À terceira ainda não foi de vez, mas pode não haver quarta

No último ano houve três eleições legislativas. Nenhuma teve vencedor folgado

O surto de coronavírus deu um toque de ficção científica às recentes eleições legislativas em Israel, as terceiras num período de 11 meses. Mais de 4 mil eleitores colocados de quarentena votaram, segunda-feira, de máscara posta e em assembleias de voto especiais: tendas montadas ao ar livre, com escrutinadores protegidos da cabeça aos pés por fatos de isolamento biológico.

Estima-se que estejam de quarentena entre 50 mil e 80 mil israelitas — assumindo que essas pessoas estão “a comportar-se como cidadãos modelo”, alertou esta semana o médico Boaz Lev, que chefia a unidade de tratamento de epidemias do Ministério da Saúde de Israel. As autoridades têm em vigor uma quarentena obrigatória de duas semanas para pessoas regressadas de seis países europeus — Itália, França, Alemanha, Espanha, Áustria e Suíça — e de um grupo de países asiáticos. Violar as diretivas do Ministério da Saúde, de forma intencional ou negligente, pode implicar uma pena de mais de sete anos de prisão.

Em Israel os casos de Covid-19 confirmados não iam, ontem, além dos 17. Porém, a forma como as autoridades estão a atacar o problema está ao nível dos países mais afetados do mundo. “Há demasiada preocupação”, desabafa ao Expresso, de Jerusalém, a israelita Nina, que trabalha por conta própria como guia turística. “Esta histeria vai parar o turismo em Israel.”

Vitória agridoce

Quinta-feira o Governo de Benjamin Netanyahu anunciou a criação de “um fundo de emergência para ajudar empresas que são vitais para a economia”, nas palavras do primeiro-ministro. Com o possível agravamento da crise, outros fundos poderão vir a ser necessários — seja ou não o chefe de Governo Netanyahu, para quem este problema de saúde pública é apenas um entre vários que tem em mãos.

Segunda-feira à noite, coberto de confetes, Netanyahu regozijou-se com as eleições. “É a maior vitória da minha vida”, declarou diante dos apoiantes, na sede do seu partido em Telavive. O Likud (direita) foi o mais votado (36 deputados eleitos), mas não garantiu apoio parlamentar suficiente para formar o próximo Executivo.

Mais árabes do que nunca

Num país como Israel, que, desde a fundação (1948), sempre teve governos de coligação, os resultados dos parceiros políticos naturais são quase tão importantes como os das maiores forças políticas. Nas eleições do dia 2, o bloco de direita que apoia Netanyahu para primeiro-ministro somou 58 deputados, aquém dos 61 necessários para garantir a maioria dos 120 lugares no Parlamento (Knesset). Acompanham o Likud dois partidos religiosos ultraortodoxos — o Shas (nove deputados) e o Judaísmo da Torá Unida (sete) — e ainda o Yamina, aliança de formações de direita e extrema-direita que elegeu seis parlamentares.

“O surgimento dos israelitas árabes nestas eleições é definitivamente um voto contra o plano Trump”, diz uma analista palestiniana

O outro grande bloco político, de centro-esquerda, ficou mais longe da fasquia dos 61, elegendo 55 parlamentares. A formação mais votada foi a coligação centrista Azul e Branco (cores da bandeira de Israel), que elegeu 33 deputados. A união entre Partido Trabalhista, Gesher e Meretz não foi além dos sete, menos dois do que nas eleições anteriores, quando foram a votos separadamente. A formação que mais cresceu foi a Lista Conjunta, formada por quatro partidos árabes, que, com 15 deputados eleitos, garantirá a maior representação parlamentar de sempre à minoria árabe de Israel — 20% da população do Estado hebraico (não incluindo os palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza).

“O surgimento dos israelitas árabes nestas eleições é definitivamente um voto contra o plano de Trump [para o Médio Oriente]. Também reflete o receio genuíno e justificado em relação à ala direita de Israel, o discurso de ódio, o incitamento e a conversa sobre a transferência [forçada de 260 mil cidadãos israelitas palestinianos]”, comenta ao Expresso a analista política palestiniana Nour Odeh, de Ramallah.

“É importante realçar que a Lista Conjunta não é puramente árabe palestiniana. O mais interessante nesse bloco é tratar-se de uma coligação progressista que está a convencer um número crescente de eleitores israelitas judeus”, continua Nour Odeh. “Os seus números ainda são pequenos, mas é notável dada a atmosfera geral de ódio e de racismo aberto.”

Julgamento a 17 de março

Fora deste binómio está um partido de direita que não conta para as contas de Netanyahu. O Yisrael Beiteinu (Israel Nossa Casa) elegeu sete deputados mas o seu líder, o ultranacionalista laico Avigdor Lieberman, ex-ministro da Defesa de Netanyahu, rejeita apoiar um “bloco messiânico ultraortodoxo”, como designou a potencial coligação de Netanyahu. Durante a campanha, Lieberman — que já lhe recusara apoio a seguir às eleições de 9 de abril de 2019 e de 17 de setembro seguinte por causa da inclusão dos partidos religiosos — garantiu que não haveria umas quartas eleições.

Quinta-feira, Lieberman levantou o véu sobre a solução para o impasse e disse estar disposto a juntar-se à esquerda, no Knesset, para aprovar legislação que “impeça um deputado que enfrente uma acusação de formar governo”. A 17 de março, Netanyahu começa a ser julgado por corrupção, tornando-se o primeiro chefe de governo em funções a responder à justiça em Israel. A lei proposta por Lieberman “impediria Netanyahu de formar governo, mas não o Likud”, explica Nour Odeh. A confirmar-se, seria para Netanyahu o fim de mais de 5 mil dias à frente dos destinos de Israel.

TRÊS ELEIÇÕES NUM ANO

9 DE ABRIL DE 2019
► Empate Os dois partidos mais votados elegem 35 deputados cada. O Likud (direita), de Benjamin Netanyahu, é o mais votado, com 26,46%. Fundado dois meses antes das eleições, o Kahol Lavan (centro-esquerda) — a coligação Azul e Branco, liderada pelo antigo general Benjamin Gantz — tem pouco menos (26,13%). Para ter maioria no Knesset, Netanyahu precisa do ter o apoio do Yisrael Beiteinu, do ultranacionalista e laico Avigdor Lieberman. Este entra em rutura com Netanyahu a propósito de uma proposta de lei que isentaria do serviço militar os estudantes das escolas religiosas.

17 DE SETEMBRO DE 2019
► Gantz A coligação Azul e Branco perde dois deputados em relação ao último escrutínio (33) mas o Likud perde três (32). Os partidos árabes aprendem com os erros, unem-se numa Lista Conjunta e elegem 13 parlamentares. Mas os apoios à esquerda não chegam e Gantz não consegue formar governo. Netanyahu também tenta, mas esbarra na irredutibilidade de Avigdor Lieberman, que mantém a rejeição de privilégios para os partidos religiosos. Estes são preciosos para Netanyahu.

2 DE MARÇO DE 2020
► Netanyahu Com início do seu julgamento marcado para 17 de março, o primeiro-ministro recebe mais confiança do que o rival Gantz. Estas são as eleições com menor número de formações políticas nos boletins e as que registam uma taxa de afluência às urnas maior (71%).

Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de março de 2020. Pode ser consultado aqui