O país mais envelhecido da América do Sul é o que se sai melhor no combate à covid-19

A localização e a demografia do Uruguai podiam condená-lo a tornar-se espaço propício à propagação do novo coronavírus, mas não é o que acontece. Sem ter decretado o confinamento obrigatório, o país que tem quase 1000 quilómetros de fronteira com o Brasil e a população mais envelhecida da América do Sul é aquele que melhor faz frente à pandemia na região. Ao Expresso, um académico uruguaio enumera as razões para esse sucesso

Bandeira do Uruguai sobre o mapa do país VECTORSTOCK

O país que mais êxito tem tido no combate à covid-19 na América do Sul — o Uruguai — é simultaneamente aquele que tem a maior percentagem de população envelhecida, um dos grupos de risco da doença. Dos quase 3,5 milhões de habitantes, 14% têm 65 ou mais anos. Entre os restantes territórios latino-americanos, apenas Porto Rico (pertencente aos EUA) tem uma taxa superior (21%) — Cuba iguala, com 14%.

Ao contrário do que acontece em Espanha e Itália — e Portugal em menor escala —, onde a alta taxa de infeção entre idosos contribuiu para números dramáticos, a quantidade de idosos uruguaios não o parece ter penalizado o país.

Esta quarta-feira, o Uruguai tinha 826 casos de infeção declarados, de que resultaram 23 mortes e 689 pessoas recuperadas. Numa altura em que a América do Sul herdou da Europa o título de epicentro global da pandemia e o Brasil — com quem o Uruguai partilha uma fronteira de 985 quilómetros — é dos casos mais descontrolados a nível mundial, o Uruguai é o país da região que melhor está a lidar com a doença.

“Existem razões estruturais de longa data e razões conjunturais relacionadas com a gestão feita pelo Governo que explicam, conjuntamente, os resultados observados até ao momento no Uruguai”, explica ao Expresso Ignacio Munyo, professor catedrático da Universidade de Montevideu.

“O país tem um sistema de saúde que chega a toda a população, com uma rede de cuidados primários importante e com extensa cobertura domiciliária — algo pioneiro na América Latina — e um sistema de vacinação profundo e antigo que permite aliviar a pressão sobre as unidades de cuidados intensivos.”

Paralelamente à universalidade do sistema de saúde, é crucial neste contexto o facto de 100% da população uruguaia ter acesso a água potável e saneamento básico, condições fundamentais para cumprir com uma das principais regras de proteção individual: a lavagem das mãos. A isto se soma, continua Munyo, “uma infraestrutura em telecomunicações (telefonia celular universal e excelentes ligações à Internet) e capacidade de processamento de dados que viabilizam rapidamente soluções tecnológicas” e possibilitam o acesso à informação e aos conselhos das autoridades.

Presidente sem tempo para estado de graça

Desde que foi detetada a presença do novo coronavírus no país — quatro casos confirmados a 13 de março —, o Uruguai conseguiu conter o surto sem decretar o confinamento obrigatório da população. O Governo fechou fronteiras, suspendeu voos, aulas, cerimónias religiosas, jogos de futebol e concertos, como o Montevideo Rock, mas permitiu que o comércio continuasse de portas abertas.

A 23 de março, o Presidente Luis Alberto Lacalle Pou explicava o porquê de não adotar medidas mais restritivas. “Qualquer pessoa que, de forma séria, proponha o isolamento social deve estar na disposição de aplicar medidas relativas ao crime de desacato, a que corresponde uma pena de prisão. Assim sendo, alguém está disposto a deter e levar diante de um juiz quem sai à rua para ganhar dinheiro, não para a semana, mas para o dia?”

“A cultura cívica e a integração social, juntamente com um Governo que foi muito claro e consistente do ponto de vista da comunicação, contribuiu para que a população do Uruguai obedeça voluntariamente ao pedido de quarentena inicial e distanciamento social posterior e que os cumpra de forma responsável”, comenta Munyo, que dirige o Centro de Estudos da Realidade Económica e Social (CERES).

Uma sondagem realizada a 22 e 23 de março, pela consultora uruguaia Cifra, concluía que 91% dos inquiridos aceitaram voluntariamente a recomendação de não sair de casa salvo em casos de necessidade, 88% diziam respeitar o distanciamento social e 84% tinham deixado de participar em encontros com familiares e amigos — algo antinatura num povo que se distingue por uma forma muito particular de convívio.

Uma das principais tradições culturais uruguaias são as ‘rondas de mate’. Familiares e amigos reúnem-se à volta de uma cuia de mate que vai passando de mão em mão (e a bombilla de boca em boca) para conviver até que a água se esgote. Este legado dos antigos nativos aymaras, quechuas e guaranis é característico de vários países da América do Sul.

No Uruguai, as ‘rondas de mate’ não foram proibidas, apenas desaconselhadas, mas até isso os uruguaios acataram. A taxa de incidência da doença tem-se mantido baixa — 23,78 por 100 mil habitantes (em Portugal é de 326,19) — e o sistema de saúde nunca esteve sob pressão. Esta segunda-feira foram retomadas as aulas presenciais de forma voluntária.

O novo coronavírus não permitiu que o Presidente uruguaio usufruísse dos tradicionais 100 dias de estado de graça. Lacalle Pou tomou posse a 1 de março e, em menos de 15 dias, tinha uma pandemia em mãos para gerir. “O Governo aplicou uma gestão exemplar da crise, ao nível dos melhores do mundo: rapidez na declaração da emergência sanitária, encerramento de fronteiras e suspensão de aulas e eventos público”, diz ao Expresso o especialista.

Resolver o assunto ‘à maneira uruguaia’

À frente de uma aliança de centro-direita de cinco partidos, Lacalle Pou, de 46 anos, não caiu na tentação de fazer tábua rasa das políticas de esquerda adotadas nos últimos 15 anos, anos em que o Uruguai foi liderado por Tabaré Vázquez (2005-2010 e 2015-2020) e José Mujica (2010-2015).

Apostou numa estratégia de equilíbrio entre duas necessidades imprescindíveis — combater a pandemia e proteger a economia —, desafiando apelos para que impusesse o confinamento obrigatório, inclusive por parte do seu antecessor, Tabaré Vázquez, médico de formação.

“Pedimos às pessoas que não saiam de casa se não for necessário”, reforçou a 2 de abril. “Não façam viagens ao interior do país, há muitos lugares onde o vírus não chegou. Vamos fazer isto à maneira uruguaia, com solidariedade, e pensando no bem comum.”

Nesse mesmo dia 2 de abril, no Parlamento, deputados afetos ao Governo e à oposição uniram-se para aprovar o ‘Fundo Solidário Covid-19’, financiado por contribuições obrigatórias de todos os funcionários públicos com salários acima dos 120 mil pesos uruguaios (2500 euros). Presidente, ministros e deputados sofrem um corte de 20%.

“O Uruguai possui a única democracia plena da região, com um sistema político responsável que dialoga permanentemente, o que se traduz em estabilidade social, que é o essencial para que tudo funcione. Somos uma exceção a nível regional”, concluiu o professor uruguaio.

“No último ano, antes do surgimento do novo coronavírus, o mundo encarava a América Latina como uma região extremamente instável do ponto de vista social. Imagens de multidões violentas nas ruas da Cidade do México, Caracas, São Paulo, Buenos Aires, Bogotá, Santiago, Lima e Quito correram o mundo. Não foi o caso de Montevideu.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui