Gigantescos enxames de ‘gafanhotos do deserto’ invadiram o Corno de África e estão a devorar áreas de cultivo e pastagens, colocando em risco a subsistência de milhões de pessoas. Na origem desta praga estão… alterações climáticas
Diz a Bíblia que a oitava de dez pragas com que Deus castigou o Egito para pressionar o Faraó a libertar o povo hebraico da escravidão era composta por gafanhotos. “Eles cobrirão a superfície visível da terra, e não se poderá mais ver a terra”, lê-se no Livro do Êxodo. “Eles comerão o resto do que escapou e o que ficou para vós depois do granizo [a sétima praga]; comerão todas as árvores que crescem para vós no campo.”
Por estes dias, nuvens de gafanhotos de proporções bíblicas fustigam três grandes zonas na Ásia e em África. Destroem áreas de cultivo e pastagens à sua passagem e condenam comunidades que vivem da natureza — e para quem a segurança alimentar não é um direito adquirido — a um futuro muito incerto. Um foco devasta a fronteira indo-paquistanesa, outro está ativo nas margens do Mar Vermelho e um terceiro assola o Corno de África e países limítrofes.
“No início de janeiro, houve um enxame enorme no nordeste do Quénia que tinha 60 quilómetros de comprimento por 40 de largura!”, diz ao Expresso Keith Cressman, especialista na Previsão de Gafanhotos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Cálculos feitos, a dimensão desta nuvem de saltões cobriria 24 vezes a cidade de Lisboa — o enxame media 2400 km2 e a capital portuguesa 100 km2.

Na origem desta calamidade estão… alterações climáticas, como o aumento da temperatura dos mares que alimenta furacões cada vez mais fortes. Este surto de ‘gafanhotos do deserto’ ganhou volume após dois ciclones — o Mekunu (em maio de 2018) e o Luban (em outubro seguinte) — varrerem o Oceano Índico.
Então, chuvas abundantes caíram sobre uma das regiões mais áridas do mundo — o chamado “Empty Quarter”, no sudeste da Península Arábica —, originando o florescimento de vegetação e criando condições ideais para “a procriação de três gerações de gafanhotos, entre junho de 2018 e março de 2019”, explica Keith Cressman. “O número de gafanhotos aumentou 8000 vezes.” Um enxame pode conter até 150 milhões de gafanhotos por quilómetro quadrado.
Com um ciclo de vida entre três e cinco meses, os ‘gafanhotos do deserto’ aguentam-se no ar durante longas distâncias. Presentes nas zonas desérticas entre a África Ocidental e a Índia, encontram na vegetação verde e nos solos húmidos e arenosos condições favoráveis à sua reprodução.

Cada fêmea põe dezenas de ovos (por vezes mais de 100) e pode procriar pelos menos três vezes. O período de incubação depende da temperatura do solo, oscilando entre 10 dias e um mês.
Cronologia da invasão
Os primeiros enxames saíram do “Empty Quarter” em janeiro de 2019 na direção do Iémen (um país em guerra) e da Arábia Saudita. Depois, “chuvas anormalmente fortes no Irão e no Iémen originaram novas germinações”, acrescenta Keith Cressman.
Entre junho e dezembro, grupos partiram do Irão e invadiram o Paquistão e a Índia, beneficiando de monções mais longas do que o habitual. E outros levantaram voo do Iémen rumo ao Corno de África (e daí para o Quénia). Aí usufruíram de condições provocadas pelo ciclone Pawan, ao largo da Somália, no início de dezembro de 2019.

“Felizmente, a atual geração de enxames formou-se após a última colheita das safras, mas houve danos consideráveis nas pastagens, que são um meio de subsistência primário no Corno de África”, diz o perito da FAO. Esta organização calcula em 76 milhões de dólares (70 milhões de euros) a verba necessária para “melhorar a operação de controle” da praga “e proteger, apoiar e recuperar os meios de subsistência”, explica Cressman. “É absolutamente crítico que esses fundos cheguem o mais rapidamente possível para evitar um problema e um sofrimento maiores.”
No terreno, o combate à praga passa por borrifar as áreas fustigadas com produtos químicos, lançados de aeronaves e veículos equipados com pulverizadores e, em menor grau, disparados por homens de mochila pulverizadora às costas. No seu último boletim sobre esta crise, na segunda-feira, a FAO diz que “a reprodução [de gafanhotos] continua no Corno de África” e que “está prevista a formação de novos enxames para março e abril”.
(FOTO PRINCIPAL Três homens tentam, em vão, enxotar um enxame de gafanhotos de uma pastagem, na aldeia queniana de Lemasulani NJERI MWANGI / REUTERS)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 12 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui