Dar voz à causa da pobreza com Bono Vox por inspiração

A pandemia de covid-19 pode condenar 100 milhões de pessoas a uma vida de pobreza extrema. “É fundamental que qualquer futura vacina seja disponibilizada para todos os países ao mesmo tempo”, alerta ao Expresso um voluntário português na ONE, a organização cofundada por Bono Vox, o carismático vocalista dos U2 envolvido há décadas no combate às desigualdades sociais

Para a esmagadora maioria dos portugueses, €1,70 no bolso não é dinheiro com que se conte para fazer grandes compras — são trocos. Para mais de 700 milhões de pessoas em todo o mundo, contudo, é todo o dinheiro que possuem para (sobre)viverem durante um dia.

“As Nações Unidas definem como pobreza extrema uma situação em que alguém vive com menos de 1,90 dólares por dia (cerca de €1,70)”, explica ao Expresso Rúben Castro, madeirense de 29 anos que dedica parte do seu tempo ao combate à pobreza. Para uma família de quatro, o orçamento diário não vai além de €6,80. “Em março de 2020 havia 737 milhões de pessoas a viver nestas condições”, continua. “Isto corresponde a cerca de 10% da população do planeta.”

Rúben Castro trabalha como voluntário na ONE, organização cofundada pelo músico Bono Vox, carismático vocalista dos U2, que pugna pela erradicação da pobreza extrema no mundo. A batalha ia no bom caminho, com mais de 1000 milhões de pessoas resgatadas de vidas miseráveis desde 2000.

A esse ritmo, a ONE acredita que seja possível sonhar com o fim da pobreza extrema em 2030. “Era, era possível”, corrige Rúben, “antes da pandemia”. O Banco Mundial fez contas e, após considerar diferentes cenários de evolução da pandemia, estima que a doença possa empurrar mais 71 a 100 milhões de pessoas para um quotidiano de pobreza extrema.

Do total de 737 milhões de pessoas em situação de pobreza extrema antes da pandemia, cerca de 420 milhões estavam na África Subsariana. Segundo o Banco Africano de Desenvolvimento, a pandemia pode fazer o número aumentar entre 28 e 49 milhões.

Trinta e cinco anos depois do “Live Aid” — o megaconcerto televisionado por mais de 1000 milhões de espectadores, a 13 de julho de 1985, com o qual o mundo do rock tentou sensibilizar para a fome em África —, o continente permanece vulnerável ao problema.

Então um dos artistas a subir ao palco do Estádio de Wembley, em Londres (Reino Unido), repleto com 72 mil pessoas, hoje, aos 60 anos, Bono continua a travar a luta através da ONE, batizada com o título de um dos mais emblemáticos temas da banda irlandesa, lançado em 1991 no álbum “Achtung Baby”.

One”, a canção, fala de amor, perdão e de uma vida que tem de ser aproveitada. O enorme êxito do tema resgatou os U2 de uma fase decadente e relançou a banda para uma nova vida de êxitos. Com o mesmo espírito, a ONE luta por providenciar dignidade aos mais pobres entre os pobres.

Rúben Castro, um madeirense de 29 anos, desempenha o cargo de “jovem embaixador da ONE”, desde novembro de 2019 ONE

“Desde miúdo que acho que o lugar onde nascemos não devia definir a forma como vivemos. As desigualdades sociais, o facto de morarmos num país em guerra ou num sítio onde o elevador social muitas vezes não funciona ou não existe, tudo isto continua a chatear-me imenso”, confessa Rúben Castro. “Integrar a ONE é uma maneira de lutar e de dar o meu contributo para que esse impacto nas pessoas seja minimizado.”

Além da pobreza extrema, a outra grande frente de combate da ONE é a erradicação de doenças tratáveis. O português diz que é importante “não repetir os erros do passado”, nomeadamente não desguarnecendo o processo de vacinação.

Em 2019, recorda, durante o surto de ébola na República Democrática do Congo, o número de pessoas que morreram de sarampo foi o dobro das mortes de Ébola. “Isso aconteceu devido à interrupção dos cuidados de saúde e dos programas de vacinação de rotina.”

Numa campanha recente em que Rúben deu a cara, a ONE alertou para um aspeto crucial do combate à pandemia: “É fundamental que qualquer futura vacina para a covid-19 seja disponibilizada a todos os países ao mesmo tempo”, defende. “A igualdade deve estar no âmago da resposta global a esta crise. Nenhum de nós estará em segurança até que todos estejamos seguros.”

Aliviar a pressão sobre os países mais vulneráveis passaria também por um perdão de dívida. “Mesmo os melhores sistemas de saúde do mundo tiveram e continuam a ter dificuldade em fazer face a esta pandemia. Imagine-se nos países menos desenvolvidos… o perdão da dívida ajudaria a fazer face à pandemia e à recuperação económica. Se não tiverem de gastar dinheiro a pagar dívidas ou empréstimos, podem focar-se nessas áreas.”

Rúben colabora com a ONE desde novembro passado, a partir do escritório da organização em Bruxelas, cidade onde — arrumada a licenciado em Ciências da Cultura na Universidade da Madeira — o português está a estagiar no âmbito de um mestrado em jornalismo.

O polo da ONE na capital belga está encarregue dos contactos com a União Europeia, que é o maior doador a nível mundial. Por essa razão, a organização acompanhou atentamente as recentes negociações sobre o quadro orçamental para o período 2021-2027 sem, no fim, deixar de sentir um certo desapontamento.

“É verdade que se trata de um acordo histórico para a Europa, mas não é um bom acordo para os parceiros da UE”, comenta Rúben. “O orçamento para ações externas diminuiu em quase €20 mil milhões, uma redução de 17% face à proposta da Comissão de maio passado.” Para a ONE, investir nos parceiros da UE é não só a coisa certa a fazer como também a mais inteligente.

“Estamos desapontados. A pandemia demonstrou que só através da união e de um trabalho conjunto é possível resolvermos os desafios que enfrentamos a nível mundial. O acordo mostra falta de ambição por parte da UE e um sinal preocupante de falta de solidariedade global face ao momento atual. A longo prazo, estes cortes irão custar mais à Europa.”

Fundada em 2004, a ONE tem escritórios em Abuja, Berlim, Bruxelas, Dacar, Joanesburgo, Londres, Nova Iorque, Otava, Paris e Washington. Não aceita doações de governos nem de particulares: financia-se recorrendo à filantropia (como as Fundações Bill e Melinda Gates e a Bloomberg Philanthropies), de empresas como a Google e a Coca-Cola e de personalidades com influência política. A sua presidente é Gayle E. Smith, antiga assessora dos presidentes norte-americanos Bill Clinton e Barack Obama.

“A ONE não pede contribuições. No máximo, pede que as pessoas assinem as suas petições para que, quando levarmos propostas à Comissão Europeia ou a outros atores, possamos mostrar que tempos pessoas connosco e dizer que determinado assunto é importante para estas pessoas, ‘por isso oiçam-nas’.”

Rúben considera que, para ser escolhido como “jovem embaixador” da ONE, foi importante o seu conhecimento dos meandros do Parlamento Europeu — onde trabalhou como assistente de uma eurodeputada portuguesa —, a experiência enquanto dirigente na associação académica na Madeira, voluntariados em diferentes áreas e a capacidade de trabalhar e de saber estar em equipa, que desenvolveu com a prática do andebol.

Em Portugal deixou uma carreira como semiprofissional no Madeira SAD, mas o bichinho do andebol acompanhou-o na sua aventura belga. Ingressou no United Brussels Handball Club e já celebrou uma subida de divisão. “Desde miúdo tive sempre uma agenda muito preenchida, fazia imensas coisas ao mesmo tempo, estudava e trabalhava aos fins de semana. Esta maneira de gerir o tempo e de gerir prioridades foi importante”, diz o ponta-esquerda.

De Rúben, a ONE espera que seja um rosto e uma voz no movimento global de sensibilização para o problema da pobreza. “Nos seus concertos, o Bono faz questão de falar do tema. Numa escala um bocadinho não comparável”, conclui com humor, “olhando para ele e para mim, ambos damos voz à causa.”

(FOTO PRINCIPAL O músico irlandês Bono Vox é o principal mentor e inspirador da campanha ONE que busca o nome a um grande êxito dos U2 KAY NIETFELD / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui

John R. Lewis High School, uma inspiração para as próximas gerações

Uma escola secundária do estado da Virginia substituiu o nome de um antigo general da Confederação pelo de um ícone da luta contra a discriminação racial. “A vida extraordinária de John Lewis e a sua defesa da justiça racial serão uma inspiração para os nossos estudantes”, diz a promotora da alteração

No próximo ano letivo, haverá uma “nova” escola nos Estados Unidos. Fisicamente já existe — situa-se em Springfield, no estado da Virginia —, mas acaba de mudar de nome numa reação direta a um momento sensível do país.

A até agora Escola Secundária Robert E. Lee passará a chamar-se Escola Secundária John R. Lewis. Abandona o nome de um antigo general da Confederação (a união política pró-esclavagista do século XIX) e adota o de um ícone da luta pelos direitos dos negros na América.

À direita na foto, John R. Lewis é, juntamente com Martin Luther King Jr., um dos líderes de uma marcha entre Selma e Montgomery, no estado do Alabama, em 1965 STEVE SCHAPIRO / ACADEMY OF ACHIEVEMENT

A decisão foi tomada na quinta-feira, pelo Conselho Escolar do Condado de Fairfax, que reuniu à distância e acolheu a proposta por unanimidade. Aconteceu seis dias após a morte do ativista e numa altura em que várias cidades norte-americanas estão tomadas por protestos anti-racismo que têm visado símbolos (maioritariamente estátuas) associados à escravatura.

“O nome Robert E. Lee está para sempre ligado à Confederação, e os valores confederados não estão alinhados com a nossa comunidade”, reagiu Tamara Derenak Kaufax, que fez a proposta, em fevereiro. “Creio que a vida extraordinária de John Lewis e a sua defesa da justiça racial serão uma inspiração para os nossos estudantes e para a nossa comunidade nas próximas gerações.”

Numa audição pública sobre a proposta de mudança de nome da escola, na quarta-feira à noite, um membro da comunidade, citado pelo jornal “USA Today”, afirmou: “A mudança começa nos níveis mais baixos de nós próprios, depois da nossa comunidade e depois do país. Devemos aos pioneiros da história continuar a lutar pela igualdade de todas as formas que pudermos.”

Um dos 13 “Cavaleiros da liberdade”

Nascido em 1940, em Troy (estado do Alabama), John Lewis foi um pioneiro no combate ao racismo nos EUA. Aos 17 anos conheceu Rosa Parks e aos 18 o carismático Martin Luther King.

Em 1961, tinha 21 anos, foi um dos 13 “Cavaleiros da liberdade” — sete brancos e seis negros — que ousaram percorrer de autocarro o Sul dos Estados Unidos, onde as leis antissegregação encontravam resistência para ser aplicadas.

Em 1965, participou nas três marchas ao longo de uma autoestrada que ligava as cidades de Selma e Montgomery, no Alabama (87 km), iniciativa que levaria à aprovação da Lei dos Direitos de Voto, uma conquista histórica do movimento negro.

A primeira marcha ficaria conhecida como “Domingo Sangrento” (“Bloody Sunday”), em virtude da violência policial que se fez sentir sobre os manifestantes desarmados. Em março passado, já com a saúde debilitada, Lewis marcou presença em Selma para assinalar o 55º aniversário dos acontecimentos e deixou um conselho: “Votem como nunca votaram antes”.

John Lewis foi congressista durante mais de três décadas, eleito pela primeira vez em 1987, pelo estado da Georgia, abraçando causas que desafiassem a segregação, a discriminação e a injustiça — o combustível do movimento “Black Lives Matter” que está nas ruas norte-americanas.

Em 2011, Barack Obama — o primeiro Presidente negro na história dos EUA — atribuiu a John Lewis a mais alta honraria civil nos Estados Unidos, a Medalha Presidencial da Liberdade. Morreu a 17 de julho, aos 80 anos, de cancro no pâncreas.

(FOTO PRINCIPAL John R. Lewis ACADEMY OF ACHIEVEMENT)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui

A janela está a fechar-se e a Europa ainda não sabe como responder à anexação israelita da Palestina

Onze ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia — incluindo o português — querem que Bruxelas elabore um documento com opções de resposta ao plano de Israel para anexar partes da Cisjordânia palestiniana. “É importante haver clareza sobre as implicações legais e políticas da anexação”, alertam

Há cerca de 30 anos, comentando a postura da União Europeia durante a Crise do Golfo — desencadeada pela invasão iraquiana do Kuwait, em 1990 —, Mark Eyskens, então ministro dos Negócios Estrangeiros da Bélgica (e posterior primeiro-ministro), afirmou que a Europa era “um gigante económico, um anão político e um verme militar”.

Nos dias que correm, a questão da Palestina talvez seja dos assuntos onde essas dimensões são mais evidentes. A União Europeia (UE) é um importante parceiro económico de israelitas e palestinianos mas, em matéria política, revela-se incapaz de tomar iniciativas que contribuam para travar o desgaste contínuo da perspetiva de paz entre os dois povos.

Essa erosão pode conhecer novo capítulo se Israel for avante com a intenção de estender a sua soberania a até 30% da Cisjordânia ocupada, e em relação à qual ainda não se conhece uma posição de força por parte dos europeus.

“Falta uma estratégia política comum contra a violação contínua dos direitos humanos do povo palestiniano e, neste caso específico, de uma nova anexação ilegal de território palestiniano”, diz ao Expresso Giulia Daniele, investigadora no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, de Lisboa.

Recentemente, 11 ministros dos Negócios Estrangeiros europeus — entre os quais o português Augusto Santos Silva — deram conta desse desnorte e enviaram uma carta conjunta a Josep Borrell, chefe da diplomacia dos 27. Acreditam que Israel pode ser dissuadido de avançar com a anexação se for alvo de medidas punitivas e solicitaram uma lista de ações possíveis.

“Gostaríamos de ver um documento, elaborado em estreita consulta com a Comissão, que forneça uma visão geral das relações entre a UE e Israel, uma análise das consequências legais da anexação, bem como uma lista de possíveis ações como resposta”, lê-se na missiva enviada a 10 de julho.

“É importante haver clareza sobre as implicações legais e políticas da anexação”, continuam. “Compreendemos que este é um assunto sensível e que o tempo é importante, mas o tempo também é curto. Estamos preocupados que a janela para impedir a anexação se feche rapidamente.”

Para a UE, a anexação constitui a machadada final na solução de dois Estados (para dois povos), que continua a marcar a sua narrativa, ainda que no terreno essa seja uma realidade cada vez mais difícil de acontecer.

“Continuar a falar sobre a solução de dois Estados é irrelevante e fora do contexto atual, que demonstra como isso já não é possível nem praticável sob nenhum ponto de vista”, defende a investigadora do ISCTE. “Pelo contrário, analisar com mais profundidade os factos no terreno e levar em maior consideração o que está a acontecer dentro das sociedades israelita e palestiniana poderia ajudar a UE a consolidar o seu papel no debate atual.”

Uma questão moral e legal

Se Israel concretizar a anexação — estendendo a sua soberania às áreas dos colonatos judeus e às terras férteis do Vale do Jordão —, na prática uma Palestina independente ficará condenada a um rendilhado de pequenos territórios não contíguos que impossibilita um Estado viável.

Para lá da dimensão moral, a perspetiva de Israel tomar terras palestinianas é também uma questão legal, já que viola o direito internacional. “Qualquer violação do direito internacional deve ser condenada”, defende Giulia Daniele.

“Se essa prática continuar, é necessário tomar decisões para contrariá-la, como, por exemplo o uso de sanções, que já aconteceu em muitos outros contextos históricos. A UE deve ter a coragem de propor uma política própria no sentido de influenciar as decisões da agenda internacional e de condenar abertamente a continuação do regime de apartheid” que visa os palestinianos.

Além de Portugal, assinaram a carta enviada ao Alto Representante da UE para a Política Externa e de Segurança a Bélgica, Irlanda, Itália, França, Malta, Suécia, Dinamarca, Luxemburgo, Holanda e Finlândia.

Do rol, apenas Malta e Suécia reconhecem o Estado da Palestina — fizeram-no em 1988 e 2014, respetivamente. Entre os 27, há outros países que também reconhecem a Palestina a nível bilateral, mas alguns comportam-se hoje de forma contrária à posição que assumiram no passado.

É o caso da Hungria, que reconheceu a independência da Palestina em 1988 (antes de aderir à UE) e hoje, com o nacionalista e eurocético Viktor Orbán no poder, é um dos mais sólidos defensores dos interesses de Israel, dificultando dessa forma a obtenção de um consenso na UE.

A voz de 1080 deputados

“Todos sabemos que o papel dominante sempre foi e continua a ser o da política norte-americana, mas, ainda mais neste momento de protestos tanto em Israel como nos Estados Unidos, é importante pressionar a UE a avançar finalmente com um objetivo muito simples: a aplicação do direito internacional, ao abrigo do qual o plano de anexação é ilegal.”

Recentemente, duas tomadas de posição conjuntas a nível internacional foram apelaram nesse sentido. A 23 de junho, 1080 deputados de 25 países europeus — entre os quais cinco deputados portugueses — endereçaram uma carta aos governos e líderes europeus. “A aquisição do território pela força não tem lugar em 2020 e deve ter consequências proporcionais”, defenderam.

Uma semana antes, 47 peritos das Nações Unidas na área dos Direitos Humanos adotaram uma posição pública no mesmo sentido: “A manhã seguinte à anexação será a cristalização de uma realidade já de si injusta: dois povos a viver no mesmo espaço, governados pelo mesmo Estado, mas com direitos profundamente desiguais. Esta é uma visão de um apartheid do século XXI”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui

Seis explosões em 12 dias. Quem anda a tramar o regime dos ayatollahs?

Uma sucessão de explosões e incêndios, uma das quais numa das mais importantes centrais nucleares iranianas, desencadeou a especulação: meros acidentes ou atos de sabotagem?

1 Que tem acontecido de estranho no Irão?

E0m menos de duas semanas, várias explosões e incêndios geraram a impressão de que a República Islâmica estava ‘sob ataque’. Os incidentes começaram a 26 de junho, quando foi registada uma explosão no complexo de produção de mísseis de Khojir, a leste da capital. No mesmo dia, a cidade de Shiraz ficou às escuras após problemas na central elétrica. No seguinte dia 30, uma fuga de gás seguida de explosão matou 19 pessoas numa clínica médica a norte de Teerão. A 2 de julho, a tensão subiu a pique quando uma explosão atingiu a central nuclear de Natanz, estrutura crucial para o programa nuclear do país. No dia 4, um incêndio deflagrou numa central elétrica em Ahvaz (sudoeste do país), área predominantemente árabe sunita (o Irão é persa xiita) com um histórico de dissidência e violência contra o regime. Em seguida, dia 7, uma explosão atingiu uma fábrica em Kahrizak, sul de Teerão, provocando dois mortos e três feridos. Tudo aconteceu numa altura em que a economia iraniana está muito debilitada, em virtude das sanções internacionais, e a sociedade cada vez mais fustigada pelas dificuldades económicas e pela pandemia de covid-19, que já infetou mais de 250 mil pessoas e matou mais de 12 mil.

2 Há alguma suspeita de sabotagem?

Enquanto alguns incidentes parecem resultar de negligência ou manutenção deficiente de infraestruturas (num país que se ressente cada vez mais das sanções internacionais), um caso concreto parece ter sido obra de profissionais — a explosão na central de Natanz, principal complexo de enriquecimento de urânio no Irão, 250 quilómetros a sul de Teerão. Com franqueza surpreendente, o regime admitiu uma falha na segurança naquela que é uma das instalações mais sensíveis do país e um dos sítios que estão sob vigilância da Agência Internacional de Energia Atómica. Segundo Teerão, a explosão resultou de uma bomba potente colocada no interior das instalações. A explosão provocou “danos significativos” em laboratórios subterrâneos destinados à montagem e testagem de centrifugadoras recém-desenvolvidas (que aceleram o processo de fabrico de uma bomba atómica). “É possível que este incidente vá abrandar o desenvolvimento e a expansão de centrifugadoras avançadas”, admitiu Behrouz Kamalvandi, porta-voz da Organização de Energia Atómica do Irão. “Havia equipamentos sofisticados e dispositivos de medição de precisão que foram destruídos ou danificados.”

3 Quem está por detrás do ataque em Natanz?

Uma resposta possível pode ser encontrada nas entrelinhas de algumas reações ao que tem acontecido no Irão, nomeadamente em Israel, a única potência nuclear do Médio Oriente. Num encontro com jornalistas, o ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou: “Temos uma política de longo prazo… não permitir que o Irão tenha capacidade nuclear”, disse Gabi Ashkenazi. “Este regime, com esse tipo de capacidade, constitui uma ameaça existencial para Israel. Nós tomamos medidas, é melhor não falar delas.” Aos microfones da rádio Kan, sem negar o envolvimento de Israel no caso de Natanz, também o ministro da Defesa contribuiu para a intriga. “Nem todos os incidentes que acontecem no Irão estão necessariamente relacionados connosco”, disse Benjamin Gantz. Israel segue de muito perto o que se passa no Irão e, em 2018, a Mossad levou a cabo uma operação no centro de Teerão que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu considerou “uma grande conquista dos serviços secretos”. De um armazém em ruínas foi roubada meia tonelada de informação secreta sobre o programa nuclear iraniano, incluindo 110 mil documentos (em papel ou gravados em CD), vídeos e fotografias.

4 O programa nuclear já tinha sido sabotado?

Sim, especialmente nos anos que antecederam a assinatura, em 2015, do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano. Na altura uma campanha de ataques sistemáticos atribuída aos serviços secretos dos Estados Unidos (CIA) e em especial de Israel (Mossad) contribuiu para atrasar o desenvolvimento do programa. Essa campanha desenvolveu-se em múltiplas frentes: ações de sabotagem junto de instalações nucleares e de produção de mísseis; assassínio à bomba, a tiro ou por envenenamento de cinco cientistas especializados na área do nuclear, entre 2007 e 2015; guerra cibernética com recurso ao vírus Stuxnet — que se crê tenha sido desenvolvido a mando de norte-americanos e israelitas — para infetar e danificar computadores e enganar as redes de compras iranianas, levando-as a adquirir equipamentos defeituosos. Em 2010, o alvo deste vírus foi precisamente a central nuclear de Natanz, onde milhares de centrifugadoras foram então inutilizadas. Os ciberataques são uma das frentes desta guerra secreta que envolve o Irão e quem quer destruir o seu programa nuclear. Em abril deste ano, o regime de Teerão tentou atingir a rede de abastecimento de água de Israel com uma operação desse tipo.

5 O programa nuclear do Irão é um alvo. Porquê?

Porque apesar de o Irão garantir que quer energia nuclear para aplicá-la em fins civis e pacíficos, na comunidade internacional suspeita-se que o programa tenha natureza militar. A 14 de julho de 2015, com Barack Obama na Casa Branca, seis potências internacionais — EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha — assinaram com o Irão um acordo que submete o programa nuclear a vigilância internacional mediante o gradual levantamento das sanções. O acordo mereceu a oposição de pesos-pesados do Médio Oriente: Israel (que o considera uma ameaça existencial) e Arábia Saudita (arquirrival do Irão). A 8 de maio de 2018, pressionado por estes aliados, Donald Trump ordenou a retirada unilateral dos EUA do acordo e a reintrodução das sanções como estratégia de “máxima pressão” sobre Teerão. O Irão manteve-se no acordo mas foi relaxando o seu cumprimento, começando a enriquecer mais urânio do que a quantidade permitida e a desenvolver centrifugadoras mais sofisticadas. A sua paciência está assente na esperança de que as eleições de novembro nos EUA mudem o inquilino da Casa Branca.

(IMAGEM CBS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui

Uigures pedem à justiça internacional que investigue possível “genocídio demográfico” na China

Membros exilados desta minoria muçulmana chinesa enviaram ao Tribunal Penal Internacional provas de genocídio e crimes contra a Humanidade, cometidos pelas autoridades chinesas na província de Xinjiang. Querem que o TPI abra uma investigação, como fez em novembro passado em relação a outra minoria muçulmana perseguida: os rohingya

Dois grupos de ativistas uigures no exílio fizeram chegar ao Tribunal Penal Internacional (TPI) um conjunto de provas de genocídio e crimes contra a Humanidade cometidos na província chinesa de Xinjiang contra a minoria muçulmana do país.

Segundo o diário britânico “The Guardian”, os queixosos alegam que milhares de uigures foram deportados ilegalmente do Tajiquistão e do Camboja para Xinjiang, onde foram presos, torturados e sujeitos a medidas forçadas de controlo de natalidade.

No final de junho, uma investigação da agência noticiosa Associated Press (AP) denunciou a existência de “medidas draconianas” por parte das autoridades de Pequim, visando “reduzir as taxas de natalidade entre uigures e outras minorias, no âmbito de uma ampla campanha para conter a sua população muçulmana”.

UMA ESPÉCIE DE “GENOCÍDIO DEMOGRÁFICO”

A investigação da AP — feita com base em estatísticas governamentais, documentos oficiais e entrevistas a 30 ex-detidos e a um antigo responsável por um campo de detenção — apurou que as autoridades chinesas obrigam as mulheres uigures a testes de gravidez, forçam a colocação de dispositivos intrauterinos, submetem-nas a métodos de esterilização e obrigam-nas até a abortar.

“A campanha que decorre desde há quatro anos na distante região ocidental de Xinjiang está a conduzir àquilo que alguns peritos qualificam como uma espécie de ‘genocídio demográfico’”, escreveu a AP, motivando um alerta da organização de direitos humanos Amnistia Internacional.

Com esta iniciativa junto do TPI, os uigures tentam, em última instância, implicar o próprio Presidente Xi Jinping no planeamento e condução de uma campanha generalizada e sistemática de violação dos seus direitos humanos.

O processo foi desencadeado, esta segunda-feira, por advogados com sede em Londres. Foi motivado por um precedente recente. A 14 de novembro de 2019, os juízes do TPI aprovaram a realização de “uma investigação à situação [dos rohingya] no Bangladesh e Myanmar”.

OPORTUNIDADE NÃO PODE SER DESPERDIÇADA

Num caso e noutro, nem a China nem Myanmar — os dois regimes acusados de perseguir uigures e rohingya, respetivamente — são países signatários do TPI. Mas como alguns crimes aconteceram fora dos seus territórios — no Tajiquistão e no Camboja (contra os uigures) e no Bangladesh (sobre os rohingya) —, os advogados acreditam que o TPI tem competência para apreciar o caso.

“Durante muito tempo assumiu-se que nada poderia ser feito por parte do TPI. Agora há um caminho legal claro para que se faça justiça aos milhões de uigures que alegadamente são perseguidos pelas autoridades chinesas. Esta oportunidade não pode ser desperdiçada”, afirmou Rodney Dixon, um dos advogados envolvidos no processo dos uigures, citado por “The Guardian”.

Xinjiang fica no noroeste da China e faz fronteira com sete países, maioritariamente muçulmanos: Mongólia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão, Paquistão e Índia. Ali vivem cerca de 25 milhões de pessoas, entre as quais cerca de um milhão de uigures, que Pequim mantém sob forte vigilância e sujeitos a experiências de engenharia social.

(FOTO Uma máscara de protesto icónica entre a minoria uigur: a mão da China cala um rosto pintado com a bandeira uigur AHVAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui