Corrida contra o tempo para proteger os rohingya do coronavírus

Ainda não há casos de covid-19 dentro dos campos de refugiados rohingya no Bangladesh, mas é questão de tempo. Manuel Pereira, português que coordena o trabalho humanitário da Organização Internacional para as Migrações nos campos, explica ao Expresso o que está a ser feito para tentar aguentar o embate

Para um povo habituado a viver sob o signo do drama, como são os rohingya, a pandemia de covid-19 é apenas mais uma de muitas adversidades. O novo coronavírus ainda não entrou nos campos de refugiados desta minoria muçulmana de Myanmar (antiga Birmânia), mas está cada vez mais próximo.

No país que os acolhe, o Bangladesh, há 7103 casos confirmados e 153 mortos, e no distrito de Cox’s Bazar, onde estão localizados os campos, os casos positivos (que ainda são apenas 13) aumentam de dia para dia.

“O encerramento de fronteiras e as medidas de confinamento decretadas pelo Governo do Bangladesh contribuíram para atrasar a chegada do coronavírus aos campos”, diz ao Expresso Manuel Pereira, chefe de missão adjunto da Organização Internacional para as Migrações (OIM) no Bangladesh.

“Além disso, foi reduzida a presença de não-residentes dentro dos campos e está-se a desenvolver programas de sensibilização e distanciamento social para mitigar contactos e possíveis transmissões, até termos melhores condições de resposta médica.”

Cox’s Bazar é o distrito mais ao sul do Bangladesh. A importação de contágios está dependente da evolução do surto no resto do país. “As autoridades estão a limitar os movimentos para o distrito, o que é positivo”, diz o português, de 41 anos, natural de Lisboa. “Cox’s Bazar está isolado, com movimentos condicionados também para refugiados e pessoal humanitário, sobretudo ao nível das entradas e saídas dos campos.”

No Bangladesh, os campos ocupam uma área de cerca de 24 quilómetros quadrados e dão abrigo a 859.161 rohingyas (números de março da OIM). A esmagadora maioria — 708.985 — chegou à região após 25 de agosto de 2017, quando começou, em Myanmar, uma violenta campanha de perseguição à minoria muçulmana. Manuel Pereira alerta que nos campos, “o isolamento social é muito difícil, devido à grande densidade populacional”.

Na semana passada, como 1800 milhões de muçulmanos em todo o mundo, os rohingya começaram a cumprir o Ramadão, o nono mês do calendário islâmico, que obriga à prática do jejum desde o nascer até ao pôr do sol. Diariamente, a provação é quebrada pelo iftar, refeição comunitária que junta muita gente à volta da mesa.

Nos campos, “o iftar é feito em família e em comunidade, em horários diferentes. Como ainda não há casos positivos, existe alguma flexibilidade. Mas tentamos sensibilizar os líderes religiosos para que seja feito o distanciamento social e a celebração decorra sobretudo ao nível da família”.

Quem canta o vírus espanta

Sensibilizar é a palavra de ordem da OIM nos campos rohingya. A organização tem em curso campanhas de promoção de hábitos de higiene destinadas aos refugiados, mas também às populações dos aglomerados envolventes aos campos.

As recomendações são transmitidas porta a porta, em sessões ao ar livre envolvendo pequenos grupos, nas distribuições de ajuda humanitária (comida e bens não alimentares) ou durante as sessões de apoio psicossocial. A Internet, que podia ser um aliado neste contexto, está cortada desde setembro de 2019 por “motivos de segurança”, diz o Governo de Daca.

“A falta de Internet não permite aos refugiados comunicarem a partir de casa ou indiretamente com o pessoal humanitário”, diz Manuel Pereira. “Além disso, limita as ações de sensibilização e pode fomentar a consolidação de boatos que circulem em pequenos núcleos onde as nossas campanhas ainda não tenham chegado.”

Estar desligado na Rede dificulta a partilha de vídeos como este, onde o artista Muhammed Taher, refugiado rohingya, interpreta uma canção da sua autoria, de consciencialização para o coronavírus. O músico é apoiado pelo Centro de Memória Cultural, programa da OIM que compila mais de 600 artefactos, práticas e perfis representativos do património cultural deste povo.

FALTA VÍDEO!!!!

As campanhas de sensibilização da OIM ensinam a lavar as mãos como um profissional, explicam o conceito de distância social, ajudam a identificar os sintomas da doença, orientam as pessoas na procura de cuidados médicos e esclarecem para combater boatos. “Alguns acham que é um inseto que provoca a doença e que pode ser morto com facilidade. Outros pensam que todos os infetados morrem”, diz Manuel Pereira.

O português, formado em Engenharia do Ambiente e que começou a trabalhar para as Nações Unidas em 2006, em Timor-Leste, considera que os rohingya são um povo disciplinado que escuta e tenta acatar os conselhos. “São pessoas muito afáveis e, como é natural, estão muito preocupadas e pedem informação e apoio.”

Nesta ação de formação da OIM, um grupo de homens rohingya aprende a tossir para o braço, no campo de Jadimura, no Bangladesh ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM)

Numa corrida contra o tempo, a OIM — principal prestadora de cuidados de saúde nos campos — está a criar espaços de isolamento para doentes de covid (refugiados ou oriundos das comunidades locais), a dar formação específica sobre a doença a pessoal dos seus 35 centros de saúde, a distribuir equipamento de proteção individual aos profissionais que estão na “linha da frente” e a aumentar o número de locais para ser medida a temperatura do corpo.

“Neste momento, os testes às populações estão centralizados nos serviços de saúde do Governo, uma vez que ainda há poucos”, explica o português. “Reportamos casos suspeitos e até agora, felizmente, não houve nenhum positivo.”

A OIM está também a tentar antecipar o mais possível a necessidade de tratar doentes com alguma gravidade. “Os parceiros humanitários e o Governo do Bangladesh estão a aumentar, a reforçar e a criar estruturas para tratamento de casos graves entre os refugiados. A compra de equipamento, construção de instalações temporárias, formação de pessoal e contratação de outros mais está a ser acelerada. Ajudamos o Governo para podermos ter capacidade de resposta aos casos mais graves sem sobrecarregar em demasia o sistema nacional de saúde. As limitações são muitas, a nível financeiro, logístico e de recursos humanos, mas continuaremos esta batalha para salvar vidas.”

Funcionários da OIM preparam um centro de isolamento para suspeitos de infeção com covid.19, no campo rohyngya de Leda ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM)

Trabalhar no apoio aos rohingya significa estar em alerta simultâneo a mais do que uma emergência. Neste momento, paralelamente à pandemia de covid-19, os olhos voltam-se também para os céus.

“A primeira época dos ciclones já começou. Nos próximos seis meses, vamos viver um período de potenciais ciclones e de monção, com muita chuva e ventos fortes”, prevê Manuel Pereira. “Esperemos que não se formem ciclones na Baía de Bengala. Se conseguirmos gerir bem a evolução da covid-19, ou mesmo limitar as contaminações dentro dos campos, podemos continuar a operar dentro dos procedimentos de resposta de emergência que aperfeiçoamos nos últimos dois anos. Caso contrário, teremos de fazer adaptações significativas para garantir serviços e proteção para todos.”

(FOTO PRINCIPAL Nesta fila de distribuição de garrafas de gás, num campo de refugiados rohingya de Cox’s Bazar, no Bangladesh, cumpre-se o distanciamento social ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES — OIM)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Depois de prever a pandemia, Bill Gates arrisca agendar o regresso à normalidade

O fundador da Microsoft, à frente de uma fundação que se dedica ao combate a doenças infecciosas, antevê que a retoma da vida a que estávamos acostumados dependa da produção de uma vacina. Em entrevista ao jornal “Le Figaro”, Bill Gates revela-se “estupefacto” com a escala e a devastação provocada pelo novo coronavírus

A pandemia provocada pelo novo coronavírus recuperou, nas redes sociais, o vídeo de uma conferência de Bill Gates, em março de 2015, no qual, de forma quase profética, o fundador da Microsoft previu o surto de “um vírus altamente contagioso” e que não estávamos preparados para enfrentar.

Se o milionário estiver igualmente certeiro na entrevista publicada esta terça-feira pelo jornal francês “Le Figaro”, “não vamos voltar à normalidade antes de um a dois anos”.

Em 2015, no mês seguinte à conferência, Gates assinou um artigo na publicação “The New England Journal of Medicine” sobre as medidas necessárias para reagir ao vírus. “A ideia era estarmos prontos quando chegasse a hora”, diz ao jornal francês. “Aumentar rapidamente a nossa capacidade de fazer testes, envolver a indústria para que seja capaz de produzir muito depressa uma terapia e depois as vacinas. Mas muito pouco foi feito.”

Gates frisa que a retoma das vidas suspensas pelo confinamento — que na sua opinião “salvou milhões de vidas” — só acontecerá após a descoberta de uma vacina. O filantropo defende que, numa primeira fase pós-confinamento, deve ser adotado “um sistema de testes e rastreio”, com que possamos “rapidamente identificar os focos de infeção e contê-los”.

Trabalhar com a China e não ostracizá-la

Gates diz ainda que a resposta à pandemia tem de ser mundial, não só por uma questão de humanidade mas também em nome da economia global. Distancia-se dos detratores da China, que a acusam de ter escondido a verdade. “É muito difícil ser o país onde a epidemia se declarou. A partir de certa altura, a China usou métodos muito duros para conter o vírus”, lembra. “Chegará a hora de fazermos balanços, mas apontar culpados agora não é uma abordagem construtiva. A nossa economia está parada, o mundo sofre, a prioridade deve ser a colaboração.”

Bill Gates e a mulher, Melinda, dirigem uma fundação em nome próprio que se orgulha de, nos últimos 20 anos, ter contribuído para baixar o número de mortes provocadas por doenças infecciosas em todo o mundo de dez para cinco milhões por ano.

A covid-19 veio abrir outra frente no trabalho da fundação. “Este vírus provocou uma devastação imensa, a uma escala inacreditável”, diz Gates. “Mesmo eu, que previ uma pandemia deste tipo, estou estupefacto com a amplitude dos prejuízos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Kim Jong-un continua desaparecido, mas seguem cartas em seu nome

O Supremo Líder da Coreia do Norte está desaparecido há mais de duas semanas mas, segundo a agência noticiosa do país, durante esse período Kim Jong-un despachou nove cartas pessoais para diferentes destinatários — de chefes de Estado a um camarada centenário

Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte VECTORPORTAL

Kim Jong-un terá enviado uma carta ao Presidente da África do Sul, felicitando Cyril Ramaphosa pelo Dia da Liberdade, que os sul-africanos comemoraram na segunda-feira (data das primeiras eleições democráticas pós-apartheid, que levaram Nelson Mandela à Presidência em 1994).

Na missiva, divulgada pela agência de notícias estatal norte-coreana KCNA, Kim Jong-un congratula a África do Sul e o seu povo por terem “alcançado a liberdade” e derrotado o apartheid, enviando “ao povo amigo da África do Sul sinceros desejos de mais sucesso na promoção da unidade nacional” e de que a relação entre os dois países “fique mais forte”.

A notícia ganha relevância numa altura em que o Supremo Líder norte-coreano não é visto em público desde o passado dia 11 de abril. A cada dia que passa adensa-se rumores de que possa estar gravemente doente ou mesmo ter morrido.

A publicação “The South African” chega ao ponto de questionar a lógica da missiva. Se Kim enviou uma carta associando-se às celebrações do Dia da Liberdade, e “considerando que esse feriado assinala as nossas primeiras eleições pós-apartheid, é muito estranho que um tirano elogie a nossa República por se levantar contra um Governo opressivo”, escreve o jornal esta terça-feira.

Nove cartas em 16 dias

Segundo o sítio norte-americano NK News, que recolhe informações designadamente junto de desertores e visitantes ocidentais regressados da Coreia do Norte e está atento às notícias da agência norte-coreana KCNA, a carta de Kim a Ramaphosa não foi caso único.

Nos 16 dias em que Kim Jong-un não foi visto em público, o jornal “Rodong Sinmun”, órgão oficial de informação do Partido dos Trabalhadores (comunista, no poder), noticiou o envio de mensagens pessoais do Supremo Líder por nove vezes. “São, na maioria, formalidades mundanas, desde a carta na segunda-feira a elogiar os trabalhadores da recém-construída cidade da ‘utopia’, em Samjiyon, até uma mensagem pessoal de ‘aniversário’ enviada a um centenário.”

Há também cartas a camaradas no estrangeiro e aos presidentes de Cuba, Zimbabwe e Síria — Bashar al-Assad terá mesmo recebido duas mensagens de Kim. Se nos casos mais pessoais as cartas até podem ter sido enviadas pelo seu gabinete, no caso da correspondência com os homólogos é expectável que Kim a tenha assinado por mão própria.

Mas nem esta questão gera consenso entre os analistas da realidade norte-coreana. Há quem defenda que dada a natureza vertical do sistema político — e o medo instalado junto dos funcionários de que possam passar por usurpadores dos poderes do Líder Supremo —, é muito pouco provável que alguém envie cartas sem, pelo menos, a aprovação de Kim.

No domingo, a Coreia do Sul deitou água fria sobre a fogueira dos rumores. Em entrevista à CNN, Moon Chung-in, alto conselheiro do Presidente sul-coreano Moon Jae-in para a segurança nacional, afirmou: “A posição do nosso Governo é firme: Kim Jong-un está vivo e está bem”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

“Bibi” no poder, Gantz seu guarda-costas

Após três eleições inconclusivas, foi anunciado um Governo de emergência nacional. Será o maior de sempre

“Este é um acordo muito difícil de digerir. Quando o li, deu-me a volta ao estômago. Não quero com isto dizer que preferia que fôssemos para as quartas eleições. Mas é um acordo com pouca substância programática e muitos mecanismos de partilha de poder e de veto.” A reação é de Yohanan Plesner, presidente do Instituto para a Democracia de Israel, durante um briefing online à imprensa a partir de Jerusalém, a que o Expresso assistiu.

“É um Governo desenhado para beneficiar de uma ampla base parlamentar e lidar de forma eficaz com a crise do coronavírus, sobretudo do ponto de vista económico.” Em Israel, a pandemia já infetou 14.882 pessoas e matou 193. A partir de hoje, pequenas lojas, barbeiros e salões de beleza têm ordem para reabrir portas.

Após mais de um ano de impasse político e de três idas às urnas inconclusivas, Israel anunciou esta semana um “Governo de emergência nacional”. Os signatários do acordo são Benjamin Netanyahu (“Bibi”), que detém o recorde do israelita que mais tempo serviu como primeiro-ministro, e Benjamin (“Benny”) Gantz, o general que em janeiro de 2019 fundou o Partido da Resiliência de Israel para… tirar Netanyahu no poder.

Durante 18 meses, Netanyahu será primeiro-ministro e Gantz “primeiro-ministro substituto”. Em novembro de 2021, trocam de posições durante igual período. Fica assim provado que as notícias sobre a morte (política) de “Bibi” eram manifestamente exageradas.

Pouca confiança em “Bibi”

Uma sondagem da televisão Channel 13 revelou que 62% dos inquiridos aprovam o novo Governo, mas apenas 31% acreditam que Netanyahu vá honrar o compromisso e passar o testemunho a Gantz dentro de ano e meio. Da mesma forma, 48% têm a perceção de que “Benny” fez mais cedências do que “Bibi” e só 23% pensam o oposto.

Durante 18 meses, Netanyahu será primeiro-ministro e Benny Gantz “primeiro-ministro substituto”. Depois trocam de cargo durante igual período. Só 31% creem que “Bibi” honre o compromisso

“Este não é um acordo de partilha de poder — é um contrato. Netanyahu não tem em Gantz um parceiro; contratou um guarda-costas que estará ligado a si durante os próximos três anos, pelo menos”, defendeu no diário “Haaretz“ Anshel Pfeffel, autor do livro “Bibi — The Turbulent Life and Times of Benjamin Netanyahu” (2018).

“Impedimos as quartas eleições. Vamos proteger a democracia. Vamos combater o coronavírus e tratar de todos os cidadãos de Israel”, resumiu Gantz no Twitter, após a assinatura do acordo. Na mesma rede social, Netanyahu publicou apenas a bandeira de Israel.

Ao mudar de posição em relação a Netanyahu — passando de opositor a aliado —, Gantz perdeu a confiança dos seus parceiros da aliança Kahol Lavan (Azul e Branco, de centro), com quem foi a votos. Mas os deputados que o partido de “Benny” elegeu são suficientes para dar a “Bibi” uma maioria confortável no Parlamento (Knesset, 120 membros).

O dilema de Gantz

“Gantz teve de optar entre ir para as quartas eleições, com uma alta probabilidade de Netanyahu vencer com maioria absoluta e ficar em condições de concluir toda a sua agenda, incluindo em matéria de Estado de direito — uma agenda destrutiva, do ponto de vista democrático — ou fazer algum tipo de compromisso, em que não consegue tudo o que queria, mas pelo menos pode defender as instituições e os princípios do Estado de direito.”

Yohanan Plesner calcula que a maioria parlamentar de apoio ao Executivo possa ficar entre os 72 e os 78 deputados. Além do seu Likud (direita) e do partido de Gantz (centro), Netanyahu tem o apoio dos partidos religiosos ultraortodoxos (Shas e Judaísmo da Torá Unida), da extrema-direita (Yamina), de Orly Levy-Abekasis, deputada que desertou do Gesher (centro-esquerda) e… do Partido Trabalhista (esquerda). Este partido histórico, que esteve na fundação do país e hoje não vai além de três deputados, aderiu ao Governo mediante a promessa de reformas sociais.

“Um aspeto problemático do acordo é o enfraquecimento da oposição. Vai ser pequena, fraca e muito diversificada”, diz Plesner. Poderá incluir extrema-direita, ultranacionalistas laicos (Avigdor Lieberman), os partidos árabes, alguma esquerda e as fações saídas do Azul e Branco após o volte-face de Gantz. “Será uma oposição que terá dificuldades para criar algum tipo de coesão.”

Quem controla a justiça?

O acordo é complexo, cheio de freios e contrapesos, para que nem o Likud de Netanyahu nem o Kahol Lavan de Gantz possam aprovar legislação sem o assentimento do outro. O Executivo começará a funcionar com 32 ministérios, repartidos em partes iguais pelas duas forças. “A mensagem que se transmite ao povo é que, na altura em que temos a maior taxa de desemprego da história [mais de 25%], criamos o maior Governo de sempre: cerca de 45 ministros e vice-ministros em 120 deputados. É desnecessário, dispendioso e imoral”, critica Plesner.

Gantz teve de optar entre ir para as quartas eleições, com alta probabilidade de Netanyahu vencer com maioria absoluta, ou fazer algum tipo de compromisso em que possa defender o Estado de direito

Na primeira metade do mandato, Gantz, antigo chefe das Forças Armadas, atuará como ministro da Defesa. O seu partido controlará também os ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Justiça. O Likud fica com as pastas das Finanças e Segurança Pública e com a presidência do Knesset. Para Plesner, este Governo representa um “cessar-fogo democrático”, no sentido em que “significa que a onda de legislação populista anticonstitucional que vimos no Knesset anterior, entre 2015 e 2019 está agora fora da mesa”.

Um exemplo era a chamada Cláusula de Substituição, que permitiria que o Parlamento revertesse leis consideradas anticonstitucionais pelo Supremo Tribunal. “Netanyahu não irá controlar diretamente o Ministério da Justiça, como estava habituado nos últimos meses.”

É com esta ampla cobertura política que Netanyahu começará a ser julgado, a 24 de maio, por suborno, fraude e quebra de confiança. “Pela primeira vez em Israel, um primeiro-ministro que também é réu num processo criminal vai continuar em funções”, conclui Plesner. “Este acordo representa um retrocesso no capítulo do combate à corrupção.”

(FOTO Encontro em Jerusalém entre Benjamin Netanyahu e Benny Gantz, na presença do Presidente Reuven Rivlin WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 25 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Com Kim Jong-un em parte incerta, já se fala da sua sucessão

O líder norte-coreano faltou às cerimónias do Dia do Sol, o feriado mais importante no país. Essa ausência fez disparar rumores sobre o seu estado de saúde e voltou os holofotes para uma estrela em ascensão na política interna: a sua irmã

A saúde de Kim Jong-un é um segredo tal na Coreia do Norte que sempre que o Supremo Líder viaja para o estrangeiro segue na bagagem da comitiva uma sanita portátil especial, para Kim usar à vontade sem receios de deixar para trás vestígios de ADN que revelem informações sobre o seu estado.

Foi assim em especial no ano 2018 quando Kim Jong-un fez história ao encontrar-se separadamente com os homólogos da Coreia do Sul e dos Estados Unidos, Moon Jae-in e Donald Trump, respetivamente, na parte sul da zona desmilitarizada entre as duas Coreias e em Singapura.

“As reuniões proporcionaram perceções em estado puro sobre o que pode ser o maior fator de risco para Kim Jong-un: a sua saúde”, defende a jornalista Anna Fifield, no livro “O Grande Sucessor” (Casa das Letras, 2019). “O jovem líder parece um ataque cardíaco prestes a acontecer. Teve claramente problemas de saúde. Aquele período no final de 2014 foi um indício prematuro. Tinha apenas 30 anos quando desapareceu durante seis semanas, consequência aparente de um episódio grave de gota, tendo regressado de bengala.”

Onde anda Kim?

Agora é novo sumiço de Kim Jong-un que relança o debate sobre o seu estado de saúde. A confirmação de que algo incomum se passava aconteceu a 15 de abril, quando faltou às celebrações do Dia do Sol, o feriado mais importante no ano, comemorativo do nascimento de Kim Il-sung, seu avô e fundador da República Popular Democrática da Coreia, em 1948. Morreu em 1994 mas ainda é oficialmente Presidente Eterno.

A televisão norte-americana CNN justificou a ausência com o cenário mais negro de todos, noticiando que Kim tinha sido submetido a uma cirurgia cardiovascular e que poderia estar “em estado grave”. O diagnóstico não foi confirmado por sul-coreanos ou chineses, mas — até que Kim reapareça — a dúvida está plantada.

“Sabemos que já teve vários problemas de saúde. Há alguns anos, os órgãos de informação estatais mostraram-no a reaparecer em público a coxear, após rumores de que tinha feito uma cirurgia no tornozelo”, diz ao Expresso Rachel Lee, antiga analista de informação sobre a Coreia do Norte para o Governo dos EUA. “Se recentemente foi sujeito a um procedimento médico ou operado, é pouco provável que isso esteja relacionado com o coronavírus.”

Não é preciso ter especiais conhecimentos médicos ou acreditar em teorias da conspiração para perceber que o líder da Coreia do Norte tem uma saúde débil. Kim tem visivelmente excesso de peso, um andar bamboleante para uma pessoa de 36 anos e sabe-se que é um fumador inveterado.

A 27 de abril de 2018, aquando da cimeira intercoreana na zona desmilitarizada de Panmunjom, “quando os dois líderes coreanos lançaram terra na base de um pinheiro”, recorda Anna Fifield, “o Presidente sul-coreano, com 65 anos de idade, fê-lo sem dificuldade, ao passo que o norte-coreano, de 34 anos, estava ofegante. Após o mais leve esforço, o seu rosto ficava vermelho”.

Num reencontro posterior, em setembro, quando subiram juntos ao monte Paektu, “Kim Jong-un arfava intensamente. Comentou que Moon não parecia minimamente sem fôlego. Numa caminhada tão fácil como esta, não, respondeu o sul-coreano, que adora andar a pé”, lê-se no livro.

Um mistério chamado Kim

Cada aparição pública de Kim Jong-un diante de órgãos de informação internacionais, sem os filtros da censura norte-coreana, foi oferecendo vislumbres sobre alguém profundamente enigmático e proporcionou observações inéditas sobre a sua saúde.

As filmagens captadas foram analisadas ao pormenor por médicos que chegaram ao ponto de contar as exalações de Kim. “Numa caminhada de 42 segundos com Moon, durante a primeira cimeira exalou, 35 vezes. Ou estava muito nervoso ou a sua capacidade pulmonar estava deficitária por falta de exercício”, conta Anna Fifield.

A número dois oficiosa

Além de Kim, outra ausência nas cerimónias do Dia do Sol, no Palácio Kumsusan, que contribuiu para adensar o mistério foi a de Kim Yo-jong, a irmã do líder, que o segue como sombra e é uma estrela em ascensão na política norte-coreana.

“Oficialmente, Kim Yo-jong é primeira vice-diretora de um departamento do partido. Não se sabe ao certo qual, mas é provável que seja o Departamento de Propaganda e Agitação ou o Departamento da Organização e Orientação, os mais poderosos dentro do Partido dos Trabalhadores [comunista e o único no país]”, explica Rachel Lee.

“O seu papel e perfil no regime de Kim Jong-un aumentaram e alargaram-se ao longo dos últimos dois anos. É muitas vezes referida como estando envolvida em assuntos que transcendem o seu próprio cargo. E tem sido retratada nos media estatais como alguém que goza de estatuto especial dentro do regime, como membro da ‘linhagem do Monte Paektu’”, um local sagrado para a dinastia Kim.

Nos últimos anos, Kim Yo-jong tem surgido em público quase que no papel de número dois do regime. Numa missão politicamente relevante, foi ela a enviada à Coreia do Sul para representar o país na cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos de Inverno de PyeongChang e foi inseparável do irmão nas importantes cimeiras com Moon e Trump.

Mais recentemente, passou a emitir comunicados em nome próprio, não abdicando da agressividade característica da retórica de Pyongyang. No primeiro, no início de março, visou a Coreia do Sul, que manifestara preocupação com exercícios com armamento a Norte.

“Tanto quanto sei, o lado Sul também gosta de exercícios militares conjuntos [com os EUA] e está preocupado com todos os atos repugnantes, como a compra de equipamentos militares ultramodernos”, ironizou. “Precisam de se preparar militarmente, mas nós devemos ser desencorajados a realizar exercícios militares. Nunca é de esperar uma afirmação gangster destas de alguém com uma forma de pensamento normal.”

“Julgo que Kim Yo-jong vai provavelmente suceder a Kim Jong-un, quando este não tiver mais condições de governar o país por mais 10 anos. Os filhos de Kim Jong-un serão muito novos para lhe suceder”, defende Rachel Lee. “Alguns peritos têm referido a possibilidade de um ‘sistema coletivo de liderança’ e também de uma luta pelo poder, mas não me parece que nenhuma dessas situações seja provável. É difícil pensar em alguém que não faça parte da família Kim a governar a Coreia do Norte.”

Num país fechado, conservador, respeitador dos princípios confucianos da antiguidade e da masculinidade, poderia Kim Yo-jong encontrar obstáculos sociais à sua aceitação como líder do país, desde logo por ser mulher?

“Neste caso, o facto de ser membro da linhagem do Monte Paektu é mais importante do que a circunstância de ser mulher”, conclui Lee. “Não creio que o género possa ser impedimento quer para a população em geral quer para a liderança do país. Kim Yo-jong tem um estatuto especial na Coreia do Norte.”

(IMAGEM Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte VECTORPORTAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui