Esta semana, em Cabul, houve um acontecimento inédito, no Afeganistão e no mundo. No palácio presidencial, em espaços diferentes e com diferença de minutos, tomaram posse dois Presidentes. Um é Ashraf Ghani, atual chefe de Estado e vencedor oficial das eleições presidenciais. O outro é Abdullah Abdullah, que não aceita os resultados. Um antigo diplomata português partilha com o Expresso as suas impressões sobre o homem que está a desafiar o poder de Cabul, com quem conviveu em Nova Iorque e em Lisboa
O Presidente do Afeganistão emitiu um decreto de amnistia que beneficia 5000 prisioneiros talibãs. Mas estes… não o aceitam, pelo menos nos termos em que Cabul o propõe. Segundo o perdão assinado por Ashraf Ghani, 1500 detidos começarão a sair em liberdade este sábado — ao ritmo de 100 por dia — da prisão de Parwan. Assim que começarem as conversações de paz entre o governo e os talibãs, previstas para breve, outros 3500 atravessarão os portões do principal centro de detenção militar do país — em grupos de 500, a cada duas semanas.
O roteiro não agrada aos talibãs, que recusam sentar-se à mesa das conversações sem que a totalidade de 5000 combatentes saiam em liberdade. Esta amnistia foi-lhes prometida pelo acordo de paz de 29 de fevereiro que assinaram com os Estados Unidos, em Doha (Qatar) e que prevê também a retirada das tropas norte-americanas do país. O documento indispôs as autoridades afegãs, que não foram tidas nem achadas e que já expressaram duas grandes objeções: a libertação de talibãs como pré-condição para o diálogo e a falta de um cessar-fogo em todo o país. Nas 24 horas que antecederam a amnistia, assinada na terça-feira, 32 ataques talibãs em 15 províncias provocaram sete mortos.
Operacionais no terreno, os talibãs beneficiam também da ausência de um poder forte em Cabul, palco na segunda-feira de algo inédito no país e no mundo. No interior do palácio presidencial, realizaram-se duas tomadas de posse, em espaços diferentes e espaçadas por minutos. Ashraf Ghani, de 70 anos, e Abdullah Abdullah, de 59, clamaram ambos vitória nas presidenciais de 28 de setembro — os resultados só foram divulgados a 18 de fevereiro, em virtude das queixas apresentadas à Comissão Eleitoral e das acusações de fraude.
À cerimónia de Ghani, transmitida pela televisão estatal, assistiram o enviado especial dos EUA Zalmay Khalilzad e hierarquias militares norte-americanas. Já a posse de Abdullah foi mostrada na televisão privada Tolo News e testemunhada por vários senhores da guerra, antigos aliados dos EUA na luta contra os talibãs. Na quarta-feira, Abdullah tirou quaisquer dúvidas que restassem: “Mohammad Ashraf Ghani, antigo presidente do Governo de unidade nacional, já não é Presidente, e os seus decretos e ordens são inválidos.” No dia seguinte, Ghani foi ao encontro da proposta do adversário: “O capítulo da solidariedade e unidade chegou. O próximo governo irá refletir a vontade de todo o povo do país.”
Este insólito assemelha-se a uma sequela de um filme de má qualidade que os afegãos andam a ver há anos. Nas presidenciais de 2014, a segunda volta foi disputada exatamente pelos mesmos candidatos, com a mesma conclusão: Ghani foi o mais votado e Abdullah não reconheceu. O impasse só se desbloqueou após intervenção dos EUA: através de um acordo de partilha do poder, Ghani ficou Presidente e Abdullah chefe do Executivo. Muitos afegãos simplificam esta liderança bicéfala dizendo: “Um governa de manhã, o outro à tarde.”
Nas últimas eleições, Ghani obteve 50,64% dos votos, concentrados nas regiões sul e leste, habitadas sobretudo por pashtunes, a etnia minoritária que é também a de Ghani e a dos talibãs.
Abdullah, que foi creditado com 39,52% dos votos, considerou os resultados uma “traição nacional”, disse que seria ele o vencedor se apenas tivessem sido contabilizados os “votos limpos e biométricos” e predispõs-se a liderar “um governo inclusivo”. Filho de um pashtune e uma tadjique (as duas etnias maioritárias), foi o mais votado nas regiões norte e centro, dominadas por tadjiques, hazaras e uzebeques.
Na memória de muitos perduram ainda os anos em que Abdullah sobressaiu nas fileiras da Aliança do Norte — criada em 1996 para combater o regime dos talibãs —, onde foi braço direito do comandante Ahmad Shah Massud, o lendário “leão de Panjshir”.
Na época, este oftalmologista de formação respondia apenas por um nome, “Abdullah”. No livro “Guerra Sem Fim”, o premiado jornalista Dexter Filkins (“The New York Times”) explica como, a dada altura, o seu nome duplicou: “Abdullah ficara famoso junto dos repórteres como sendo o dirigente afegão que só tinha um nome, e isso enlouquecia os editores. Precisamos de um apelido, pediam eles. Então, em muitos jornais, ele torna-se Abdullah Abdullah”.
A sós com um português, no estúdio da Fox News
Após os talibãs serem expulsos de Cabul — a seguir ao 11 de Setembro e à retaliação militar dos EUA sobre o Afeganistão (que abrigava a Al-Qaeda) —, Abdullah assumiu o Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Corria o ano de 2002 e a televisão americana Fox News quis juntar em estúdio os ministros dos Negócios Estrangeiros do Afeganistão e de um país da NATO, e convidou-me a mim”, recorda ao Expresso António Martins da Cruz, chefe da diplomacia portuguesa entre abril de 2002 e outubro de 2003.

“Estivemos juntos três quartos de hora, numa entrevista que passou em horário nobre. Ficámos muito impressionados com o estúdio, uma sala mínima, onde não havia ninguém para além de nós. À nossa volta três ou quatro câmaras mexiam-se sozinhas. O estúdio estava cheio de ecrãs, onde víamos o jornalista que nos entrevistou e que estava na Jordânia. Achámos a situação curiosa e, no final, ficámos a rir-nos e a conversar. Nenhum de nós tinha tido a experiência de ser entrevistado por máquinas, nem por alguém que estava a milhares de quilómetros.”
Os dois voltariam a encontrar-se no ano seguinte, em Lisboa, onde o afegão se deslocou a convite do português para intervir numa reunião sobre prevenção e combate ao terrorismo. “Abdullah é uma pessoa culta. Conhecia perfeitamente as questões da União Europeia. E achava que Portugal, sendo um país europeu e membro da NATO, era um interlocutor importante para o Afeganistão, já que conhecia aquela parte do mundo. Falou-me muito do facto de os portugueses terem sido os primeiros europeus a chegar à Ásia e à Índia.”
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 13 de março de 2020. Pode ser consultado aqui e aqui