“500 Boeing 777 totalmente carregados”. Em tempo de aviões parados, Qatar aposta na “geopolítica covid”

O Qatar está a aproveitar a pandemia global para se afirmar como um país poderoso e solidário e, ao mesmo tempo, desvalorizar o bloqueio de que é alvo por parte de alguns “irmãos” árabes. O pivô ao serviço desta estratégia é a Qatar Airways

O surto do novo coronavírus paralisou a indústria da aviação em todo o mundo, mas a Qatar Airways anda num corrupio. A companhia aérea do Qatar mantém serviços comerciais regulares para dezenas de países e opera “charters” para repatriar cidadãos estrangeiros encurralados pelo fecho de fronteiras. Paralelamente, tem assegurado o transporte de toneladas de material e ajuda médica para países em desespero.

Só no mês de março trabalhou “com governos e organizações não governamentais de todo o mundo para transportar mais de 50 milhões de quilos de ajuda e suprimentos médicos”, congratulou-se a empresa no Twitter. “Isto equivale a cerca de 500 Boeing 777 totalmente carregados.”

A transportadora do pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico opera sobretudo para a Europa, Ásia e Austrália. Muitas vezes, a taxa de ocupação dos aparelhos fica pela metade, ou menos ainda. Akbar al-Baker, o presidente-executivo da Qatar Airways, já disse que a empresa só tem dinheiro para sustentar as operações por “um período muito curto”. “Certamente iremos pedir apoio ao nosso governo”, alertou, em declarações à agência Reuters.

O que motiva então a Qatar Airways a “torrar” dinheiro numa altura em que a esmagadora maioria das congéneres tem os hangares e pistas cheios de aviões parados?

“A Qatar Airways é muitas vezes considerada um instrumento de ‘soft power’ [a capacidade de influência de um país através da ideologia ou da cultura, e não das armas]. Eu concordo em certa medida. É uma boa maneira de o país se mostrar e, como se costuma dizer, ‘colocar o Qatar no mapa’”, explica ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres. “Mas essa ideia não deve ser levada longe demais. Eu não concordo com o ditado que diz que ‘não existe má publicidade’. Só porque o Qatar é conhecido, isso não significa automaticamente um impulso para o Estado.”

Mas é um facto que, nestes tempos de crise, o Qatar tem marcado pontos na forma como está a contrariar a inércia global forçada. Esta semana, James Cleverly, secretário de Estado do Reino Unido para o Médio Oriente e Norte de África, agradeceu à Qatar Airways por ter ajudado 45 mil britânicos espalhados pelo mundo a regressar a casa. Anteriormente, tinha sido o embaixador da Alemanha no país, Hans-Udo Muzel, a expressar gratidão.

Além de britânicos e alemães, o Qatar já ajudou a repatriar australianos, franceses, suíços, canadianos, norte-americanos, indianos, paquistaneses, filipinos e omanitas, em “charters” organizados pelos respetivos governos.

“Recebemos muitos pedidos de governos de todo o mundo para que a Qatar Airways não páre de voar”, disse Akbar al-Baker, presidente executivo da empresa. “Voaremos enquanto for necessário.”

O protagonismo da Qatar Airways ganha relevância quando dele fazemos uma interpretação geopolítica. Desde junho de 2017 que o Qatar é alvo de um bloqueio regional — económico, político e físico —, liderado pela Arábia Saudita e coadjuvado por Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito. Entre as acusações feitas ao Qatar está a sua proximidade ao Irão.

O bloqueio agravou substancialmente o custo de vida no Qatar, mas o reino não dá mostras de cedências, mantendo, por exemplo, a ambição de realizar um Mundial de Futebol inesquecível, em 2022.

“As reservas financeiras do Qatar têm sido a sua principal arma. É o país mais rico à face da Terra em termos ‘per capita’, o que significa que pode comprar a forma de sair dos problemas e pedir emprestado o que necessita”, diz David B. Roberts, autor do livro “Qatar — Securing the Global Ambitions of a City-State” (2017). “O dinheiro não é tudo — a Venezuela deveria ser um Estado rico e a funcionar bem —, mas combinado com liderança sensata quase sempre resulta.”

A emergência resultante deste contexto de pandemia poderia contribuir para diluir a conflitualidade geopolítica no Golfo Pérsico, mas não é o que acontece. A 27 de março, 31 cidadãos do Bahrain, transportados num voo comercial da Qatar Airways desde o Irão (o país da região mais fustigado pela covid-19) ficaram retidos no aeroporto de Doha (capital do Qatar), impedidos de seguir viagem. O Bahrain é um dos pilares do bloqueio e não permite voos diretos com o Qatar.

Perante a nega, o Qatar — que tinha proposto fazer o transporte gratuitamente, em avião privado — ofereceu alojamento num hotel aos cidadãos do Bahrain.

“A interferência do Qatar na questão dos cidadãos retidos visa ofender o Bahrain”, acusou Khalid bin Ahmed al-Khalifa, ministro dos Negócios Estrangeiros do reino desde 2005 e até janeiro passado. “Doha deve parar de usar uma questão humanitária como a pandemia de covid-19 nos seus planos e conspirações contra países e povos.”

A contenda resolveu-se a 29 de março. Segundo a publicação “Bahrain Mirror”, os 31 cidadãos do Bahrain saíram do Qatar a bordo de um “charter” pago pelo seu país, fretado à companhia Iranian Kish, ou seja, do inimigo Irão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 9 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

“A burocracia tem de morrer com a covid”: profissionais de saúde lusovenezuelanos à espera de poder ajudar

Profissionais de saúde venezuelanos e lusodescendentes a residir em Portugal sentem-se frustrados por não poderem ajudar no combate à pandemia. A barrar-lhes a entrada nos hospitais está uma burocracia complexa que demora a dar respostas

Queriam estar nos hospitais, a trabalhar as horas que fossem possíveis para ajudar a salvar vidas. São profissionais de saúde formados na Venezuela — médicos das mais variadas especialidades, enfermeiros, bioanalistas, farmacêuticos — que, face a dificuldades no país de origem, imigraram recentemente para Portugal para iniciar uma nova etapa. Mas as portas dos hospitais portugueses estão-lhes barradas.

“É frustrante termos vontade de ajudar — porque para isso fomos preparados — e termos de ficar em casa”, desabafa ao Expresso a lusodescendente Raquel Pinheiro, de 40 anos. Na Venezuela, trabalhava como médica anestesista; em Portugal, onde chegou em outubro, ganha a vida a arrumar quartos num hotel em Aveiro. “Uma pandemia é uma situação muito grave. Há muitas pessoas a morrer, nós queremos ajudar, somos profissionais, temos habilitações.”

Como Raquel, dezenas de profissionais de saúde venezuelanos e lusodescendentes desesperam por não ver reconhecidos os seus diplomas académicos. O processo da anestesista — que tem nacionalidade portuguesa — foi iniciado na Direção-Geral do Ensino Superior há meio ano.

“Compreendo perfeitamente que os países tenham as suas regras, e eu tenho de as acolher. Mas eu não vim para viver às custas de ninguém, vim com vontade de trabalhar”, como há décadas aconteceu com o pai, quando rumou à Venezuela aos 17 anos. “Vim com vontade de fazer aquilo para que fui preparada.”

Exame marcado para abril… de 2021

Christian de Abreu, um lusodescendente de 36 anos que vive em Esposende (distrito de Braga), vive a mesma angústia há quase um ano. Filho de madeirenses, estudou Medicina na Universidade dos Andes durante seis anos e meio e exercia na área da Medicina do Trabalho; em Portugal ganha a vida nas obras.

Christian chegou a Portugal em maio passado — a mulher e os dois filhos ficaram no país — e logo iniciou o pedido de reconhecimento das habilitações junto da Direção-Geral do Ensino Superior. O processo foi encaminhado para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra que ficou encarregue de apreciar o seu caso, para o que Christian teve de pagar um emolumento no valor de 900 euros.

Em circunstâncias normais, começaria este abril a prestar as provas exigidas: uma escrita e uma prática de Medicina e um exame de língua portuguesa. Neste contexto de pandemia, os exames foram adiados para novembro próximo, janeiro e abril de 2021.

“Eu estou na disposição de fazer todas as provas que pedirem, mas agora estamos em luta contra o coronavírus”, diz ao Expresso. “Se é preciso demonstrar se sabemos ou não de medicina ponham-nos a trabalhar num hospital supervisionados por médicos portugueses, e eles dirão se temos ou não conhecimento.”

Para além do trabalho na frente de combate, estes profissionais dão outros exemplos do que poderiam estar atualmente a fazer: acompanhar os pacientes que estão em casa, recolher amostras para análise, colaborar nas triagens, trabalhar no atendimento telefónico nas linhas do SNS24.

Espanha aqui ao lado

A 14 de março, Christian enviou uma carta ao Governo em nome de um conjunto de profissionais na sua situação, que estima serem à volta de 100. Nela recordam o repto da Ordem dos Médicos a todos os médicos para que reforçassem o Sistema Nacional de Saúde, dizem “presente” e apelam ao Governo para “que encontre um mecanismo” que agilize o seu processo. O gabinete do primeiro-ministro acusou a receção da carta e encaminhou-a para o gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido.

A viver uma quarentena profissional forçada, muitos destes profissionais vão pensando na possibilidade de se mudarem para outro país da União Europeia. Em Espanha, numa medida excecional de combate à pandemia, o Governo de Pedro Sánchez autorizou a contratação de médicos cujos títulos ainda não estavam homologados, abrindo a porta a 2000 médicos venezuelanos — já exerciam no país cerca de 5000.

A ideia de rumar a Espanha ou Itália já passou pela cabeça de Raquel. A anestesista vive na Gafanha da Boa Hora com o marido venezuelano e os dois filhos gémeos de nove anos. Foi neles que pensou quando decidiu deixar o país onde nasceu e é neles que pensa quando, mais desanimada, sonha em aproveitar a janela de oportunidade aberta pela pandemia e tentar a sua sorte noutro país. “Há dias em que olho para o céu e digo para mim: vou. Mas depois olho para os meus filhos e penso na responsabilidade que tenho”, em especial para com um deles que já foi operado ao coração. “Sinto-me entre a espada e a parede.”

Várias provas de obstáculos

Contactado pelo Expresso, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior explica o procedimento que está em causa. “As entidades competentes para proceder ao reconhecimento de graus académicos, que não sejam alvo de reconhecimento automático (o que ocorre nos graus da área da medicina), são as instituições de ensino superior que conferem o grau ou diploma naquela área de formação.”

Obtida a equivalência por parte de uma escola médica, há outro obstáculo a superar antes de ser possível a inscrição na Ordem dos Médicos: “Demonstrar que sabe comunicar em português (oral e escrito) sendo aprovado na prova de comunicação que a Ordem dos Médicos faz em parceria com o Instituto Camões”, explica ao Expresso fonte da instituição.

Após estarem inscritos na Ordem, os médicos ficam habilitados a exercer como clínicos gerais. Se quiserem exercer uma especialidade, têm de percorrer uma nova prova de obstáculos desta vez dentro da Ordem. “No caso de quererem a equivalência a uma especialidade, a situação é avaliada pela direção do respetivo Colégio” da especialidade.

Em 2019, foram 14 os médicos inscritos na Ordem com formação obtida na Venezuela. Na última década, 2014 foi o ano com menos inscrições (9) e em dois anos (2016 e 2018) foram inscritos 15 médicos venezuelanos. É esse o sonho de Christian também. “Há muita gente parada que poderia ajudar e Portugal beneficiaria muito com isso”, diz. “A burocracia tem de morrer com a covid.”

(IMAGEM PUBLIC DOMAIN PICTURES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Da Indonésia ao México, pulverizar e desinfetar são as palavras de ordem

A desinfestação de locais públicos é uma das frentes do combate ao coronavírus e uma das formas privilegiadas para tentar exterminar o inimigo invisível. Por todo o mundo, ruas, transportes e mercados são borrifados com substâncias desinfetantes. Apresentamos 22 imagens dessas limpezas

RÚSSIA. Neste parque de Stavropol, nem as instalações artísticas escapam às ações de desinfestação EDUARD KORNIYENKO / REUTERS
AFEGANISTÃO. Neste país tão sobrecarregado de problemas, da guerra à pobreza, o coronavírus é “apenas” mais um MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
AZERBAIJÃO. Os autocarros são prioridades das operações de limpeza com desinfetantes, neste caso na cidade de Baku AZIZ KARIMOV / GETTY IMAGES
JORDÂNIA. O sítio arqueológico de Petra, uma das maiores atrações turísticas do mundo, está deserta. Ainda assim, não escapa à desinfestação KHALIL MAZRAAWI / AFP / GETTY IMAGES
ITÁLIA. Na Piazza Duomo, em Milão, todos os cuidados continuam a ser poucos PIERO CRUCIATTI / AFP / GETTY IMAGES
SÍRIA. Num país onde as armas ainda não se calaram totalmente, um homem borrifa uma rua do campo de refugiados palestinianos de Jaramana, em Damasco OMAR SANADIKI / REUTERS
SENEGAL. Protegido da cabeça aos pés, um funcionário municipal desinfeta uma escola corânica, num bairro de Dakar JOHN WESSELS / AFP / GETTY IMAGES
ÍNDIA. Desinfestação na favela de Ravidas Camp, em Nova Deli, onde apesar do isolamento social decretado pelo Governo há muitas pessoas nas ruelas RAJ K RAJ / GETTY IMAGES
INDONÉSIA. Uma mulher que participou no funeral de um familiar vítima de covid-19 é pulverizada com desinfetante, em Jacarta WILLY KURNIAWAN / REUTERS
MARROCOS. Contraste numa rua de Rabat: um funcionário público super-protegido e um sem abrigo totalmente vulnerável ao novo coronavírus FADEL SENNA / AFP / GETTY IMAGES
LÍBANO. Aqui procura-se força para enfrentar as adversidades, mas em tempos de pandemia as igrejas (como esta em Beirute) são locais propícios a contaminações comunitárias HUSSAM CHBARO / GETTY IMAGES
COREIA DO SUL. Chegou a ser o país mais afetado pelo coronavírus, excetuando a China, mas cuidados como este, numa estação de metro em Seul, ajudaram a inverter a curva JUNG YEON-JE / AFP / GETTY IMAGES
PAQUISTÃO. Estas tendas foram montadas nos arredores de Quetta, para receber pessoas regressadas do Irão e que terão obrigatoriamente de cumprir quarentena BANARAS KHAN / AFP / GETTY IMAGES
FRANÇA. Um empregado de uma empresa de limpezas desinfeta os guiadores de bicicletas para alugar, numa rua de Suresnes, perto de Paris THOMAS SAMSON / AFP / GETTY IMAGES
COLÔMBIA. No principal terminal de autocarros de Bogotá, a limpeza dos veículos é feita com equipamento especial JUANCHO TORRES / GETTY IMAGES
MALÁSIA. Bombeiros equipados com mochilas pulverizadoras desinfetam uma rua de Kuala Lumpur LIM HUEY TENG / REUTERS
MÉXICO. Campanha de higienização dos espaços públicos, na cidade de Toluca MARIO VAZQUEZ / AFP / GETTY IMAGES
IRÃO. Voluntários espalham desinfetante no bazar de Tajrish, a norte de Teerão MAJID SAEEDI / GETTY IMAGES
MYANMAR. Desinfestação da área em redor do famoso Pagode Shwedagon, em Rangum YE AUNG THU / AFP / GETTY IMAGES
TURQUIA. Sem clientes nem turistas, a desinfestação do Grande Bazar de Istambul não é descurada UMIT BEKTAS / REUTERS
IRAQUE. Durante o recolher obrigatório em Bagdade aproveita-se para desinfetar as vias públicas THAIER AL-SUDANI / REUTERS
BRASIL. Um agente das forças armadas participa nas atividades de desinfestação, na Estação Central do metropolitano de Brasília ADRIANO MACHADO / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui