O líder norte-coreano faltou às cerimónias do Dia do Sol, o feriado mais importante no país. Essa ausência fez disparar rumores sobre o seu estado de saúde e voltou os holofotes para uma estrela em ascensão na política interna: a sua irmã
A saúde de Kim Jong-un é um segredo tal na Coreia do Norte que sempre que o Supremo Líder viaja para o estrangeiro segue na bagagem da comitiva uma sanita portátil especial, para Kim usar à vontade sem receios de deixar para trás vestígios de ADN que revelem informações sobre o seu estado.
Foi assim em especial no ano 2018 quando Kim Jong-un fez história ao encontrar-se separadamente com os homólogos da Coreia do Sul e dos Estados Unidos, Moon Jae-in e Donald Trump, respetivamente, na parte sul da zona desmilitarizada entre as duas Coreias e em Singapura.
“As reuniões proporcionaram perceções em estado puro sobre o que pode ser o maior fator de risco para Kim Jong-un: a sua saúde”, defende a jornalista Anna Fifield, no livro “O Grande Sucessor” (Casa das Letras, 2019). “O jovem líder parece um ataque cardíaco prestes a acontecer. Teve claramente problemas de saúde. Aquele período no final de 2014 foi um indício prematuro. Tinha apenas 30 anos quando desapareceu durante seis semanas, consequência aparente de um episódio grave de gota, tendo regressado de bengala.”
Onde anda Kim?
Agora é novo sumiço de Kim Jong-un que relança o debate sobre o seu estado de saúde. A confirmação de que algo incomum se passava aconteceu a 15 de abril, quando faltou às celebrações do Dia do Sol, o feriado mais importante no ano, comemorativo do nascimento de Kim Il-sung, seu avô e fundador da República Popular Democrática da Coreia, em 1948. Morreu em 1994 mas ainda é oficialmente Presidente Eterno.
A televisão norte-americana CNN justificou a ausência com o cenário mais negro de todos, noticiando que Kim tinha sido submetido a uma cirurgia cardiovascular e que poderia estar “em estado grave”. O diagnóstico não foi confirmado por sul-coreanos ou chineses, mas — até que Kim reapareça — a dúvida está plantada.
“Sabemos que já teve vários problemas de saúde. Há alguns anos, os órgãos de informação estatais mostraram-no a reaparecer em público a coxear, após rumores de que tinha feito uma cirurgia no tornozelo”, diz ao Expresso Rachel Lee, antiga analista de informação sobre a Coreia do Norte para o Governo dos EUA. “Se recentemente foi sujeito a um procedimento médico ou operado, é pouco provável que isso esteja relacionado com o coronavírus.”
Não é preciso ter especiais conhecimentos médicos ou acreditar em teorias da conspiração para perceber que o líder da Coreia do Norte tem uma saúde débil. Kim tem visivelmente excesso de peso, um andar bamboleante para uma pessoa de 36 anos e sabe-se que é um fumador inveterado.
A 27 de abril de 2018, aquando da cimeira intercoreana na zona desmilitarizada de Panmunjom, “quando os dois líderes coreanos lançaram terra na base de um pinheiro”, recorda Anna Fifield, “o Presidente sul-coreano, com 65 anos de idade, fê-lo sem dificuldade, ao passo que o norte-coreano, de 34 anos, estava ofegante. Após o mais leve esforço, o seu rosto ficava vermelho”.
Num reencontro posterior, em setembro, quando subiram juntos ao monte Paektu, “Kim Jong-un arfava intensamente. Comentou que Moon não parecia minimamente sem fôlego. Numa caminhada tão fácil como esta, não, respondeu o sul-coreano, que adora andar a pé”, lê-se no livro.
Um mistério chamado Kim
Cada aparição pública de Kim Jong-un diante de órgãos de informação internacionais, sem os filtros da censura norte-coreana, foi oferecendo vislumbres sobre alguém profundamente enigmático e proporcionou observações inéditas sobre a sua saúde.
As filmagens captadas foram analisadas ao pormenor por médicos que chegaram ao ponto de contar as exalações de Kim. “Numa caminhada de 42 segundos com Moon, durante a primeira cimeira exalou, 35 vezes. Ou estava muito nervoso ou a sua capacidade pulmonar estava deficitária por falta de exercício”, conta Anna Fifield.
A número dois oficiosa
Além de Kim, outra ausência nas cerimónias do Dia do Sol, no Palácio Kumsusan, que contribuiu para adensar o mistério foi a de Kim Yo-jong, a irmã do líder, que o segue como sombra e é uma estrela em ascensão na política norte-coreana.
“Oficialmente, Kim Yo-jong é primeira vice-diretora de um departamento do partido. Não se sabe ao certo qual, mas é provável que seja o Departamento de Propaganda e Agitação ou o Departamento da Organização e Orientação, os mais poderosos dentro do Partido dos Trabalhadores [comunista e o único no país]”, explica Rachel Lee.
“O seu papel e perfil no regime de Kim Jong-un aumentaram e alargaram-se ao longo dos últimos dois anos. É muitas vezes referida como estando envolvida em assuntos que transcendem o seu próprio cargo. E tem sido retratada nos media estatais como alguém que goza de estatuto especial dentro do regime, como membro da ‘linhagem do Monte Paektu’”, um local sagrado para a dinastia Kim.
Nos últimos anos, Kim Yo-jong tem surgido em público quase que no papel de número dois do regime. Numa missão politicamente relevante, foi ela a enviada à Coreia do Sul para representar o país na cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos de Inverno de PyeongChang e foi inseparável do irmão nas importantes cimeiras com Moon e Trump.
Mais recentemente, passou a emitir comunicados em nome próprio, não abdicando da agressividade característica da retórica de Pyongyang. No primeiro, no início de março, visou a Coreia do Sul, que manifestara preocupação com exercícios com armamento a Norte.
“Tanto quanto sei, o lado Sul também gosta de exercícios militares conjuntos [com os EUA] e está preocupado com todos os atos repugnantes, como a compra de equipamentos militares ultramodernos”, ironizou. “Precisam de se preparar militarmente, mas nós devemos ser desencorajados a realizar exercícios militares. Nunca é de esperar uma afirmação gangster destas de alguém com uma forma de pensamento normal.”
“Julgo que Kim Yo-jong vai provavelmente suceder a Kim Jong-un, quando este não tiver mais condições de governar o país por mais 10 anos. Os filhos de Kim Jong-un serão muito novos para lhe suceder”, defende Rachel Lee. “Alguns peritos têm referido a possibilidade de um ‘sistema coletivo de liderança’ e também de uma luta pelo poder, mas não me parece que nenhuma dessas situações seja provável. É difícil pensar em alguém que não faça parte da família Kim a governar a Coreia do Norte.”
Num país fechado, conservador, respeitador dos princípios confucianos da antiguidade e da masculinidade, poderia Kim Yo-jong encontrar obstáculos sociais à sua aceitação como líder do país, desde logo por ser mulher?
“Neste caso, o facto de ser membro da linhagem do Monte Paektu é mais importante do que a circunstância de ser mulher”, conclui Lee. “Não creio que o género possa ser impedimento quer para a população em geral quer para a liderança do país. Kim Yo-jong tem um estatuto especial na Coreia do Norte.”
(IMAGEM Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte VECTORPORTAL)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui