Quatro dúvidas sobre o regresso da tensão máxima ao Médio Oriente

Há espaço para uma negociação? O acordo nuclear tem condições para sobreviver? Os EUA vão retirar as suas tropas do Iraque? O que ganham os EUA com tudo isto? Analistas ouvidos pelo Expresso anotam as interrogações pós-morte de Qasem Soleimani. A resposta vai sempre parar ao mesmo destinatário: Donald Trump

O mundo está de respiração suspensa à espera da prometida “vingança” do Irão ao assassínio do general Qasem Soleimani pelos Estados Unidos. Esta terça-feira, Ali Shamkhani, secretário do Conselho Supremo Nacional do Irão, disse que estão a ser avaliados 13 “cenários de retaliação”.

O militar ia a enterrar esta terça-feira, em Kerman (sul), a sua cidade natal, mas o funeral foi adiado por circunstâncias trágicas: pelo menos 32 pessoas morreram e 190 ficaram feridas numa debandada durante as exéquias participadas por muitos milhares de pessoas. Os iranianos choram a morte do comandante como que se de um familiar se tratasse e cerram fileiras em torno do regime dos ayatollas. A ameaça do regresso da guerra ao Médio Oriente atirou o preço do ouro para máximos e fez disparar o preço do petróleo. Um pouco por todo o mundo, multiplicam-se sinais de nervosismo e sobram interrogações.

Há espaço para negociação entre EUA e Irão?

Esta terça-feira, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros denunciou que lhe foi negado visto de entrada nos EUA para participar na reunião do Conselho de Segurança da ONU, agendada para quinta-feira, em Nova Iorque. “Receiam que alguém venha aos EUA e revele a realidade das coisas”, acusou Mohammad Javad Zarif.

O diálogo entre Washington e Teerão não se afigura fácil, mas a politóloga iraniana Ghoncheh Tazmini acredita que uma negociação ainda é possível, “mesmo no meio do rancor e da dor”, diz ao Expresso. “Um porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros disse que a Administração Trump continua a ser bem vinda para se juntar Irão e ao E3+2 [França, Reino Unido, Alemanha, Rússia e China] à mesa das negociações. Mas isso implica, em primeiro lugar, suspender as sanções ao Irão, que provocam escassez de alimentos e remédios junto do povo (não do regime nem do Estado)”, diz a investigadora na Escola de Estudos Orientais e Africanos, da Universidade de Londres.

O acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano foi um sucesso da Administração Obama que Donald Trump reverteu, em maio de 2018, retirando os EUA desse compromisso. Em consequência, o Irão já adotou “medidas corretivas” ao acordo por cinco vezes, a últimas das quais esta semana ao anunciar que vai deixar de respeitar os limites relativamente ao enriquecimento de urânio.

O acordo nuclear tem condições para sobreviver?

Recordemos: Qasem Soleimani era o grande arquiteto das intervenções militares iranianas no Médio Oriente assentes em grupos xiitas como o Hezbollah libanês, os Huthis no Iémen, forças paramilitares na Síria e milícias armadas no Iraque, que visitava quando foi alvejado por um drone norte-americano, em Bagdade.

Os EUA vão retirar as suas tropas do Iraque?

Dezassete anos após terem invadido o Iraque, deposto o ditador Saddam Hussein (sunita) e possibilitado — pela via do voto popular — a ascensão ao poder da maioria xiita, os EUA receberam “guia de marcha” para regressarem a casa. No domingo, o Parlamento iraquiano aprovou uma resolução exigindo a saída das tropas estrangeiras do país.

Foi Barack Obama quem anunciou o fim da guerra e o regresso a casa das tropas de combate, que se concretizou em finais de 2011. Mas cerca de 5000 americanos estão ainda no Iraque, em funções sobretudo de assessoria, num ambiente cada vez mais hostil.

Horas após o assassínio do general, a NATO suspendeu a missão de treino das forças iraquianas. Na segunda-feira, em Bruxelas, a Aliança apelou à contenção e à diminuição da escalada. “Um novo conflito não será do interesse de ninguém”, alertou o secretário-geral Jens Stoltenberg. “O Irão deve abster-se de mais violência e provocações.”

Mas a tensão é inegável e, nos países com tropas destacadas no Iraque, o nervosismo é indisfarçável. A Alemanha anunciou que vai deslocar 30 dos seus 120 militares de Bagdade para a Jordânia e Kuwait. Os restantes 90 estão mais ‘protegidos’, na região curda (norte).

O que ganham os EUA com tudo isto?

Com os órgãos de informação saturados com notícias sobre o “impeachment” a Donald Trump e, agora, a tensão com o Irão, quase não se dá conta que as eleições primárias que irão escolher os candidatos às presidenciais de 3 de novembro começam em menos de um mês, no Iowa (3 de fevereiro).

Aos olhos de muitos norte-americanos, Trump poderá surgir como um líder corajoso e destemido, o melhor de todos para os defender, mas para o interesse nacional do país, o assassínio do general Soleimani pode ter sido um tiro no pé. “Colocam os EUA numa situação extremamente complicada no Iraque, já que se tratou de uma clara violação da soberania”, diz ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, professor na Universidade Complutense de Madrid. A confirmar-se a saída das tropas, “a morte de Soleimani não só não enfraqueceria a posição do Irão na região, como a fortaleceria. Os EUA podem ser a principal vítima de uma decisão claramente precipitada que pode ter o efeito oposto ao desejado.”

“A única tábua de salvação que os EUA têm para mitigar esta crise perigosa fabricada por Trump seria regressar aos termos do acordo nuclear”, realça Ghoncheh Tazmini. “Os iranianos e o mundo árabe xiita estão unidos, fervendo de raiva, rancor e tristeza. Os EUA não estão mais seguros hoje do que há uma semana. A missão suicida de Trump devia ser interrompida e, para mim, a única forma de isso acontecer é retomar o acordo.”

(FOTO Sepultura de Qasem Soleimani, no Cemitério dos Mártires de Kerman MOHAMMAD ALI MARIZAD / WIKIMPEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 7 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

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