O Irão está em lágrimas, comovido pela ‘procissão de despedida’ do general Qasem Soleimani, que vai a enterrar esta terça-feira. Uma investigadora iraniana identifica uma vitória póstuma do general assassinado pelos EUA: a inevitável saída dos norte-americanos do Iraque
Qasem Soleimani vai a enterrar esta terça-feira, em Kerman, no sul do Irão. Terminarão então três dias de luto decretados para que o povo possa despedir-se do seu principal comandante militar — arquiteto das intervenções militares iranianas no Médio Oriente —, assassinado na sexta-feira por um drone dos Estados Unidos no aeroporto de Bagdade (Iraque).
Esta segunda-feira, em Teerão, multidões compactas rodearam o féretro do general, transportado em mãos pelas ruas da capital. O lento avanço da urna, entre uma massa de gente fervorosamente comovida, trouxe à memória vivências de 1989 quando Teerão estava igualmente em choque e despedia-se do ayatollah Ruhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica.
“Este assassínio uniu o povo iraniano como nunca antes”, diz ao Expresso a politóloga iraniana Ghoncheh Tazmini. “Antes da sua morte, as sondagens atribuíam-lhe uma taxa de aprovação superior a 65%. Para todos os iranianos, isto foi uma afronta, uma violação e um ataque direto aberto ao povo iraniano, e não apenas ao general e ao regime. A manifestação de tristeza e o sentimento geral de alienação e incerteza quando ao futuro do Irão não se limitam àqueles que são pró-regime.”
Desde que chegaram ao país, no domingo, que os restos daquele que era uma das personalidades mais populares entre os iranianos atravessaram várias cidades ao estilo de uma procissão nacional. Começou em Ahvaz (sudoeste), seguiu para Mashad (nordeste), Teerão e Qom (norte). Vai terminar esta terça-feira em Kerman (sudeste), onde o general nasceu a 11 de março de 1957.
O rasto de comoção chegou à capital do Iraque onde, no sábado, milhares de pessoas acompanharam o féretro desde o santuário de Kadhimiya (nas margens do rio Tigre) até à Zona Verde (um bairro blindado onde se situam os principais órgãos do Governo e as embaixadas). “Vingança”, “Morte à América”, gritou-se em Bagdade.
Iraque e Irão são países maioritariamente xiitas ainda que, em contextos específicos, a rivalidade cultural entre ambos — os iraquianos são árabes e os iranianos persas — os coloquem em lados opostos da barricada. Não é o caso desta morte que a todos une.
Em Bagdade, as cerimónias fúnebres adiaram um dia uma votação no Parlamento que fez soar alarmes em Washington. No domingo, vexados pelo que consideram ter sido uma violação da sua soberania por parte dos EUA, os deputados iraquianos aprovaram uma resolução exigindo a retirada das tropas estrangeiras do país. O diploma reflete receios de que um futuro confronto entre EUA e Irão transforme o Iraque no principal campo de batalha.
“Instamos fortemente os líderes iraquianos a reconsiderarem a importância da relação entre os dois países a nível económico e de segurança bem como a presença contínua da Coligação Global contra o Daesh”, reagiu o Departamento de Estado dos EUA.
Entendida como uma declaração de guerra, o Irão já prometeu retaliar a morte do seu general. No domingo, deu mais uma machadada no debilitado acordo internacional de 2015 sobre o seu programa nuclear (que Donald Trump rasgou em maio de 2018) e anunciou que vai deixar de respeitar os limites ao enriquecimento de urânio impostos. Esta segunda-feira, França, Reino Unido e Alemanha apelaram a que Teerão se mantenha dentro dos “seus compromissos”.
Quanto a uma resposta militar, será uma questão de tempo. “O Irão fará o que o general teria feito. A mesma abordagem sábia, imparcial e calculada que o falecido estratega teria adotado. Ele preparou muitos como ele e, postumamente, alcançou uma grande vitória — a inexorável saída dos EUA do vizinho Iraque”, diz a investigadora iraniana. “Os iranianos seguirão os passos daquele que é hoje o maior mártir xiita iraniano contemporâneo.”
Os EUA já anunciaram o reforço do seu contingente militar na região em cerca de 3000 operacionais. No Twitter, Donald Trump carregou na retórica belicista e ameaçou bombardear… alvos culturais: “Se o Irão atacar quaisquer americanos, ou interesses americanos, nós temos identificados 52 locais iranianos (que representam os 52 reféns americanos que os iranianos fizeram há muitos anos), alguns de alto nível e importantes para o Irão e para a cultura iraniana”, escreveu o Presidente dos EUA.
“Este tweet foi provavelmente tão significativo quanto o assassínio do general, no seu impacto e nas implicações que ele traz”, comenta Ghoncheh Tazmini. “Tem como alvo direto o povo iraniano, no Irão e na diáspora. Aqueles que duvidaram das intenções malignas e destrutivas do Governo dos EUA em relação ao povo iraniano ganharam 100% de certeza. O que é cultura? Cultura são pessoas.”
(FOTO Qasem Soleimani, em oração junto ao túmulo do Imã Khomeini, numa foto de 2015 WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 6 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui