Jogos à porta fechada, eventos cancelados ou deslocados. O coronavírus deu cabo do calendário desportivo
“The show must go on” — nem que seja à porta fechada e sem público a assistir. É o que vai acontecer este fim de semana em cinco jogos da Serie A, a primeira divisão do campeonato italiano de futebol. Nesse lote está um dos jogos do ano, o Juventus-Inter, entre equipas que têm ombreado na liderança, o que já levou a Sky, detentora dos direitos da prova, a admitir ceder a transmissão da partida em canal aberto.
A Itália é o país europeu mais afetado pelo Covid-19 — em número de infetados e de mortos — e, desde há uma semana, um decreto governamental proíbe aglomerações de pessoas, em especial no norte do país. Na quinta-feira, em Milão, o Inter-Ludogorets (da Bulgária) para a Liga Europa realizou-se sem espectadores no Giuseppe Meazza. Nesse mesmo dia, foi noticiado o primeiro teste positivo entre futebolistas do Calcio — um atleta do Pianese, da Serie C, que foi internado num hospital de Siena.
Dentro de três meses e meio, a 12 de junho, é precisamente em Itália, no Olímpico de Roma, que será dado o pontapé de saída do Campeonato da Europa. A UEFA quis celebrar em grande o 60º aniversário do torneio e distribuiu-o por 12 países, da Espanha (Bilbau) ao Azerbaijão (Baku). Na fase de grupos, a Seleção portuguesa andará entre a Hungria (Budapeste) e a Alemanha (Munique).
No atual contexto de propagação do novo coronavírus, este modelo inédito pode transformar-se numa dor de cabeça insuportável. Há duas semanas, num balanço à venda de bilhetes, a UEFA disse ter recebido 28,3 milhões de pedidos, o dobro da procura do Euro 2016. Só o Alemanha-França, do grupo de Portugal, motivou o interesse de 710 mil pessoas, quase dez vezes a capacidade da Allianz Arena de Munique, que o vai receber.
Megaeventos no horizonte
Este “interesse sem precedentes” à volta do Euro, como reconheceu a própria UEFA, dá uma ideia do vai e vem de gente que se projeta por toda a Europa. Esta semana, a organização abordou pela primeira vez a possibilidade de o evento ser adiado se o surto de Covid-19 não for controlado. “Estamos na fase da espera. Estamos a monitorizar país a país. O futebol deve seguir as ordens de cada país”, disse Michele Uva, membro do Comité Executivo da UEFA, em declarações à televisão italiana RAI. “A via desportiva só será fechada se a situação piorar.”
Com a final do Euro prevista para 12 de julho em Londres, os amantes dos grandes eventos desportivos terão apenas duas semanas de pausa até retomarem as emoções fortes. Para 24 de julho está prevista a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos no Japão, país que presentemente é o quarto com mais casos de Covid-19 confirmados, a seguir a China, Coreia do Sul e Itália. Da mesma forma que, há quatro anos, o vírus Zika ameaçou “adiar” ou “cancelar” os Jogos do Rio de Janeiro, este ano é um outro microrganismo a forçar a discussão.
Se, em 2016, o vírus Zika ameaçou adiar ou cancelar os jogos do Rio, agora há outro microrganismo a forçar a discussão
No início desta semana, um dirigente do Comité Olímpico Internacional (COI) pôs o dedo na ferida afirmando que existe uma janela de três meses, até ao fim de maio, finda a qual há que tomar uma decisão realista em relação ao evento. “Por essa altura, as pessoas vão ter de perguntar: ‘Estará controlado o suficiente para nos sentirmos confiantes e irmos até Tóquio, ou não?’”, disse Dick Pound, antigo campeão canadiano de natação, que não tem dúvidas na hora de optar entre cancelar ou adiar um evento que demorou anos a preparar. “Não se adia algo com o tamanho e a escala dos Jogos Olímpicos” — em Tóquio são esperados 11 mil atletas, de mais de 200 nações, e oito milhões de espectadores. “Há tanta coisa em causa, tantos países e diferentes calendários, competitivos, televisivos. Não se pode apenas dizer: ‘Adia-se para outubro’.”
Seria a segunda vez que o Japão veria os ‘seus’ Jogos cancelados, já que a edição de 1940, anulada por causa da II Guerra Mundial, também lhe estava atribuída. Mas no país ninguém quer pensar nessa possibilidade. Em causa está um evento avaliado em 25 mil milhões de dólares (€23 mil milhões) com tabelas para os principais patrocinadores na ordem dos 100 milhões de dólares (€91 milhões).
Quem quer receber os Jogos?
Quinta-feira, quando ainda ecoavam as palavras do seu colega no COI, o presidente da organização, Thomas Bach, procurou afastar fantasmas num encontro com jornalistas japoneses. Afirmou que o COI está “totalmente comprometido com o sucesso dos Jogos que irão começar a 24 de julho” e, questionado sobre alternativas, foi seco: “Não vou deitar combustível às chamas da especulação.”
Cancelar os Jogos pode ter, a prazo, um efeito dramático. “Anteriormente, várias cidades retiraram as suas candidaturas perante receios em relação aos custos com a realização de megaeventos, por exemplo com a segurança”, comenta ao Expresso Alan Bairner, professor na Universidade de Loughborough (Reino Unido). “Com o Covid-19 em mente, é possível que algumas cidades e países fiquem mais relutantes em apresentar candidatura. Mas há uma visão alternativa que diz que uma crise deste tipo nunca afetou os Jogos no passado, por isso porquê pensar que pode tornar-se uma ocorrência regular?”
MODALIDADES AFETADAS
FUTEBOL — Campeonatos parados na China, Japão e Coreia do Sul. Jogos à porta fechada no Irão
ATLETISMO — Previsto para março, em Nanjing (China), o Campeonato do Mundo em Pista Coberta foi adiado para 2021
CICLISMO — Com meta final este domingo, o Tour dos Emirados Árabes Unidos acabou mais cedo após dois casos suspeitos no hotel das equipas
FÓRMULA 1 — O Grande Prémio de Xangai, marcado para 19 de abril, foi adiado
RÂGUEBI — Algumas partidas do Torneio das Seis Nações, nomeadamente as que opõem Itália e Irlanda, previstas para 6 e 8 de março, foram adiadas
TÉNIS DE MESA — Na Coreia do Sul, o Campeonato do Mundo por equipas, agendado para março, foi adiado três meses
BOXE — O torneio de qualificação para os Jogos referente à Ásia e à Oceânia foi transferido para Amã (Jordânia). Estava previsto para Wuhan (China), onde primeiro surgiu o Covid-19
Texto escrito com Rossend Domènech, correspondente em Roma.
Dos seis líderes que enfrentaram os principais palcos de contestação da chamada Primavera Árabe, apenas dois continuam vivos, e ambos no poder. Um graças ao apoio de um dos pesos pesados do Médio Oriente, outro após um banho de sangue que dura há quase nove anos
A morte do antigo líder egípcio Hosni Mubarak, conhecida na terça-feira, foi o culminar da lenta agonia de um homem que chegou a ser tratado, ainda que em sentido figurado, pelo título de “faraó”. No poder entre 1981 e 2011, foi o Presidente que mais tempo governou o Egito, até os ventos da mudança que varreram o Médio Oriente — o movimento da “Primavera Árabe” — chegarem também ao Cairo. Durante 18 dias, ignorou os apelos à demissão que saíam da Praça Tahrir, mas acabou deposto, a 11 de fevereiro de 2011.
Diante da Justiça, teve de responder por crimes relacionados com corrupção, abuso de poder e o assassínio de manifestantes, mas raramente abriu a boca. A fragilidade com que aparecia em tribunal — deitado numa cama de hospital, dentro de uma gaiola e de óculos escuros — foi a suprema humilhação para quem se julgara intocável à frente de um país que fora outrora uma das grandes civilizações universais. Foi condenado a prisão perpétua, depois absolvido e libertado a 24 de março de 2017, mas a saúde não deu trégua. Morreu aos 91 anos, com a imagem de um homem irredutível em sair do poder quando não era mais desejado, mas também de um grande comandante da Força Aérea na guerra israelo-árabe de 1973 e da nostalgia de um país estável e cheio de turistas.
TUNÍSIA:ZINE EL ABIDINE BEN ALI
Foi na Tunísia que a “Primavera Árabe” começou e foi o seu líder também o primeiro a cair, ao 28º dia de protestos. A 14 de janeiro de 2011, numa corrida contra o relógio, Ben Ali passou o poder “temporariamente” para o seu primeiro-ministro e fugiu do país, com a mulher, Leila, e os três filhos. Após a França negar autorização de aterragem ao seu avião, rumou à cidade saudita de Jeddah, onde um outro ditador, o ugandês Idi Amin, viveu os últimos dias.
No seu exílio saudita, Ben Ali escapou ao mandado internacional de prisão, mas não à justiça tunisina. A 20 de junho de 2011, o ex-casal presidencial foi condenado “in absentia” a 35 anos de prisão por roubo e posse ilegal de dinheiro e joias. Ben Ali morreu a 19 de setembro de 2019, de cancro na próstata, num hospital de Jeddah e foi enterrado na cidade de Medina. Tinha 83 anos.
LÍBIA: MUAMMAR KADHAFI
A revolução na Líbia levava oito meses nas ruas quando, a 20 de outubro de 2011, Muammar Kadhafi tombou às mãos dos seus — tinha 69 anos de idade. Linchado numa rua de Sirte, o último reduto das forças que lhe eram leais, terminava de forma inglória 42 anos de poder absoluto. Ruía também o sonho de um país único, cuja estrutura política e forma de governo ele próprio idealizara no famoso “Livro Verde”, uma espécie de Constituição, publicado em 1975 e distribuído pelas embaixadas líbias nos quatro cantos do mundo. Hoje, apesar da estabilidade continuar a ser uma miragem no país — e as milícias armadas um grande desafio à paz —, o Livro não passa de uma peça de coleção e Kadhafi um líder que desperta sentimentos contrários na Líbia.
IÉMEN: ALI ABDULLAH SALEH
Abandonou o poder pelo próprio pé ainda que pressionado por dez meses de manifestações populares no Iémen. A 23 de novembro de 2011, em Riade, Ali Abdullah Saleh assinou um acordo de transferência de poder para o seu vice-presidente. Em troca, obteve imunidade para si e para a família, suspeita de enriquecimento à custa do erário de um dos países mais pobres do mundo.
Com a justiça dos tribunais de mãos atadas, vingou a justiça das ruas. A 4 de dezembro de 2017, Saleh foi assassinado nos arredores de Sana quando, após uma emboscada, tentava chegar de carro a território controlado pelos sauditas. Não chegou ao seu destino, atingido mortalmente por um “sniper” dos rebeldes houthis. Estes — que controlavam e ainda controlam a capital — são antigos aliados contra quem Saleh apelara à revolta dois dias antes de ser morto, aos 70 anos.
SÍRIA: BASHAR AL-ASSAD
Aos 54 anos, Bashar al-Assad faz jus ao seu nome de família e resiste no poder, em Damasco, como um leão (“assad”, em árabe). Dos quase 20 anos que o líder sírio leva no poder, metade foram vividos a defender-se, no contexto de uma guerra civil iniciada em março de 2011 e alimentada por uma componente jiadista (Daesh e Al-Qaeda) e por muitos interesses geopolíticos.
O conflito resultou da repressão com que Bashar respondeu aos protestos da “Primavera Árabe” a que os sírios achavam que também teriam direito e que em Tunis e no Cairo já tinham resultado em revoluções. O sírio sobreviveu politicamente mas hoje, no estrangeiro, poucas capitais estão dispostas a estender-lhe a passadeira, para além dos aliados Rússia e Irão. Entre milhares de mortos e milhões de refugiados, “a Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, quando ainda era Alto Comissário da ONU para os Refugiados. Bashar al-Assad é o rosto dessa grande catástrofe.
BAHRAIN: HAMAD BIN ISA AL-KHALIFA
Era uma revolução condenada à nascença, ainda assim uma fatia importante da população do Bahrain não quis deixar de ir à luta. Maioritariamente xiitas, os habitantes deste pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico são governados por uma monarquia sunita. Por essa razão quando, em fevereiro de 2011, se viu acossado por manifestações antirregime em Manama, o rei Hamad bin Isa al-Khalifa apressou-se a pedir ajuda à vizinha Arábia Saudita (o gigante sunita da região), que ajudou a conter a rebelião enviando tropas e tanques. O eventual sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causava calafrios aos sauditas pelo significado que teria para o rival Irão (o gigante xiita), do outro lado do Golfo.
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui
Foi um dos grandes impérios da História. Ainda hoje, o seu legado histórico, geográfico e religioso influencia as opções geopolíticas de um dos gigantes do Médio Oriente, o Irão
“Bem-vindo, peregrino, tenho estado à tua espera. Perante ti jaz Ciro, Rei da Ásia, Rei do Mundo. Tudo o que resta de mim é pó. Não me invejes”
No sítio arqueológico de Pasárgadas, no sudoeste do Irão, a inscrição gravada no túmulo do fundador do primeiro império persa instala a dúvida num visitante casual. Quão poderoso terá sido efetivamente este homem para chamar a si o título de “Rei do Mundo”? A História universal dá a resposta. No século VI a.C., Ciro, o Grande, unificou o Império Aqueménida, que se estendia do atual território da Líbia até à cordilheira do Hindu Kush, entre o Afeganistão e o Paquistão.
Estratego militar brilhante, revelou-se também um líder tolerante, respeitador das tradições e costumes dos povos que invadia. A ele se deve a primeira carta dos direitos humanos do mundo. Descoberto em 1878, em escavações na antiga cidade da Babilónia (que o imperador conquistou em 539 a.C. e que fica no atual Iraque), o Cilindro de Ciro — um rolo em argila que pode ser apreciado no Museu Britânico, em Londres — exalta a benevolência daquele líder que tratou os súbditos com dignidade, libertou escravos, autorizou os judeus cativos a regressarem à Judeia, emancipou minorias e decretou a liberdade religiosa.
Em 2003, quando recebeu o Prémio Nobel da Paz em Oslo, a iraniana Shirin Ebadi — advogada na área dos direitos humanos e uma voz crítica do regime dos ayatollahs — não esqueceu esse legado humanista. “Sou uma iraniana. Uma descendente de Ciro, o Grande. O mesmo imperador que proclamou no auge do seu poder, 2500 anos atrás, que não reinaria sobre o seu povo se este não o desejasse. E prometeu não forçar ninguém a mudar de religião e de fé e garantiu liberdade para todos. A Carta de Ciro, o Grande é um dos documentos mais importantes que deveriam ser estudados na história dos direitos humanos.”
No imaginário coletivo iraniano, Ciro está na origem de uma sucessão de impérios extraordinários que contribuíram para enraizar a ideia de uma civilização singular liderada por monarcas notáveis. No fim dessa linhagem, Mohammad Reza Pahlavi, o Xá do Irão entre 1941 e 1979, deu cumprimento a esse desígnio e coroou-se “Rei dos Reis”.
Convicto de que era o líder perfeito de um país sem igual, cego perante a contestação nas ruas contra a repressão da polícia política, Reza Pahlavi mobilizou recursos infinitos para que fosse organizada com toda a pompa uma receção comemorativa dos 2500 anos da fundação do Império Persa. Em 1971, junto às ruínas de Persépolis, a antiga capital, foi erguida uma “cidade de tendas” com material vindo de França em 100 aviões e 40 camiões para acomodar reis e presidentes, ministros e generais, realeza e comunistas vindos dos quatro cantos do mundo.
Na fila para cumprimentar o Xá Reza Pahlavi e a imperatriz Farah Diba desfilaram do imperador da Etiópia, Haile Selassie, ao ditador romeno, Nicolae Ceauşescu, de Grace Kelly e Rainier do Mónaco a Imelda Marcos, das Filipinas, de Juan Carlos e Sofia de Espanha ao marechal Josip Broz Tito, Presidente da Jugoslávia. Portugal esteve representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício.
250 limusinas no deserto
As tendas foram montadas num oásis construído para a ocasião, com uma floresta, flores, fontes e 50 mil pássaros chilreantes importados da Europa (a maioria dos quais morreria inadaptados às condições climatéricas). Para adequar aquele pedaço inóspito de deserto à presença humana, aeronaves pulverizaram quilómetros em redor da cidade para limpar o solo de todo o tipo de bichos rastejantes. Foram também asfaltados dezenas de quilómetros de autoestrada. O transporte dos convidados entre o aeroporto e o local da celebração foi assegurado por 250 limusinas Mercedes-Benz vermelhas à prova de bala.
Em Paris, o centenário restaurante Maxim’s fechou portas ao público para preparar 18 toneladas de comida, depois transportadas em aviões militares iranianos, juntamente com 150 toneladas de utensílios de cozinha, incluindo louça criada pela exclusiva Limoges, e milhares de garrafas dos melhores vinhos e champanhe franceses. Para servir no banquete, foram contratados dezenas de empregados do luxuoso Palace Hotel, de St. Moritz (Suíça). Diariamente, um helicóptero transportou um bloco de gelo do tamanho de um carro para refrescar o vinho branco. Uma equipa de filmagens foi recrutada em Hollywood para realizar o filme oficial da festa do orgulho persa, com Orson Welles no papel de narrador.
Entre 12 e 14 de outubro de 1971, o Irão foi palco daquela que foi possivelmente a festa mais extravagante da História, transmitida em direto por satélite para televisões de todo o mundo. “Gastaram em dois dias o orçamento da Suíça para dois anos”, testemunhou Marcel Huder, um dos garçons do Palace Hotel de St. Moritz que serviu no banquete, no documentário “Decadence and Downfall: The Shah of Iran’s Ultimate Party”, produzido pela BBC (2016).
https://www.youtube.com/watch?v=l0X_B4x2eBc
As celebrações — protegidas por um aparato de 60 mil tropas — deixaram um país depauperado, um povo revoltado com toda aquela ostentação e uma oposição cada vez menos silenciosa incentivada, desde o seu exílio no Iraque, por Ruhollah Khomeini, um clérigo influente para quem o Irão não era um país suficientemente islâmico.
O festim de Persépolis — convocado pelo “Rei dos Reis” para celebrar o feito do “Rei do Mundo” — desgastou decisivamente a dinastia Pahlavi. Mas na sua essência, toda aquela sumptuosidade espelhava a forma como, ainda hoje, os iranianos olham para si próprios e projetam o seu país no mundo: um povo único, com língua própria (o farsi), herdeiro de uma civilização antiga e superior, destinado a ocupar um lugar central na história.
Superioridade persa
Com cerca de 85 milhões de habitantes, o Irão é um mosaico composto por dezenas de grupos étnicos, ecos da passagem pelo território de outros conquistadores. Os persas correspondem a cerca de 60 por cento da população; azeris e curdos são as maiores das minorias. Maioritários, os persas são também a etnia mais influente na identidade iraniana. No governo, os principais cargos tendem a ser ocupados por persas.
Originalmente conquistadores indo-europeus descendentes dos arianos, os persas orgulham-se de serem os detentores legítimos das terras que ocupam. Em 1934, o monarca Reza Shah, pai de Mohammad Reza Pahlavi, determinou que, na correspondência oficial com o estrangeiro, o nome “Pérsia” fosse substituído por “Irão” (“a terra dos arianos”).
Reza Shah tinha conhecidas inclinações pró-germânicas — acabaria mesmo por ser deposto por tropas aliadas anglo-soviéticas, em 1941, no decurso da II Guerra Mundial, em que o Irão era oficialmente neutral. Mas ao alterar a designação do país talvez tenha pretendido substituir o nome de uma entidade que já passara por um período decadente por outro que colocaria em evidência a pureza do povo.
Os iranianos não são árabes. Muitos acreditam que a Pérsia entrou em decadência após a invasão islâmica no século VII, que impôs uma religião revelada na língua árabe, o Islão
Em paralelo ao fator étnico, a localização geográfica do Irão e, mais importante ainda, a sua orografia contribuem para alimentar uma certa ambição hegemónica. O país situa-se na encruzilhada do mundo islâmico, entre as regiões do Médio Oriente, do Cáucaso e da Ásia Central e do Sul. Essa localização castiga-o com uma tensão permanente que decorre da necessidade de equilibrar benefícios e riscos da sua posição estratégica.
Mas são as suas imponentes montanhas que definem este país. A norte, a cordilheira Alborz atravessa o território de leste a oeste, com o pico no Monte Damavand (5671 metros acima do nível do mar), o mais alto do Médio Oriente. A ocidente situa-se a barreira natural iraniana mais importante — a cordilheira de Zagros. Com vários cumes acima dos 4000 metros, esta cadeia cruza o país desde o território da Turquia até ao Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico. No passado, foi a fronteira histórica entre a Pérsia e a Mesopotâmia (atual Iraque).
Do olho nos árabes
Há 2500 anos, foi do coração desta fortaleza geográfica — que tem uma área superior às de França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Espanha e Portugal combinadas — que o Império Persa iniciou a sua expansão. Hoje, é nesse planalto que o Irão explora as maiores reservas de gás natural e as quartas maiores reservas de petróleo do mundo e cerra fileiras perante ameaças à espreita, desde logo por parte dos seus inimigos históricos — os árabes.
À semelhança de turcos, afegãos e paquistaneses, os iranianos não são um povo árabe. Este é, aliás, um dos equívocos mais frequentes em relação às problemáticas do Médio Oriente. Muitos iranianos consideram os árabes bárbaros e acreditam que a Pérsia entrou em decadência após a invasão islâmica no século VII, que impôs uma religião revelada na língua árabe, o Islão.
Se é um facto que, nas últimas quatro décadas, o Irão tem vivido sob os ditames de uma teocracia muçulmana, a sua dinâmica quotidiana continua a ser pautada por tradições pré-islâmica. O tempo é contado com base no calendário persa e cada Ano Novo (“Nowruz”) coincide com o início da primavera (21 de março do calendário gregoriano), conforme a tradição mística do zoroastrismo, a fé da antiga Pérsia.
Nos corredores políticos de Teerão, na hora de hierarquizar prioridades geopolíticas, toda esta herança ancestral vem ao de cima — da identidade às inimizades. É neste contexto que deve ser compreendida a grande rivalidade entre o Irão (persa) e a Arábia Saudita (árabe) que, de tempos a tempos, ameaça arrastar todo o Médio Oriente para uma guerra total.
A dor dos xiitas
Um segundo pilar que sustenta a conflitualidade entre iranianos e sauditas é a sensibilidade religiosa predominante nestes dois países islâmicos. Guardiã das mesquitas sagradas de Meca e Medina, lugares venerados por qualquer crente muçulmano, a Arábia Saudita é maioritariamente sunita. Já o Irão é esmagadoramente xiita. Com os ayatollahs no poder o Islão xiita tornou-se a religião de Estado.
A diferença fundamental entre as duas correntes decorre da morte de Maomé, no ano 632. O Profeta não designou um sucessor na liderança da “Ummah” (a comunidade dos crentes) e, na hora de se pronunciarem, os discípulos dividiram-se. Uns optaram por Abu Bakr, sogro e braço-direito de Maomé — são os sunitas, partidários da “sunna”, a tradição. Outro grupo preferiu Ali, genro e primo de Maomé — os xiitas, “shiat’ Ali”, “seguidores de Ali”.
Os xiitas iranianos acreditam que os ensinamentos do Profeta foram perpetuados por uma linhagem de 12 imãs. O último, Mahdi, é um mensageiro “oculto” que virá à Terra salvar a humanidade da tirania e da barbárie. Indissociável dessa esperança, a espiritualidade xiita tem também expressões de intensa dor e sofrimento que, não raras vezes, alimentam um estereótipo de fanatismo, intolerância e predisposição para o martírio. Na festa religiosa da Ashura, por exemplo, que celebra o assassínio de Hussein, neto de Maomé e filho de Ali, na Batalha de Karbala, peregrinos autoflagelam-se com facas e punhais num ritual macabro de se observar.
De manifestações desta natureza resulta a perceção — errada — de uma fação extremista como nenhuma outra entre as várias correntes do Islão. Mas protagonistas do terrorismo internacional como a Al-Qaeda ou o Daesh (o autodenominado “Estado Islâmico”), o Boko Haram na Nigéria ou o grupo Abu Sayyaf nas Filipinas são na realidade subprodutos do sunismo.
A Revolução Islâmica de 1979 e a chegada ao poder de teólogos xiitas conservadores acentuou esta grande clivagem entre Teerão e Riade, que determina muita da conflitualidade do Médio Oriente. Mas, “como acontece com a maioria dos Estados revolucionários”, escreve o investigador iraniano-americano Ray Takeyh no livro “Hidden Iran — Paradox and Power in the Islamic Republic” (2006), “o Irão deixou de ser um ator militante que desafia as normas regionais para ser um Estado pragmático que segue uma política baseada em cálculos de interesse nacional”.
Hoje, esse pragmatismo passa pela fortificação de uma frente avançada de defesa em territórios dominados pelos árabes, um “arco de influência xiita” com pilares de apoio em países onde os xiitas são maioritários, estão no poder ou simplesmente têm minorias xiita importantes, vestígios de um império que já foi grande.
Xiitas ganham com guerras
No imenso mar sunita que é a região do Médio Oriente, os xiitas são a maioria da população em apenas três países: Irão, Iraque e Bahrein, embora só nos dois primeiros detenham o poder.
Se hoje Teerão exerce grande influência em Bagdade deve-o aos Estados Unidos e à guerra desencadeada por George W. Bush, em 2003, apoiada em documentos forjados que “provavam” que Saddam Hussein dispunha de um arsenal de armas de destruição maciça. A deposição do ditador — que governava apoiado na minoria sunita, a sua, e reprimia com mão dura a maioria xiita — e a experiência democrática que se seguiu catapultaram os xiitas para o poder e escancararam as portas de Bagdade aos iranianos.
A influência do Irão sobre o Iraque não é porém ilimitada, como ficou demonstrado na guerra que os dois países travaram entre 1980 e 1988. Os iraquianos xiitas cerraram fileiras em torno de Saddam Hussein e não do ayatollah Khomeini, o “irmão” xiita iraniano. Neste caso, a rivalidade ancestral entre árabes e persas falou mais alto do que a sensibilidade religiosa.
À semelhança do que aconteceu no Iraque, Teerão também beneficiou largamente da guerra no Afeganistão, desencadeada pela mesma Administração Bush, em 2001, para retaliar os atentados de 11 de setembro. A queda do regime dos talibãs (estudantes de teologia), que dava guarida à Al-Qaeda de Osama bin Laden, eliminou outro baluarte sunita contra a avançada regional do Irão.
Remetidos novamente às hostes da resistência contra o poder central em Cabul, os talibãs não descuram os seus ódios de sempre, continuando a visar em atentados ou efetuando raptos afegãos xiitas, como é o caso dos de etnia hazara. Descendentes dos mongóis enviados por Gengis Khan no século XIII, praticam sobretudo o xiismo do ramo duodecimano (o do Irão) e o ismaelismo, cujo líder é Aga Khan.
No Iraque ou no Afeganistão, o desgaste provocado nas autoridades nacionais pela ocupação estrangeira do país combinado com o crescente desprestígio dos norte-americanos tornam o Irão mais difícil de conter. Já no Bahrein, a única petromonarquia ribeirinha ao Golfo Pérsico maioritariamente xiita, o assédio iraniano é seguido à lupa pela Arábia Saudita. Foi o que aconteceu em 2011 quando sopravam os ventos da primavera árabe na região e manifestações populares desafiaram o poder dos Al-Khalifa (sunita), exigindo direitos políticos para os xiitas, marginalizados de cargos governativos. Em socorro da família real, os sauditas invadiram o território com tanques e tropas, matando à nascença uma velada tentativa de o Irão colocar um pé na Península Arábica — como hoje acontece no Iémen.
Vulnerabilidade saudita
Estrategicamente localizado junto ao Estreito de Bab al-Mandab, que liga o Mar Vermelho ao Golfo de Aden, no sudoeste da bota a que se assemelha a Península Arábica, o Iémen é o “calcanhar de Aquiles” da Arábia Saudita, o ponto de vulnerabilidade que o Irão quer explorar. Em 2015, os huthis, um grupo iemenita que professa um ramo antigo do xiismo, rebelaram-se contra o Presidente reconhecido internacionalmente, com apoio logístico e financeiro do Irão. A Arábia Saudita respondeu com uma intervenção militar (que ainda dura) naquele que é um dos países mais pobres do mundo, contando também com o desgaste provocado pela Al-Qaeda na Península Arábica (sunita), que tem a sua base no Iémen e é o braço mais ativo da organização terrorista (reivindicou, por exemplo, o ataque ao jornal satírico francês “Charlie Hebdo”).
Tal como aconteceu no Iraque, o Irão beneficiou largamente com a guerra do Afeganistão. A queda do regime talibã eliminou outro baluarte sunita contra a avançada regional do Irão
Há cinco meses, um ataque com drones e mísseis balísticos contra duas importantes refinarias sauditas suspendeu metade da produção petrolífera do país e afetou 6 por cento do abastecimento global. Sofisticado e preciso, o ataque foi reivindicado pelos huthis, embora os sauditas tenham disparado acusações na direção dos iranianos. A ser verdade, fica provada a eficácia de um dos vetores da estratégia militar do Irão para a região — atingir inimigos através de terceiros.
Israel, o “pequeno satã”
A Síria é outro ponto de apoio do “arco xiita” iraniano. Oriundo da minoria alauita (uma derivação do xiismo), o Presidente Bashar al-Assad tem resistido à guerra que leva quase nove anos graças, em grande parte, ao apoio no terreno de milhares de combatentes do seu peão libanês, o Hezbollah. O “Partido de Deus” — um misto de força paramilitar, partido político (com representação parlamentar e ministros no governo) e organização de beneficência social — é para o Irão uma força de vanguarda na luta contra a “entidade sionista”, como os de Teerão se referem a Israel.
O Irão alberga desde tempos longínquos a comunidade de judeus mais numerosa do Médio Oriente a viver fora de Israel e do território palestiniano ocupado da Cisjordânia — hoje a rondar as 8500 pessoas. Para o ayatollah Khomeini, o problema não eram os judeus mas antes o Estado de Israel, “o pequeno satã”, que considerava fruto de uma conspiração desenhada para consolidar o neocolonialismo ocidental no Médio Oriente e humilhar os muçulmanos. A ocupação de Jerusalém — durante o conflito israelo-árabe de 1967 (Guerra dos Seis Dias) — era a expressão visível desse projeto.
No Irão, a partir de finais da década de 90, o cérebro por trás desta rede de proxies permeáveis aos interesses iranianos passou a ser o general Qasem Soleimani, comandante das Brigadas al-Quds, uma força de elite dos Guardas da Revolução. Esse protagonismo, bem como as suas frequentes deslocações ao terreno para visitar, orientar ou comandar fações amigas, colocou-o na linha de mira. A 3 de janeiro passado, foi alvejado mortalmente por um drone dos EUA junto ao aeroporto internacional de Bagdade.
Um brinde que caiu mal
Popular e respeitado no Irão, o seu martírio — a forma mais nobre de se morrer entre os xiitas mais fervorosos — originou gigantescas manifestações de pesar só comparáveis, em dimensão e lágrimas derramadas, às exéquias fúnebres do fundador da República, em 1989. Os gritos de “Morte à América” e as exigências de “vingança” recuperam todo um guião de hostilidade aos Estados Unidos tão antigo quanto a própria República Islâmica. Para o ayatollah Khomeini, o Ocidente era fonte de todos os males. O seu ódio à monarquia refletia, acima de tudo, a rejeição da ocidentalização com que o Xá pretendia enterrar a identidade islâmica da sociedade iraniana — com a cumplicidade do “grande satã”.
Prestes a cumprir o seu primeiro ano na Casa Branca, Jimmy Carter realizou um périplo pelo estrangeiro que o levou também ao Irão, onde chegou mesmo no fim do ano. A 31 de dezembro de 1977, o Xá presenteou-o com um banquete em Teerão e Carter desfez-se em elogios. Realçou a “ilha de estabilidade” que era o Irão “numa das áreas mais problemáticas do mundo” e atribui esse feito à “grande liderança” do Xá. E no momento do brinde, colocou-se na pele do mais rendido dos súbditos: “Este é um grande tributo a sua majestade e à liderança, ao respeito, à admiração e ao amor do seu povo.”
Inimigos compatíveis
Se Jimmy Carter não viu ou não quis ver, a verdade é que a monarquia vivia os últimos dias no Irão. Regressado o ayatollah Khomeini do seu exílio em Paris a 1 de fevereiro de 1979, a Revolução não demorou a consolidar-se. A 4 de novembro seguinte, estudantes rumaram à Avenida Taleqani, invadiram a embaixada dos EUA e mantiveram 52 norte-americanos cativos durante 444 dias. A crise contribui decisivamente para a não reeleição de Carter e terminou no exato dia em que Ronald Reagan entrou na Casa Branca, a 20 de janeiro de 1981. Os dois países continuaram de relações cortadas. Hoje, os murais hostis a Washington que continuam a ser pintados nas paredes do edifício da antiga embaixada dos EUA em Teerão são a prova que os iranianos não esquecem.
Insuspeito “falcão” da diplomacia americana, o antigo secretário de Estado, Henry Kissinger, escreveu no livro “Does America Need a Foreign Policy?” (2002): “Existem poucas nações no mundo com as quais os EUA têm menos motivos para discutir e interesses mais compatíveis do que o Irão.” As últimas quatro décadas têm sido, no entanto, a antítese dessa realidade, apesar de circunstancialmente iranianos e americanos estarem do mesmo lado da barricada combatendo inimigos comuns. Foi assim com a União Soviética, com Saddam Hussein e mais recentemente com a Al-Qaeda e o Daesh — ainda que no subconsciente de ambos o inimigo fosse quem estava do seu lado.
(IMAGEM Relevo nas ruínas do templo de Apadana, na cidade iraniana de Persépolis)
Artigo publicado na Revista E do “Expresso”, a 22 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui
A Organização Mundial de Saúde (OMS) vislumbrou, esta semana, uma luz ao fundo do túnel do combate ao coronavírus e anunciou que a primeira vacina “poderá estar pronta dentro de 18 meses”. Até lá, é urgente que o mundo “acorde” e considere este vírus o seu “inimigo público número um”, declarou o diretor-geral Tedros Adhanom Ghebreyesus. “Um vírus é mais poderoso na criação de tumultos políticos, sociais e económicos do que qualquer ataque terrorista.”
Sem que se conheça ainda a fonte do surto — sabe-se apenas que a infeção aconteceu num mercado de peixe da cidade de Wuhan —, a investigação tentará procurar respostas junto de pacientes que nunca visitaram a China e que, para a OMS, podem ser “a ponta do icebergue” de um problema cuja dimensão real suscita cada vez mais dúvidas.
Dimensão real é incógnita
Os alarmes soaram na quinta-feira após serem detetados 14.840 novos casos na província de Hubei (de que Wuhan é capital) em apenas 24 horas. Pela primeira vez, foram contabilizados casos diagnosticados clinicamente, além daqueles confirmados em laboratório. A OMS questionou Pequim sobre a nova metodologia e, no seu boletim diário, optou por continuar a contar apenas os casos confirmados em laboratório, que na quinta-feira ascendiam a 46.997 (sem informação sobre os mortos).
A OMS criou também um nome oficial para a doença: COVID-19. CO respeita a “corona”, VI a “vírus”, D a “doença” e 19 ao ano em que surgiu. “Ter um nome é importante para impedir designações imprecisas ou estigmatizantes”, defende. Estigmatizar (pessoas ou nações) fragiliza a resposta.
Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui
Gigantescos enxames de ‘gafanhotos do deserto’ invadiram o Corno de África e estão a devorar áreas de cultivo e pastagens, colocando em risco a subsistência de milhões de pessoas. Na origem desta praga estão… alterações climáticas
Diz a Bíblia que a oitava de dez pragas com que Deus castigou o Egito para pressionar o Faraó a libertar o povo hebraico da escravidão era composta por gafanhotos. “Eles cobrirão a superfície visível da terra, e não se poderá mais ver a terra”, lê-se no Livro do Êxodo. “Eles comerão o resto do que escapou e o que ficou para vós depois do granizo [a sétima praga]; comerão todas as árvores que crescem para vós no campo.”
Por estes dias, nuvens de gafanhotos de proporções bíblicas fustigam três grandes zonas na Ásia e em África. Destroem áreas de cultivo e pastagens à sua passagem e condenam comunidades que vivem da natureza — e para quem a segurança alimentar não é um direito adquirido — a um futuro muito incerto. Um foco devasta a fronteira indo-paquistanesa, outro está ativo nas margens do Mar Vermelho e um terceiro assola o Corno de África e países limítrofes.
“No início de janeiro, houve um enxame enorme no nordeste do Quénia que tinha 60 quilómetros de comprimento por 40 de largura!”, diz ao Expresso Keith Cressman, especialista na Previsão de Gafanhotos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Cálculos feitos, a dimensão desta nuvem de saltões cobriria 24 vezes a cidade de Lisboa — o enxame media 2400 km2 e a capital portuguesa 100 km2.
O Quénia está a viver a pior infestação de gafanhotos dos últimos 70 anos NJERI MWANGI / REUTERS
Na origem desta calamidade estão… alterações climáticas, como o aumento da temperatura dos mares que alimenta furacões cada vez mais fortes. Este surto de ‘gafanhotos do deserto’ ganhou volume após dois ciclones — o Mekunu (em maio de 2018) e o Luban (em outubro seguinte) — varrerem o Oceano Índico.
Então, chuvas abundantes caíram sobre uma das regiões mais áridas do mundo — o chamado “Empty Quarter”, no sudeste da Península Arábica —, originando o florescimento de vegetação e criando condições ideais para “a procriação de três gerações de gafanhotos, entre junho de 2018 e março de 2019”, explica Keith Cressman. “O número de gafanhotos aumentou 8000 vezes.” Um enxame pode conter até 150 milhões de gafanhotos por quilómetro quadrado.
Com um ciclo de vida entre três e cinco meses, os ‘gafanhotos do deserto’ aguentam-se no ar durante longas distâncias. Presentes nas zonas desérticas entre a África Ocidental e a Índia, encontram na vegetação verde e nos solos húmidos e arenosos condições favoráveis à sua reprodução.
Invadidos por gafanhotos, Somália e Paquistão já declararam “emergência nacional” SVEN TORFINN / EPA
Cada fêmea põe dezenas de ovos (por vezes mais de 100) e pode procriar pelos menos três vezes. O período de incubação depende da temperatura do solo, oscilando entre 10 dias e um mês.
Cronologia da invasão
Os primeiros enxames saíram do “Empty Quarter” em janeiro de 2019 na direção do Iémen (um país em guerra) e da Arábia Saudita. Depois, “chuvas anormalmente fortes no Irão e no Iémen originaram novas germinações”, acrescenta Keith Cressman.
Entre junho e dezembro, grupos partiram do Irão e invadiram o Paquistão e a Índia, beneficiando de monções mais longas do que o habitual. E outros levantaram voo do Iémen rumo ao Corno de África (e daí para o Quénia). Aí usufruíram de condições provocadas pelo ciclone Pawan, ao largo da Somália, no início de dezembro de 2019.
Os ‘gafanhotos do deserto’ não atacam seres humanos ou animais DAI KUROKAWA / EPA
“Felizmente, a atual geração de enxames formou-se após a última colheita das safras, mas houve danos consideráveis nas pastagens, que são um meio de subsistência primário no Corno de África”, diz o perito da FAO. Esta organização calcula em 76 milhões de dólares (70 milhões de euros) a verba necessária para “melhorar a operação de controle” da praga “e proteger, apoiar e recuperar os meios de subsistência”, explica Cressman. “É absolutamente crítico que esses fundos cheguem o mais rapidamente possível para evitar um problema e um sofrimento maiores.”
No terreno, o combate à praga passa por borrifar as áreas fustigadas com produtos químicos, lançados de aeronaves e veículos equipados com pulverizadores e, em menor grau, disparados por homens de mochila pulverizadora às costas. No seu último boletim sobre esta crise, na segunda-feira, a FAO diz que “a reprodução [de gafanhotos] continua no Corno de África” e que “está prevista a formação de novos enxames para março e abril”.
(FOTO PRINCIPAL Três homens tentam, em vão, enxotar um enxame de gafanhotos de uma pastagem, na aldeia queniana de Lemasulani NJERI MWANGI / REUTERS)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 12 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.