O coronavírus dissuadiu manifestações populares que, por todo o mundo, mobilizavam milhões de pessoas. Até que a tormenta passe, no Brasil faz-se barulho às janelas com recurso a tachos e panelas e na Argélia utiliza-se o pilão e o almofariz. Israel mostrou há dias como, no curto prazo, podem ser os novos protestos de rua

O coronavírus calou de um dia para o outro os protestos populares globais que eclodiram em força em 2019 e prometiam continuar a conquistar latitudes este ano. Mas não tendo desaparecido as razões de queixa que estiveram na sua origem, há indícios de que, mais cedo ou mais tarde, as palavras de ordem voltem a soar nas ruas.
“As manifestações foram suspensas pelo Hirak [o movimento organizador] por causa do coronavírus. Enquanto essa pandemia estiver presente, as marchas não poderão continuar”, diz ao Expresso o argelino Said Touati, que durante os protestos foi uma espécie de repórter voluntário captando imagens para depois divulgar no Twitter. Porém, garante: “A seguir ao fim da pandemia, as marchas vão continuar”.
A Argélia levava 56 semanas consecutivas de manifestações pacíficas, convocadas sobretudo através do Facebook, que já tinham alcançado resultados impensáveis no início da contestação. “Derrotaram o quinto mandato do Presidente Abdelaziz Bouteflika [que estava no poder desde 1999] e obrigaram-no a deixar o cargo de forma humilhante”, explica ao Expresso o argelino Youcef Bouandel, professor de Ciência Política na Universidade do Qatar.
“Vários membros dos seus sucessivos governos (incluindo dois primeiros-ministros), altas patentes das forças armadas (incluindo dois chefes dos serviços de segurança), vários empresários com ligações a Bouteflika e que dilapidaram o país estão presos. E, mais importante, o seu irmão mais novo e ex-conselheiro, Said, está atrás das grades.”
Pensa-se que — com Abdelaziz confinado a uma cadeira de rodas desde 2013, na sequência de um acidente vascular cerebral — era Said quem efetivamente estava aos comandos do país.
Conquista após conquista, os argelinos continuaram nas ruas exigindo mais democracia e o fim do regime. Mas a covid-19 — que atualmente mata mais na Argélia do que em qualquer outro país africano — empurrou-os para dentro de casa.
“Nesta altura, o movimento de protesto está a reorganizar-se”, diz ao Expresso Riccardo Fabiani, diretor para o Norte de África do International Crisis Group (ICG). “Uma vez que é impossível continuar a protestar nas ruas, muitos ativistas estão a prestar ajuda aos hospitais e às famílias necessitadas por causa das medidas de restrição impostas pelo Governo.”
“Cacerolazo” magrebino
Sendo impossível protestar nas ruas, há argelinos que o fazem à janela ou à varanda, numa espécie de versão magrebina do “cacerolazo” latino-americano, em que se mostra o descontentamento batendo em tachos e panelas. “Aqui utilizam o pilão e o almofariz, para mostrarem apoio aos detidos do Hirak e aos presos políticos e de opinião”, diz Said. “Por causa do confinamento, fazem-no em casa ou às varandas.”
É o que acontece também no Brasil onde as janelas de muitos prédios das grandes cidades passaram a ser palcos de protestos contra o Presidente Jair Bolsonaro pela forma negligente como tem gerido a pandemia.
“Temos a expectativa de que a instabilidade política decorrente desta crise ocorra por um longo período”, diz ao Expresso Richard Gowan, diretor para as Nações Unidas do ICG.
“O declínio dos protestos a curto prazo é enganador. Os choques sociais e económicos causados pela pandemia criarão tensões e raiva que se podem traduzir em agitação e protestos durante meses ou anos. Os governos autoritários podem parecer que estão a gerir a doença de forma eficaz no curto prazo, porque podem usar métodos pesados para reprimir dissidências e protestos. Mas isso lançará as sementes de futuras crises.”
No sábado passado, a polícia de Hong Kong prendeu 15 ativistas veteranos — entre os quais Martin Lee, de 81 anos, advogado e fundador do Partido Democrático —, acusando-os de organização e participação em protestos ilegais em 2019.
Também nesta região administrativa especial da China, o coronavírus obrigou ao fim das manifestações pró-democracia, com uma curiosa ironia… Em outubro passado, para combater os protestos no território, o governo liderado por Carrie Lam proibiu o uso de máscaras, que os manifestantes usavam para se protegerem dos gases tóxicos lançados pela polícia ou para ocultarem identidades, com receio de represálias. Neste contexto pandémico, nem Carrie Lam abdica de usar máscara.
Domingo passado, Israel deu o mote para o modelo que os protestos antigovernamentais podem vir a assumir, pelo menos a curto prazo. Cerca de 2000 pessoas “encheram” a Praça Rabin, em Telavive, numa manifestação contra algumas medidas que consideram ser “antidemocráticas” adotadas pelo Governo em nome do combate à pandemia. Os manifestantes estavam protegidos com máscaras ou viseiras e afastados entre si no cumprimento da distância de segurança.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui