O reino das 1001 noites

Na casa real saudita, o poder tem passado de irmão para irmão. O paradigma mudará se o atual príncipe herdeiro, o todo poderoso Mohamed bin Salman, subir ao trono. Nos últimos dias, foram detidos e depois libertados alguns príncipes que lhe faziam sombra

Há apenas cem anos, a Arábia Saudita era ainda um projeto de país. A Casa de Saud — uma das famílias mais antigas, numerosas e influentes da região — tinha em curso uma operação política e militar marcada pelo desejo de unificar a Península Arábica e submetê-la à sua interpretação conservadora do Islão — o salafismo. A campanha começou em 1902 e levou à conquista de tribos e reinos, emirados e cidades-estado, pedaços de terra que eram propriedades de xeques. Terminou em 1932 com a proclamação do moderno Reino da Arábia Saudita.

Na liderança ficou Abdulaziz ibn Saud, pai de dezenas de filhos que procriou com 16 mulheres, e para quem aquele país era um assunto de família. Quando morreu, em 1953, sucedeu-lhe no trono o seu filho Saud. Desde então, cumprindo uma determinação do pai fundador, a transmissão do poder tem-se processado de irmão para irmão. Tem sido assim até aos dias de hoje: o atual monarca saudita, Salman, é irmão de Saud. Mas este padrão pode ter os dias contados.

PIRÂMIDE DE SUCESSÃO
AO TRONO SAUDITA

Em 2017, Salman designou como príncipe herdeiro o seu filho Mohamed bin Salman (MbS). No chamado Conselho de Fidelidade — o órgão responsável por determinar o futuro sucessor ao trono, composto por membros mais velhos da família real —, a nomeação de MbS teve apenas três votos contra. Um deles foi particularmente simbólico: o do seu tio Ahmed bin Abdulaziz al-Saud, o irmão mais novo (da mesma mãe) do rei Salman.

Na sexta-feira, Ahmed bin Abdulaziz al-Saud, de 78 anos, foi uma das dezenas de personalidades, entre funcionários governamentais, militares e membros da família real, detidas pela guarda real, “acusadas de montar um golpe conspirativo para derrubar o rei Salman e o príncipe herdeiro”, noticiou o jornal norte-americano “The Wall Street Journal”.

Entre os visados, esteve também Mohammed bin Nayef, sobrinho do rei (filho de um irmão já falecido). Era ele o príncipe herdeiro quando, em junho de 2017, viu-se destituído de todos os cargos que ocupava, incluindo o de ministro do Interior, atribuídos para que um predestinado a mais altos voos possa demonstrar competência. Sem responsabilidades em mãos, Bin Nayef, 58 anos, saiu da linha de sucessão e foi substituído pelo primo MbS, então com 32 anos.

Num reino fértil em intrigas palacianas, as detenções efetuadas na passada sexta-feira fizeram disparar rumores de que estaria em curso uma tentativa de golpe, porventura decorrente da deterioração da saúde do rei Salman, de 84 anos. No domingo, para acabar com a especulação, a agência noticiosa saudita divulgou imagens do monarca sentado no seu gabinete a despachar serviço. Aparentando boa saúde, Salman surgiu também a presidir à cerimónia de entrega de credenciais dos novos embaixadores da Ucrânia e do Uruguai.

Comprovada a saúde do monarca, aos rumores seguiu-se uma intuição: a purga terá sido, acima de tudo, um exercício de imposição de disciplina no interior da família real, “uma tentativa do príncipe herdeiro consolidar o poder dentro da família real”, lê-se, esta segunda-feira, no jornal norte-americano “The Wall Street Journal”, a publicação que primeiro noticiou as detenções na sexta-feira. Segundo o mesmo órgão, as autoridades já começaram a libertar os detidos após serem interrogados por dezenas de responsáveis e membros da família real.

Não é a primeira vez que, com MbS na antecâmara do poder, há purgas a varrer a família real. Em novembro de 2017, cinco meses após ser nomeado príncipe herdeiro, dezenas de príncipes, ministros e homens de negócios ficaram meses fechados dentro do luxuoso Ritz-Carlton de Riade, no âmbito de uma operação anticorrupção, supervisionada pessoalmente por MbS. O hotel deixou de receber hóspedes durante todo esse tempo e os detidos só reconquistaram a liberdade após assinarem acordos confidenciais no valor de muitos milhões de dólares.

Meca sem peregrinos

A mais recente trama nos corredores reais de Riade coincide com o surto do Covid-19 que está a pressionar a Arábia Saudita a vários níveis: o preço do petróleo está em queda nos mercados internacionais e as peregrinações a Meca estão suspensas, para nacionais e estrangeiros.

Desde que foi nomeado príncipe herdeiro, MbS tem-se afirmado como o homem forte da Arábia Saudita e o seu líder de facto. Ministro da Defesa desde janeiro de 2015, foi ele quem desencadeou a operação militar saudita no Iémen, em março seguinte, que se transformou na pior crise humanitária no mundo. Nas notícias, ele ora surge associado a conquistas sociais, como a permissão das mulheres sauditas conduzirem, ora a episódios macabros, como a morte do jornalista crítico do regime saudita Jamal Kashoggi, em 2018, no consulado saudita em Istambul. Então como agora, MbS mostra que não gosta de pedras no seu caminho.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 9 de março de 2020. Pode ser consultado aqui

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