A grandeza que o Irão não esquece

Foi um dos grandes impérios da História. Ainda hoje, o seu legado histórico, geográfico e religioso influencia as opções geopolíticas de um dos gigantes do Médio Oriente, o Irão

“Bem-vindo, peregrino, tenho estado à tua espera. Perante ti jaz Ciro, Rei da Ásia, Rei do Mundo. Tudo o que resta de mim é pó. Não me invejes”

No sítio arqueológico de Pasárgadas, no sudoeste do Irão, a inscrição gravada no túmulo do fundador do primeiro império persa instala a dúvida num visitante casual. Quão poderoso terá sido efetivamente este homem para chamar a si o título de “Rei do Mundo”? A História universal dá a resposta. No século VI a.C., Ciro, o Grande, unificou o Império Aqueménida, que se estendia do atual território da Líbia até à cordilheira do Hindu Kush, entre o Afeganistão e o Paquistão.

Estratego militar brilhante, revelou-se também um líder tolerante, respeitador das tradições e costumes dos povos que invadia. A ele se deve a primeira carta dos direitos humanos do mundo. Descoberto em 1878, em escavações na antiga cidade da Babilónia (que o imperador conquistou em 539 a.C. e que fica no atual Iraque), o Cilindro de Ciro — um rolo em argila que pode ser apreciado no Museu Britânico, em Londres — exalta a benevolência daquele líder que tratou os súbditos com dignidade, libertou escravos, autorizou os judeus cativos a regressarem à Judeia, emancipou minorias e decretou a liberdade religiosa.

Em 2003, quando recebeu o Prémio Nobel da Paz em Oslo, a iraniana Shirin Ebadi — advogada na área dos direitos humanos e uma voz crítica do regime dos ayatollahs — não esqueceu esse legado humanista. “Sou uma iraniana. Uma descendente de Ciro, o Grande. O mesmo imperador que proclamou no auge do seu poder, 2500 anos atrás, que não reinaria sobre o seu povo se este não o desejasse. E prometeu não forçar ninguém a mudar de religião e de fé e garantiu liberdade para todos. A Carta de Ciro, o Grande é um dos documentos mais importantes que deveriam ser estudados na história dos direitos humanos.”

No imaginário coletivo iraniano, Ciro está na origem de uma sucessão de impérios extraordinários que contribuíram para enraizar a ideia de uma civilização singular liderada por monarcas notáveis. No fim dessa linhagem, Mohammad Reza Pahlavi, o Xá do Irão entre 1941 e 1979, deu cumprimento a esse desígnio e coroou-se “Rei dos Reis”.

Convicto de que era o líder perfeito de um país sem igual, cego perante a contestação nas ruas contra a repressão da polícia política, Reza Pahlavi mobilizou recursos infinitos para que fosse organizada com toda a pompa uma receção comemorativa dos 2500 anos da fundação do Império Persa. Em 1971, junto às ruínas de Persépolis, a antiga capital, foi erguida uma “cidade de tendas” com material vindo de França em 100 aviões e 40 camiões para acomodar reis e presidentes, ministros e generais, realeza e comunistas vindos dos quatro cantos do mundo.

Na fila para cumprimentar o Xá Reza Pahlavi e a imperatriz Farah Diba desfilaram do imperador da Etiópia, Haile Selassie, ao ditador romeno, Nicolae Ceauşescu, de Grace Kelly e Rainier do Mónaco a Imelda Marcos, das Filipinas, de Juan Carlos e Sofia de Espanha ao marechal Josip Broz Tito, Presidente da Jugoslávia. Portugal esteve representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício.

250 limusinas no deserto

As tendas foram montadas num oásis construído para a ocasião, com uma floresta, flores, fontes e 50 mil pássaros chilreantes importados da Europa (a maioria dos quais morreria inadaptados às condições climatéricas). Para adequar aquele pedaço inóspito de deserto à presença humana, aeronaves pulverizaram quilómetros em redor da cidade para limpar o solo de todo o tipo de bichos rastejantes. Foram também asfaltados dezenas de quilómetros de autoestrada. O transporte dos convidados entre o aeroporto e o local da celebração foi assegurado por 250 limusinas Mercedes-Benz vermelhas à prova de bala.

Em Paris, o centenário restaurante Maxim’s fechou portas ao público para preparar 18 toneladas de comida, depois transportadas em aviões militares iranianos, juntamente com 150 toneladas de utensílios de cozinha, incluindo louça criada pela exclusiva Limoges, e milhares de garrafas dos melhores vinhos e champanhe franceses. Para servir no banquete, foram contratados dezenas de empregados do luxuoso Palace Hotel, de St. Moritz (Suíça). Diariamente, um helicóptero transportou um bloco de gelo do tamanho de um carro para refrescar o vinho branco. Uma equipa de filmagens foi recrutada em Hollywood para realizar o filme oficial da festa do orgulho persa, com Orson Welles no papel de narrador.

Entre 12 e 14 de outubro de 1971, o Irão foi palco daquela que foi possivelmente a festa mais extravagante da História, transmitida em direto por satélite para televisões de todo o mundo. “Gastaram em dois dias o orçamento da Suíça para dois anos”, testemunhou Marcel Huder, um dos garçons do Palace Hotel de St. Moritz que serviu no banquete, no documentário “Decadence and Downfall: The Shah of Iran’s Ultimate Party”, produzido pela BBC (2016).

https://www.youtube.com/watch?v=l0X_B4x2eBc

As celebrações — protegidas por um aparato de 60 mil tropas — deixaram um país depauperado, um povo revoltado com toda aquela ostentação e uma oposição cada vez menos silenciosa incentivada, desde o seu exílio no Iraque, por Ruhollah Khomeini, um clérigo influente para quem o Irão não era um país suficientemente islâmico.

O festim de Persépolis — convocado pelo “Rei dos Reis” para celebrar o feito do “Rei do Mundo” — desgastou decisivamente a dinastia Pahlavi. Mas na sua essência, toda aquela sumptuosidade espelhava a forma como, ainda hoje, os iranianos olham para si próprios e projetam o seu país no mundo: um povo único, com língua própria (o farsi), herdeiro de uma civilização antiga e superior, destinado a ocupar um lugar central na história.

Superioridade persa

Com cerca de 85 milhões de habitantes, o Irão é um mosaico composto por dezenas de grupos étnicos, ecos da passagem pelo território de outros conquistadores. Os persas correspondem a cerca de 60 por cento da população; azeris e curdos são as maiores das minorias. Maioritários, os persas são também a etnia mais influente na identidade iraniana. No governo, os principais cargos tendem a ser ocupados por persas.

Originalmente conquistadores indo-europeus descendentes dos arianos, os persas orgulham-se de serem os detentores legítimos das terras que ocupam. Em 1934, o monarca Reza Shah, pai de Mohammad Reza Pahlavi, determinou que, na correspondência oficial com o estrangeiro, o nome “Pérsia” fosse substituído por “Irão” (“a terra dos arianos”).

Reza Shah tinha conhecidas inclinações pró-germânicas — acabaria mesmo por ser deposto por tropas aliadas anglo-soviéticas, em 1941, no decurso da II Guerra Mundial, em que o Irão era oficialmente neutral. Mas ao alterar a designação do país talvez tenha pretendido substituir o nome de uma entidade que já passara por um período decadente por outro que colocaria em evidência a pureza do povo.

Os iranianos não são árabes. Muitos acreditam que a Pérsia entrou em decadência após a invasão islâmica no século VII, que impôs uma religião revelada na língua árabe, o Islão

Em paralelo ao fator étnico, a localização geográfica do Irão e, mais importante ainda, a sua orografia contribuem para alimentar uma certa ambição hegemónica. O país situa-se na encruzilhada do mundo islâmico, entre as regiões do Médio Oriente, do Cáucaso e da Ásia Central e do Sul. Essa localização castiga-o com uma tensão permanente que decorre da necessidade de equilibrar benefícios e riscos da sua posição estratégica.

Mas são as suas imponentes montanhas que definem este país. A norte, a cordilheira Alborz atravessa o território de leste a oeste, com o pico no Monte Damavand (5671 metros acima do nível do mar), o mais alto do Médio Oriente. A ocidente situa-se a barreira natural iraniana mais importante — a cordilheira de Zagros. Com vários cumes acima dos 4000 metros, esta cadeia cruza o país desde o território da Turquia até ao Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico. No passado, foi a fronteira histórica entre a Pérsia e a Mesopotâmia (atual Iraque).

Do olho nos árabes

Há 2500 anos, foi do coração desta fortaleza geográfica — que tem uma área superior às de França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Espanha e Portugal combinadas — que o Império Persa iniciou a sua expansão. Hoje, é nesse planalto que o Irão explora as maiores reservas de gás natural e as quartas maiores reservas de petróleo do mundo e cerra fileiras perante ameaças à espreita, desde logo por parte dos seus inimigos históricos — os árabes.

À semelhança de turcos, afegãos e paquistaneses, os iranianos não são um povo árabe. Este é, aliás, um dos equívocos mais frequentes em relação às problemáticas do Médio Oriente. Muitos iranianos consideram os árabes bárbaros e acreditam que a Pérsia entrou em decadência após a invasão islâmica no século VII, que impôs uma religião revelada na língua árabe, o Islão.

Se é um facto que, nas últimas quatro décadas, o Irão tem vivido sob os ditames de uma teocracia muçulmana, a sua dinâmica quotidiana continua a ser pautada por tradições pré-islâmica. O tempo é contado com base no calendário persa e cada Ano Novo (“Nowruz”) coincide com o início da primavera (21 de março do calendário gregoriano), conforme a tradição mística do zoroastrismo, a fé da antiga Pérsia.

Nos corredores políticos de Teerão, na hora de hierarquizar prioridades geopolíticas, toda esta herança ancestral vem ao de cima — da identidade às inimizades. É neste contexto que deve ser compreendida a grande rivalidade entre o Irão (persa) e a Arábia Saudita (árabe) que, de tempos a tempos, ameaça arrastar todo o Médio Oriente para uma guerra total.

A dor dos xiitas

Um segundo pilar que sustenta a conflitualidade entre iranianos e sauditas é a sensibilidade religiosa predominante nestes dois países islâmicos. Guardiã das mesquitas sagradas de Meca e Medina, lugares venerados por qualquer crente muçulmano, a Arábia Saudita é maioritariamente sunita. Já o Irão é esmagadoramente xiita. Com os ayatollahs no poder o Islão xiita tornou-se a religião de Estado.

A diferença fundamental entre as duas correntes decorre da morte de Maomé, no ano 632. O Profeta não designou um sucessor na liderança da “Ummah” (a comunidade dos crentes) e, na hora de se pronunciarem, os discípulos dividiram-se. Uns optaram por Abu Bakr, sogro e braço-direito de Maomé — são os sunitas, partidários da “sunna”, a tradição. Outro grupo preferiu Ali, genro e primo de Maomé — os xiitas, “shiat’ Ali”, “seguidores de Ali”.

Os xiitas iranianos acreditam que os ensinamentos do Profeta foram perpetuados por uma linhagem de 12 imãs. O último, Mahdi, é um mensageiro “oculto” que virá à Terra salvar a humanidade da tirania e da barbárie. Indissociável dessa esperança, a espiritualidade xiita tem também expressões de intensa dor e sofrimento que, não raras vezes, alimentam um estereótipo de fanatismo, intolerância e predisposição para o martírio. Na festa religiosa da Ashura, por exemplo, que celebra o assassínio de Hussein, neto de Maomé e filho de Ali, na Batalha de Karbala, peregrinos autoflagelam-se com facas e punhais num ritual macabro de se observar.

De manifestações desta natureza resulta a perceção — errada — de uma fação extremista como nenhuma outra entre as várias correntes do Islão. Mas protagonistas do terrorismo internacional como a Al-Qaeda ou o Daesh (o autodenominado “Estado Islâmico”), o Boko Haram na Nigéria ou o grupo Abu Sayyaf nas Filipinas são na realidade subprodutos do sunismo.

A Revolução Islâmica de 1979 e a chegada ao poder de teólogos xiitas conservadores acentuou esta grande clivagem entre Teerão e Riade, que determina muita da conflitualidade do Médio Oriente. Mas, “como acontece com a maioria dos Estados revolucionários”, escreve o investigador iraniano-americano Ray Takeyh no livro “Hidden Iran — Paradox and Power in the Islamic Republic” (2006), “o Irão deixou de ser um ator militante que desafia as normas regionais para ser um Estado pragmático que segue uma política baseada em cálculos de interesse nacional”.

Hoje, esse pragmatismo passa pela fortificação de uma frente avançada de defesa em territórios dominados pelos árabes, um “arco de influência xiita” com pilares de apoio em países onde os xiitas são maioritários, estão no poder ou simplesmente têm minorias xiita importantes, vestígios de um império que já foi grande.

Xiitas ganham com guerras

No imenso mar sunita que é a região do Médio Oriente, os xiitas são a maioria da população em apenas três países: Irão, Iraque e Bahrein, embora só nos dois primeiros detenham o poder.

Se hoje Teerão exerce grande influência em Bagdade deve-o aos Estados Unidos e à guerra desencadeada por George W. Bush, em 2003, apoiada em documentos forjados que “provavam” que Saddam Hussein dispunha de um arsenal de armas de destruição maciça. A deposição do ditador — que governava apoiado na minoria sunita, a sua, e reprimia com mão dura a maioria xiita — e a experiência democrática que se seguiu catapultaram os xiitas para o poder e escancararam as portas de Bagdade aos iranianos.

A influência do Irão sobre o Iraque não é porém ilimitada, como ficou demonstrado na guerra que os dois países travaram entre 1980 e 1988. Os iraquianos xiitas cerraram fileiras em torno de Saddam Hussein e não do ayatollah Khomeini, o “irmão” xiita iraniano. Neste caso, a rivalidade ancestral entre árabes e persas falou mais alto do que a sensibilidade religiosa.

À semelhança do que aconteceu no Iraque, Teerão também beneficiou largamente da guerra no Afeganistão, desencadeada pela mesma Administração Bush, em 2001, para retaliar os atentados de 11 de setembro. A queda do regime dos talibãs (estudantes de teologia), que dava guarida à Al-Qaeda de Osama bin Laden, eliminou outro baluarte sunita contra a avançada regional do Irão.

Remetidos novamente às hostes da resistência contra o poder central em Cabul, os talibãs não descuram os seus ódios de sempre, continuando a visar em atentados ou efetuando raptos afegãos xiitas, como é o caso dos de etnia hazara. Descendentes dos mongóis enviados por Gengis Khan no século XIII, praticam sobretudo o xiismo do ramo duodecimano (o do Irão) e o ismaelismo, cujo líder é Aga Khan.

No Iraque ou no Afeganistão, o desgaste provocado nas autoridades nacionais pela ocupação estrangeira do país combinado com o crescente desprestígio dos norte-americanos tornam o Irão mais difícil de conter. Já no Bahrein, a única petromonarquia ribeirinha ao Golfo Pérsico maioritariamente xiita, o assédio iraniano é seguido à lupa pela Arábia Saudita. Foi o que aconteceu em 2011 quando sopravam os ventos da primavera árabe na região e manifestações populares desafiaram o poder dos Al-Khalifa (sunita), exigindo direitos políticos para os xiitas, marginalizados de cargos governativos. Em socorro da família real, os sauditas invadiram o território com tanques e tropas, matando à nascença uma velada tentativa de o Irão colocar um pé na Península Arábica — como hoje acontece no Iémen.

Vulnerabilidade saudita

Estrategicamente localizado junto ao Estreito de Bab al-Mandab, que liga o Mar Vermelho ao Golfo de Aden, no sudoeste da bota a que se assemelha a Península Arábica, o Iémen é o “calcanhar de Aquiles” da Arábia Saudita, o ponto de vulnerabilidade que o Irão quer explorar. Em 2015, os huthis, um grupo iemenita que professa um ramo antigo do xiismo, rebelaram-se contra o Presidente reconhecido internacionalmente, com apoio logístico e financeiro do Irão. A Arábia Saudita respondeu com uma intervenção militar (que ainda dura) naquele que é um dos países mais pobres do mundo, contando também com o desgaste provocado pela Al-Qaeda na Península Arábica (sunita), que tem a sua base no Iémen e é o braço mais ativo da organização terrorista (reivindicou, por exemplo, o ataque ao jornal satírico francês “Charlie Hebdo”).

Tal como aconteceu no Iraque, o Irão beneficiou largamente com a guerra do Afeganistão. A queda do regime talibã eliminou outro baluarte sunita contra a avançada regional do Irão

Há cinco meses, um ataque com drones e mísseis balísticos contra duas importantes refinarias sauditas suspendeu metade da produção petrolífera do país e afetou 6 por cento do abastecimento global. Sofisticado e preciso, o ataque foi reivindicado pelos huthis, embora os sauditas tenham disparado acusações na direção dos iranianos. A ser verdade, fica provada a eficácia de um dos vetores da estratégia militar do Irão para a região — atingir inimigos através de terceiros.

Israel, o “pequeno satã”

A Síria é outro ponto de apoio do “arco xiita” iraniano. Oriundo da minoria alauita (uma derivação do xiismo), o Presidente Bashar al-Assad tem resistido à guerra que leva quase nove anos graças, em grande parte, ao apoio no terreno de milhares de combatentes do seu peão libanês, o Hezbollah. O “Partido de Deus” — um misto de força paramilitar, partido político (com representação parlamentar e ministros no governo) e organização de beneficência social — é para o Irão uma força de vanguarda na luta contra a “entidade sionista”, como os de Teerão se referem a Israel.

O Irão alberga desde tempos longínquos a comunidade de judeus mais numerosa do Médio Oriente a viver fora de Israel e do território palestiniano ocupado da Cisjordânia — hoje a rondar as 8500 pessoas. Para o ayatollah Khomeini, o problema não eram os judeus mas antes o Estado de Israel, “o pequeno satã”, que considerava fruto de uma conspiração desenhada para consolidar o neocolonialismo ocidental no Médio Oriente e humilhar os muçulmanos. A ocupação de Jerusalém — durante o conflito israelo-árabe de 1967 (Guerra dos Seis Dias) — era a expressão visível desse projeto.

No Irão, a partir de finais da década de 90, o cérebro por trás desta rede de proxies permeáveis aos interesses iranianos passou a ser o general Qasem Soleimani, comandante das Brigadas al-Quds, uma força de elite dos Guardas da Revolução. Esse protagonismo, bem como as suas frequentes deslocações ao terreno para visitar, orientar ou comandar fações amigas, colocou-o na linha de mira. A 3 de janeiro passado, foi alvejado mortalmente por um drone dos EUA junto ao aeroporto internacional de Bagdade.

Um brinde que caiu mal

Popular e respeitado no Irão, o seu martírio — a forma mais nobre de se morrer entre os xiitas mais fervorosos — originou gigantescas manifestações de pesar só comparáveis, em dimensão e lágrimas derramadas, às exéquias fúnebres do fundador da República, em 1989. Os gritos de “Morte à América” e as exigências de “vingança” recuperam todo um guião de hostilidade aos Estados Unidos tão antigo quanto a própria República Islâmica. Para o ayatollah Khomeini, o Ocidente era fonte de todos os males. O seu ódio à monarquia refletia, acima de tudo, a rejeição da ocidentalização com que o Xá pretendia enterrar a identidade islâmica da sociedade iraniana — com a cumplicidade do “grande satã”.

Prestes a cumprir o seu primeiro ano na Casa Branca, Jimmy Carter realizou um périplo pelo estrangeiro que o levou também ao Irão, onde chegou mesmo no fim do ano. A 31 de dezembro de 1977, o Xá presenteou-o com um banquete em Teerão e Carter desfez-se em elogios. Realçou a “ilha de estabilidade” que era o Irão “numa das áreas mais problemáticas do mundo” e atribui esse feito à “grande liderança” do Xá. E no momento do brinde, colocou-se na pele do mais rendido dos súbditos: “Este é um grande tributo a sua majestade e à liderança, ao respeito, à admiração e ao amor do seu povo.”

Inimigos compatíveis

Se Jimmy Carter não viu ou não quis ver, a verdade é que a monarquia vivia os últimos dias no Irão. Regressado o ayatollah Khomeini do seu exílio em Paris a 1 de fevereiro de 1979, a Revolução não demorou a consolidar-se. A 4 de novembro seguinte, estudantes rumaram à Avenida Taleqani, invadiram a embaixada dos EUA e mantiveram 52 norte-americanos cativos durante 444 dias. A crise contribui decisivamente para a não reeleição de Carter e terminou no exato dia em que Ronald Reagan entrou na Casa Branca, a 20 de janeiro de 1981. Os dois países continuaram de relações cortadas. Hoje, os murais hostis a Washington que continuam a ser pintados nas paredes do edifício da antiga embaixada dos EUA em Teerão são a prova que os iranianos não esquecem.

Insuspeito “falcão” da diplomacia americana, o antigo secretário de Estado, Henry Kissinger, escreveu no livro “Does America Need a Foreign Policy?” (2002): “Existem poucas nações no mundo com as quais os EUA têm menos motivos para discutir e interesses mais compatíveis do que o Irão.” As últimas quatro décadas têm sido, no entanto, a antítese dessa realidade, apesar de circunstancialmente iranianos e americanos estarem do mesmo lado da barricada combatendo inimigos comuns. Foi assim com a União Soviética, com Saddam Hussein e mais recentemente com a Al-Qaeda e o Daesh — ainda que no subconsciente de ambos o inimigo fosse quem estava do seu lado.

(IMAGEM Relevo nas ruínas do templo de Apadana, na cidade iraniana de Persépolis)

Artigo publicado na Revista E do “Expresso”, a 22 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

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