No Irão há estrangeiros presos para serem usados como moeda de troca

Há cidadãos estrangeiros ou com dupla nacionalidade, alguns deles académicos, detidos arbitrariamente no Irão em nome de interesses superiores da República Islâmica. Roland Marchal, um sociólogo francês libertado há três meses, partilha a sua experiência com o Expresso

Roland Marchal está em liberdade há 87 dias. E ainda que, por estes dias, a pandemia de covid-19 limite os movimentos daquele que é um dos maiores especialistas franceses na área dos conflitos em África, nada é comparável aos quase dez meses que passou na sinistra prisão iraniana de Evin, nos arredores de Teerão.

“Nunca fui espancado ou torturado”, diz ao Expresso. Mas “o isolamento absoluto era aterrorizante, especialmente no início quando eu não compreendia porque estava detido. Eu preciso da luz do dia, de livros, de saber como estão os meus familiares, adoro o meu trabalho. Tudo isso desapareceu no momento da minha prisão”.

O francês esteve encarcerado entre 5 de junho de 2019 e 20 de março passado, numa ala de alta-segurança controlada pelos Guardas da Revolução.

“Para ser rigoroso, não tenho uma explicação para a minha detenção. O que sei é que depois de ser libertado e deixar o Irão houve uma troca, envolvendo um engenheiro iraniano [Jalal Rohollahnejad] descrito pela imprensa como próximo dos Guardas da Revolução e que tinha sido preso em França em fevereiro de 2019. Dias antes da minha prisão [no aeroporto de Teerão], a perspetiva desse iraniano ser extraditado para os Estados Unidos tinha-se tornado possível”. A detenção de Roland parou o processo.

O francês deslocara-se ao Irão para visitar a namorada, a antropóloga Fariba Adelkhah, cidadã franco-iraniana que, como Roland, é investigadora no prestigiado Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). Ambos planeavam passear pelo país — “ainda estávamos a discutir se iríamos visitar Tabriz ou Mahalat”, diz Roland —, mas ele não passou das formalidades no aeroporto.

Semanas depois de estar preso, viria a descobrir que Fariba também estava detida no mesmo local — ambos acusados de “conluio para ameaçar a segurança interna no Irão” e ela também de “propaganda”.

Mas os processos de ambos tiveram desfechos opostos: enquanto Roland foi libertado em março passado, Fariba foi condenada em maio a seis anos de prisão — a sua dupla nacionalidade de pouco lhe vale, já que a República Islâmica não reconhece esse estatuto.

Na prisão, o francês teve a certeza que os motivos que levaram à sua detenção em nada se deviam à sua conduta. “Durante os interrogatórios, tive a impressão que o objetivo das acusações fantasiosas formuladas contra mim visava, acima de tudo, dificultar as boas relações entre a França de Emmanuel Macron e o Irão de Hassan Rouhani”, recorda.

“Falaram-me a primeira vez do caso do engenheiro iraniano detido em França em meados de janeiro quando eu fiz greve de fome por não me deixarem falar com a minha família, ver o meu advogado e receber novos livros. Explicaram-me que as minhas condições de detenção eram ditadas pelas condições do engenheiro iraniano. Depois confirmaram mais em detalhe durante um interrogatório.”

Pena pesada por contactar com o inimigo

Nos calabouços iranianos há vários académicos estrangeiros ou com dupla nacionalidade que — suspeita-se — estão destinados a funcionar como moeda de troca. Um deles poderá ser o conservacionista iraniano-americano Morad Tahbaz, co-fundador da Persian Wildlife Heritage Foundation, detido em janeiro de 2018 juntamente com mais oito membros da sua organização.

Em novembro passado, a justiça iraniana não foi branda e condenou-o a dez anos de prisão por “contactos com o Governo inimigo dos Estados Unidos”. A 5 de junho, quando se assinalou o Dia Mundial do Ambiente, o Departamento de Estado dos Estados Unidos divulgou um vídeo apelando à libertação de Morad Tahbazen.

Roland Marchal acredita que a detenção de alguns académicos é “uma resposta a prisões que se multiplicaram especialmente nos Estados Unidos desde que Donald Trump chegou ao poder e, acima de tudo, desde o fim da sua participação no acordo sobre o nuclear”.

Um caso recente envolve Sirous Asgari, de 59 anos, um cientista iraniano da área das baterias de iões de lítio, doutorado numa universidade da Pensilvânia. Detido nos Estados Unidos em 2016, acusado de tentativa de roubo de segredos relativos a um projeto de investigação, foi ilibado em finais de 2019, mas continuou preso indefinidamente num centro de detenção para imigrantes na Louisiana.

Só em maio passado, após dizer ao jornal britânico “The Guardian” que temia não sobreviver à covid-19 dado o tratamento “desumano” de que era alvo, foi autorizado a regressar a casa. A sua libertação produziu resultados e a 4 de junho, Teerão abriu as portas da cadeia a Michael White, de 48 anos, um veterano da Marinha dos EUA detido no Irão durante 683 dias. No mesmo dia, no Twitter, o Presidente Donald Trump anunciava a libertação.

Esta estratégia poderá, porém, não ser consensual entre as autoridades iranianas. “Desde 1979 que não é óbvio quem são ‘as autoridades iranianas’”, comenta o francês. “O Presidente Hassan Rouhani [moderado] e seu Governo estão cientes de que estas prisões reduzem a sua capacidade negocial”, no seu caso pessoal com a França e, até certo ponto, com os europeus.

“Talvez seja isso que os Guardas da Revolução que nos prenderam [e que pertencem à ala dura do regime] quiseram em primeiro lugar.” Dificultar o diálogo com o estrangeiro para cerrar fileiras em torno de um poder cada vez mais conservador.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui

As imagens do regresso dos peregrinos à Cova da Iria, com máscara no rosto e a mesma fé de sempre

O Santuário de Fátima acolheu este sábado a primeira missa campal com a presença de peregrinos, após o confinamento decretado pela pandemia de covid-19. A celebração, inserida na Peregrinação Internacional Aniversária, foi presidida pelo bispo auxiliar de Lisboa. Na sua homilia, intitulada “Reaprender a gramática da hospitalidade”, Américo Aguiar defendeu uma economia “que não mate” e apelou à União Europeia para que se afirme como uma “verdadeira comunidade humana”

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PAULO CUNHA / LUSA
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Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui

O outro lado negro da covid-19. As imagens da fome

Na Guatemala e em El Salvador há trapos brancos pendurados nas casas a sinalizar falta de alimentos — na Colômbia são vermelhos. A pandemia de covid-19 confinou em casa milhões de pessoas que viviam com o rendimento do dia. Da Colômbia à África do Sul, há filas de gente desesperada por um prato de comida

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ÁFRICA DO SUL. Um menino carrega embalagens com alimentos, distribuídas pela associação Hunger has no Religion (A fome não tem religião), em Joanesburgo MARCO LONGARI / AFP / GETTY IMAGES
CHILE. Pamela Fernandez está na fila para encher a panela com comida para o seu agregado familiar (“três adultos e quatro crianças”), numa cozinha comunitária de Santiago do Chile IVAN ALVARADO / REUTERS
FILIPINAS. Após ficarem sem trabalho por causa da pandemia, dezenas de pessoas esperam em Paranaque, zona metropolitana de Manila, para receber refeições antes de serem transportados, gratuitamente, para as suas regiões EZRA ACAYAN / GETTY IMAGES
PARAGUAI. Distribuição de alimentos num descampado, na cidade de Luque NORBERTO DUARTE / AFP / GETTY IMAGES
BRASIL. No Rio de Janeiro, o Cristo Redentor reflete um drama atual no país PILAR OLIVARES / REUTERS
COLÔMBIA. Uma bandeira vermelha alerta para a falta de comida nesta casa, em Ciudad Bolivar, a sul de Bogotá RAUL ARBOLEDA / AFP / GETTY IMAGES
EL SALVADOR. Entre os salvadorenhos, as bandeiras que se agitam para sinalizar situações de fome são brancas, como neste barraco, na cidade de Soyapango JOSE CABEZAS / REUTERS
BOLÍVIA. Estas mulheres aguardam a sua vez no exterior de um banco, em El Alto, para levantar um subsídio atribuído pelo Governo às famílias mais vulneráveis AIZAR RALDES / AFP / GETTY IMAGES
EUA. Em Brooklyn, uma fila de pessoas aguarda a sua vez para levar para casa comida gratuita, distribuída no âmbito da iniciativa Campanha Contra a Fome LEV RADIN / GETTY IMAGES
HONDURAS. “Temos fome, ajudem-nos”, suplica este casal, na berma da Avenida das Forças Armadas, em Tegucigalpa ORLANDO SIERRA / AFP / GETTY IMAGES
GUATEMALA. Na berma da autoestrada, em Villa Nueva, a sul da Cidade de Guatemala, acena-se com farrapos brancos para pedir comida JOHAN ORDONEZ / AFP / GETTY IMAGES
BULGÁRIA. Voluntários distribuem sacos com alimentos doados pela organização norueguesa Europe in Focus a moradores carenciados, nos arredores de Sófia JODI HILTON / GETTY IMAGES
PERU. Mulheres de Pamplona Alta, arredores de Lima, mantêm a distância social enquanto esperam pela distribuição de sopa ERNESTO BENAVIDES / AFP / GETTY IMAGES
ARGENTINA. “Quarentena sem fome”, pede-se nesta manifesação, em Buenos Aires, pedindo apoios para os mais vulneráveis AGUSTIN MARCARIAN / REUTERS
ESPANHA. Nesta fila, aguarda-se pela distribuição de comida, na paróquia San Ramon Nonato, em Madrid SUSANA VERA / REUTERS
PORTUGAL. Uma voluntária sai da Cooperativa Mula, no Barreiro, onde funciona uma cantina social, para ir entregar refeições, enquanto uma mulher chega para pedir comida PEDRO GOMES / GETTY IMAGES
ÍNDIA. Duas filas paralelas de pessoas necessitadas serpenteiam dentro das instalações de um centro de distribuição de comida, em Chandigarh RAVI KUMAR / GETTY IMAGES
EQUADOR. Uma funcionária do Ministério da Economia e da Inclusão Social entrega uma caixa com alimentos a uma família carenciada, em La Bota, norte de Quito CRISTINA VEGA RHOR / AFP / GETTY IMAGES
MÉXICO. “Morro de fome, não do coronavírus”, diz esta artesã da cidade de Oaxaca que ficou sem trabalho, num protesto em frente à sede do Governo, na Cidade do México HENRY ROMERO / REUTERS
UCRÂNIA. Pobres e sem-abrigo confortam-se com uma sopa, no centro de Kiev PAVLO GONCHAR / GETTY IMAGES
BANGLADESH. A pandemia acentuou as necessidades, como o revela esta fila de mulheres que agradam pela distribuição de bens, em Daca MAMUNUR RASHID / GETTY IMAGES
VENEZUELA. “Fome!”, lê-se neste grafíti, em Caracas FEDERICO PARRA / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui

Na Mauritânia, o sabão amarelo é herói no combate ao coronavírus. Graças a uma artista portuguesa

A viver na Mauritânia há quase 16 anos, Isabel Fiadeiro criou desenhos para sensibilizar a população para os cuidados a ter face à pandemia. Um pedaço de sabão amarelo, uma chaleira e um vírus “simpático” ajudam a passar as mensagens

“Saboun”, o sabão amarelo de fabrico mauritano ISABEL FIADEIRO

No coração da Mauritânia, há uma pintora e desenhadora portuguesa na primeira linha do combate ao novo coronavírus. Isabel Fiadeiro, de 57 anos — 16 dos quais vividos em Nouakchott —, recorreu à sua arte para aconselhar boas práticas sanitárias em tempos de pandemia e criou “As Aventuras do Saboun no Reino do Corona”. Com estes desenhos explica, de forma lúdica, cuidados a ter no dia a dia, nomeadamente a importância da lavagem das mãos.

A saga tem três protagonistas: Saboun (o sabão amarelo mauritano) e o seu amigo Mak Grech (uma chaleira com um chuveiro de água a sair pelo bico, com nome parecido à designação do objeto no dialeto árabe mauritano, o hassania). E ainda o corona “que embora esteja sempre com cara de zangado é um vírus simpático, com botas de cowboy. E porquê? Porque os vírus fazem parte da vida na terra”, explica a autora ao Expresso.

“O sabão amarelo é feito na Mauritânia e é vendido por todo o país, em pequenas mercearias que existem a cada esquina. Custa muito pouco dinheiro e faz muita espuma. Realcei este sabão que toda a gente pode comprar, que é desprezado por muitos e visto como o sabão dos pobres, mas que é o ideal para lavar as mãos devido à quantidade de espuma que faz.”

Outra vantagem deste produto é que não prejudica o ambiente, realça a portuguesa. “Pode-se deitar a água com sabão na areia ou na terra sem causar danos ambientais.”

Sabão e água, a solução ideal para afastar problemas ISABEL FIADEIRO

“As Aventuras do Saboun” resultaram do autoconfinamento em que Isabel se colocou mal foi confirmado o primeiro caso de covid-19 no país, a 13 de março — até esta sexta-feira, havia um total de 1439, e 74 mortos. Por precaução, antecipou-se às medidas restritivas que o Governo haveria de adotar, fechou a galeria de que é proprietária em Nouakchott e ficou em casa.

Com mais tempo disponível, deu vida às “Aventuras do Saboun”, que foi publicando na sua página no Facebook. O sucesso dos desenhos chamou a atenção e acabaram por ser publicados num jornal oficial mauritano, chegando assim a muito mais gente.

Muitos e bons conselhos em três pequenas tiras de criatividade ISABEL FIADEIRO

Numa segunda frente do combate à pandemia, a portuguesa dinamiza também um projeto de produção de máscaras de algodão, laváveis e reutilizáveis, inspirado num movimento que nasceu no vizinho Senegal. “A ideia era criar máscaras a baixo custo para todos. Contactei uma cooperativa feminina que costuma participar nos mercados organizados pela minha galeria e propus-lhes que produzissem máscaras, uma vez que estavam sem trabalho.”

Isabel garantiu que as costureiras seriam pagas e procurou que as máscaras fossem vendidas a um preço acessível, para chegarem ao maior número de pessoas possível. “Tivemos muita sorte, porque de imediato a Alliance Française e a Agrisahel, uma associação agrária, fizeram-nos encomendas que permitiram fazer face às primeira despesas.”

As encomendas chegam através do Facebook ou do WhatsApp e, depois de prontas, as máscaras são levantadas na ZeinArt, a galeria de Isabel, uma das três existentes na capital mauritana.

Isabel Fiadeiro vive na Mauritânia desde 2004. É proprietária de uma galeria de arte em Nouakchott ISABEL FIADEIRO

A ZeinArt existe desde 2012 e, em tempos normais, funciona como ponto de encontro entre locais e estrangeiros. Ali são realizadas exposições de pintura e artesanato, feitas formações, organizados ateliês com artistas estrangeiros de visita ao país, promovido o intercâmbio de conhecimento.

No jardim da galeria é realizado um mercado onde artesãos dispõem de bancas individuais para vender os seus produtos — é o caso da cooperativa feminina que agora fabrica máscaras e que costuma ali vender sacos e lenços. A cada terça-feira, os artistas deixam na galeria os seus novos trabalhos e recebem o dinheiro das suas obras que foram vendidas na semana anterior.

Na seu espaço, Isabel não se limita a dar visibilidade aos trabalhos de artistas e artesãos. Ela recebe-os, discute os trabalhos, acompanha a fase dos acabamentos e ajuda na comercialização. Leva ao limite quem tem capacidade, vontade e trabalha bem. “O objetivo é mostrar o que se pode fazer localmente de boa qualidade e puxar pelos artistas e artesãos da Mauritânia”, diz a portuguesa.

“E como na Mauritânia estamos um pouco limitados ao nível do design, convido pessoas do Senegal, Mali, Togo para exporem as suas criações. A galeria serve como uma vitrina que a população e os artesãos podem visitar e ver coisas diferentes.”

A boca, uma das portas de entrada do novo coronavírus no corpo humano ISABEL FIADEIRO

Filha de uma espanhola e de um português, Isabel Fiadeiro nasceu em Londres e cresceu entre Lisboa e Portimão. Voltou à capital britânica já depois dos 30 anos para estudar Belas Artes, na Wimbledon School of Arts, estudos que concluiu no ano 2000. A descoberta da Mauritânia — para onde se mudou em definitivo em setembro de 2004 — pôs um ponto final à sua vida nómada.

Diz ter descoberto o país “por acaso”, durante uma viagem, em finais de 2003, que tinha como destino final a Guiné-Bissau. À passagem pelo Parque Nacional do Banco de Arguim, na costa atlântica, a Renault 4L avariou-se e ela ficou com tempo para apreciar o deserto e se apaixonar pelo país.

“Quando cheguei à Mauritânia fiquei tão fascinada que tive vontade de registar tudo o que estava a ver. Era tudo tão diferente e tão novo em relação àquilo que eu conhecia. Comecei a desenhar em cadernos, algo que nunca tinha feito. Nunca tinha desenhado a partir da observação, sempre trabalhei com a imaginação, com a memória.”

Este tipo de arte haveria de a levar a descobrir e a aderir aos Urban Sketchers, uma comunidade global de artistas que desenham locais onde vivem ou que visitam.

Diallo e Mamadou, costureiros em Nouakchott, desenhados por Isabel Fiadeiro ISABEL FIADEIRO

Os desenhos serviram para que se aguentasse no país durante os primeiros tempos. “Nunca pensei viver na Mauritânia e menos ainda abrir uma galeria de arte. Isso aconteceu porque não conseguia viver com o meu próprio trabalho de pintura, a não ser que enveredasse por um trabalho muito comercial que eu não tinha vontade de fazer.”

Olhando para uma experiência de quase 16 anos em solo mauritano, a artista enumera os três fatores que mais a atraíram. “Desde logo a paisagem, o deserto, todo aquele vazio que me fazia pensar na escala humana diante daquela imensidão e na pouca importância que temos.”

Em segundo lugar, “a lentidão”. “Praticamente saí de Londres para me instalar aqui, passei de um ritmo super acelerado para outro muitíssimo lento que, acho, no fim é a solução para tudo. Muitas pessoas perguntam-me se não exportamos e eu digo: ‘Não, o trabalho é manual, eu peço aos artesãos que trabalhem lentamente e bem’. E felizmente a maior parte das coisas vendem-se localmente.”

Por último, os mauritanos. “Ao fim destes 16 anos, tenho muitos amigos mauritanos, pertenço a algumas associações mauritanas que trabalham com a cultura popular. Sinto-me bem integrada.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui

Dez vidas negras que não importaram nos últimos 15 anos nos EUA

George Floyd foi o último de vários afro-americanos que morreram violentamente às mãos da polícia, nos Estados Unidos. Nestes dez casos, ocorridos ao longo dos últimos 15 anos, quase sempre os agentes ficaram impunes

SEAN BELL
A 25 de novembro de 2006, horas antes de se casar, Sean Bell, de 23 anos, foi morto quando o seu carro foi alvejado 50 vezes por cinco agentes da polícia de Nova Iorque. O afro-americano tinha saído do Club Kalua, um clube de strip na zona de Queens, onde celebrara a sua despedida de solteiro com dois amigos. Um deles envolveu-se numa altercação à saída do clube, despertando a atenção da polícia. Os amigos ficaram gravemente feridos. Dos cinco agentes envolvidos, três foram julgados e declarados inocentes. O Club Kalua já não existe: o espaço é agora um local de oração.

OSCAR GRANT
Era 1 de janeiro de 2009 e o metro que chegava de São Francisco vinha apinhado de gente que tinha ido festejar a passagem de ano à cidade. A polícia recebeu um alerta de confrontos e acorreu à estação de Fruitvale, em Oakland. Na plataforma, vários passageiros foram detidos, entre os quais o afro-americano Oscar Grant, de 22 anos. Enquanto o algemavam, deitaram-no no chão, de bruços, com um agente de joelhos sobre o seu corpo. Pouco depois, outro polícia alvejou-o nas costas. O momento foi captado por vários telemóveis de passageiros. O agente foi condenado a dois anos de prisão, mas beneficiou de uma redução de pena. Este caso inspirou o filme “Fruitvale Station — A Última Paragem”, de 2013.

TRAYVON MARTIN
Aproveitando uma pausa nas aulas, Trayvon Martin, de 17 anos, que vivia com a mãe em Miami Gardens (Florida), foi passar uns dias com o pai, em Sanford, no mesmo estado. A 26 de fevereiro de 2012, quando ia pela rua, foi alvejado mortalmente por um vigilante do condomínio que antes tinha alertado o 911 (o 112 europeu) para a presença na área de uma “pessoa suspeita”. Em tribunal, o segurança alegou legítima defesa e foi ilibado.

ERIC GARNER
Estava numa rua de Staten Island, um bairro de Nova Iorque, quando começou a ser rondado por um grupo de polícias que o acusavam de vender ilegalmente cigarros avulsos. No momento da detenção, ofereceu resistência e um agente envolveu-lhe o pescoço com um braço, estrangulando-o. “I can’t breathe” (Não consigo respirar), ouviu-se onze vezes num vídeo que registou o incidente. Perdeu a consciência e foi levado para o hospital, onde foi declarado morto. O caso ocorreu a 17 de julho de 2014 e motivou protestos de rua. A família de Eric Garner recebeu uma indemnização do município de Nova Iorque no valor de 5,9 milhões de dólares (5,2 milhões de euros), mas o agente nunca foi julgado. Apenas alvo de um inquérito disciplinar que concluiu no seu despedimento, cinco anos depois.

MICHAEL BROWN
A 9 de agosto de 2014, Michael Brown, de 18 anos, morreu atingido por seis tiros no peito enquanto lutava com um polícia de 29 anos, em Ferguson, nos subúrbios de St. Louis (Missouri). O agente tinha-se lançado no encalce do jovem, após ser detetado nas câmaras de vigilância de uma loja de conveniência a roubar cigarrilhas. A polícia defenderia que o jovem comportou-se de forma “agressiva” com o agente. Segundo o relato de uma testemunha, Michael teria erguido os braços e pedido para o agente não disparar. “Hands up, don’t shoot”, foi o grito que mais se ouviu nos protestos que se seguiram, em Ferguson, e que degeneraram em violência, pilhagens e muita destruição. O agente nunca foi julgado.

TAMIR RICE
Tinha 12 anos e estava a brincar num parque público de Cleveland (Ohio) quando foi alvejado fatalmente. A polícia tinha sido chamada ao local por um transeunte que alertou para a presença de um homem que não parava de “tirar uma arma das calças e de a apontar às pessoas”. A pistola de Tamir era um brinquedo, uma réplica quase fiel de uma arma de airsoft. Dois polícias chegaram ao local e um deles disparou quase de imediato. Foi despedido, mas não julgado. Este caso aconteceu a 22 de novembro de 2014.

FREDDIE GRAY
Foi preso na rua, sem oferecer resistência, por agentes da polícia de Baltimore (Maryland), a 12 de abril de 2015, que depois justificaram a detenção alegando que ele estava em posse de uma faca. Durante a viagem dentro da carrinha da polícia, ficou inanimado e foi levado para o hospital. Morreu sete dias depois, de lesões na espinal medula. Tinha 25 anos. Seis polícias foram levados a julgamento: uns foram inocentados, outros viram cair a acusação.

PHILANDO CASTILE
Seguia de carro com a namorada e a filha desta, de quatro anos, quando foi mandado parar pela polícia, em Falcon Heights (Minnesota), a 6 de julho de 2016. Enquanto mostrava os documentos, o afro-americano de 32 anos disse ao agente que tinha uma arma no carro. O agente ficou nervoso, gritou repetidamente “não a tire para fora” e disparou sete tiros à queima-roupa, acertando cinco em Castile. O agente, de 29 anos, foi acusado de homicídio e descarga imprudente de arma de fogo. Foi absolvido.

AHMAUD ARBERY
Tinha 25 anos e foi morto a tiro a 23 de fevereiro de 2020, em Glynn County (Geórgia) quando fazia “jogging” perto de casa. Começou a ser perseguido por uma “pickup”. Dentro, dois homens (pai e filho), que moravam na zona, estavam armados. Um carro que seguia atrás filmou o encontro fatal. Uma investigação apurou que, após Arbery ser atingido, um dos homens subiu para cima do seu corpo e disse: “Maldito negro.” Os dois homens foram detidos apenas 74 dias depois, após o vídeo ter sido divulgado e se ter tornado viral nas redes sociais. Ahmaud Arbery tinha 25 anos.

BREONNA TAYLOR
A 13 de março, por volta da meia-noite, três agentes à paisana invadiram a casa de Breonna Taylor, em Louisville (Kentucky) por suspeitas de tráfico de droga. A técnica de emergência de 26 anos morreu durante o tiroteio que se seguiu entre o seu namorado e os agentes, atingida por oito balas. No local, não foi encontrada qualquer estupefaciente.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui