaterais”, desabafou no Twitter a ex-primeira-ministra neozelandesa Helen Clark. “Os incêndios florestais australianos criaram neblina na Nova Zelândia (…). O impacto das cinzas nos glaciares vai provavelmente acelerar o degelo.”

FOTO Incêndio florestal na região de Captain Creek, no estado de Queensland, nordeste da Austrália WIKIMDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *