Plano de anexação é machadada final no sonho palestiniano

Israel quer partes da Cisjordânia. Palestinianos e israelitas dizem ao Expresso como travar esse plano

INFOGRAFIA DE SOFIA MIGUEL ROSA


Desde que Israel declarou a independência, em 1948, não passou uma década sem que se envolvesse em conflito com os vizinhos árabes. Às guerras israelo-árabes sucederam-se duas intifadas palestinianas e, mais recentemente, três ofensivas na Faixa de Gaza. Mas naquela que parece ser a disputa mais insolúvel do mundo — a questão da Palestina —, as principais armas não são as balas, antes as pessoas e as terras que ocupam.

Em 1917, quando o Governo britânico prometeu ao povo judeu um “lar nacional” (Declaração Balfour), os judeus eram 10% da população da Palestina e detinham 2% das terras. Hoje, há sensivelmente tantos judeus como árabes na Palestina histórica, mas os primeiros controlam 85% do território.

Em breve, a luta pela terra pode abrir novo capítulo. Desde quarta-feira, 1 de julho, o Governo de Israel tem carta branca para anexar formalmente 30% do território palestiniano que, na prática, já ocupa. Estão em causa áreas de colonatos e o vale do Jordão. O plano foi uma promessa eleitoral in extremis do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu após dois atos eleitorais inconclusivos que mergulharam Israel num impasse político durante mais de um ano.

Reconhecimento e sanções

A concretizar-se, será o prego final no caixão da fórmula “dois Estados para dois povos”, que a comunidade internacional mantém como solução para o conflito. A Palestina ficará condenada a ser um rendilhado de territórios não contíguos onde só por magia será possível erguer um Estado viável.

Num artigo recente no jornal britânico “The Guardian”, o historiador israelita Avi Shlaim, professor emérito na Universidade de Oxford (Reino Unido), apelou ao reconhecimento internacional da Palestina. O perito explica ao Expresso porque o fez: “Os palestinianos têm direito à autodeterminação. Quase todos os governos ocidentais apoiam a solução de dois Estados, mas não reconhecem a Palestina. Não tem lógica. Israel não será dissuadido de prosseguir com a anexação com meras expressões de reprovação. É necessário ameaçar com sanções. A União Europeia tem uma influência real, mas, infelizmente, está dividida e torna-se impotente.”

Tal como aconteceu quando a Administração Trump reconheceu Jerusalém como capital de Israel (2017) e a soberania israelita sobre os Montes Golã (2019), este plano desencadeou as habituais condenações standard. A alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michele Bachelet, foi das mais inconformadas. “A anexação é ilegal. Ponto. Qualquer anexação. Seja de 30% da Cisjordânia, seja de 5%”, disse esta semana. “As ondas de choque da anexação durarão décadas e serão extremamente prejudiciais para Israel e palestinianos, mas ainda há tempo para reverter a decisão.”

No passado, várias ilegalidades israelitas à luz do direito internacional — construção de colonatos, do muro de separação, apropriação de terras, transferência forçada de populações — suscitaram reações de condenação violentas. Mas nenhuma dissuadiu Israel de continuar com o projeto de colonização.

Ocupação é lucrativa

“O reconhecimento da Palestina é importante, mas não é suficiente. Sem a responsabilização de Israel, não é possível resolver a situação”, diz ao Expresso a palestiniana Nour Odeh, de 42 anos. “A ocupação é economicamente lucrativa e não tem custos políticos. Se a anexação também não tiver custos, por que razão há de Israel preocupar-se com declarações de condenação? Se os israelitas sentirem que as ações do seu Governo têm custos para si, este caminho perigoso pode ser revertido e poderá surgir uma oportunidade credível para acabar com a ocupação.”

A anexação não engolirá as terras por igual. Estima-se que vá criar 43 enclaves, encurralando 106 mil palestinianos

Nos últimos 20 anos, Nour tem observado a erosão do sonho palestiniano de diferentes ângulos. Entre 2006 e 2011 foi correspondente da televisão Al-Jazeera em Ramallah e em 2012-13 foi porta-voz do Governo palestiniano. A experiência permite-lhe sugerir com facilidade medidas que podem travar Israel. “Os países podem rejeitar vistos a colonos, impor restrições e responsabilizar quem lucra com os colonatos, parar a cooperação militar com Israel. E, com ou sem anexação, devem proibir a comercialização de produtos dos colonatos.”

Esta semana, nos Estados Unidos, surgiu um esboço de reação musculada. Quatro congressistas enviaram uma carta ao secretário de Estado, Mike Pompeo, apelando ao corte ou à suspensão da ajuda anual de 3800 milhões de dólares a Israel (3400 milhões de euros).

Se o plano de Netanyahu for avante, será a primeira anexação de território palestiniano desde 1967, quando Israel conquistou e anexou unilateralmente Jerusalém Oriental, a parte árabe da cidade santa para judeus, cristãos e muçulmanos, que israelitas e palestinianos querem para capital. Na prática, Israel estenderá o seu ordenamento jurídico civil a terras que já ocupa e onde agora aplica leis militares.

Enclaves palestinianos

A anexação não engolirá todas as terras visadas por igual. Estima-se que sejam criados 43 enclaves palestinianos, encurralando 106 mil pessoas. “Israel vai tentar forçar as pessoas a saírem desses enclaves”, diz ao Expresso Aviv Tatarski, da ONG israelita Ir Amim. “As consequências serão devastadoras para os próprios e para as populações de Belém ou Ramallah. Dificilmente haverá um palestiniano que não seja afetado pela anexação. O quotidiano dos palestinianos das áreas A e B [sob controlo da Autoridade Palestiniana] depende muito do acesso às áreas envolvidas nesta anexação.” O vale do Jordão, por exemplo, é a zona agrícola fértil da Cisjordânia.

A Ir Amim é uma organização que observa a situação em Jerusalém Oriental, que leva mais de 50 anos em matéria de ocupação. Anexada em 1967, tem vindo a perder população árabe, graças a uma política de construção de casas “só para judeus” e demolição de casas árabes com base em artifícios administrativos. “As políticas de Israel em Jerusalém Oriental tornam claros os riscos da anexação que está a ser planeada”, avisa Tatarsky. “Israel foi claro: não tenciona conceder estatuto de residência aos palestinianos envolvidos na anexação. Sem isso, não terão liberdade de movimentos e ficarão em risco de se sentir desenraizados. Israel poderá usar todos os pretextos burocráticos para empurrar essa população para fora.”

Issa Amro vive numa das principais linhas da frente da ocupação. Hebron — que está fora do plano de anexação — é a única cidade palestiniana com colonos no centro (800, protegidos por 1500 soldados). Ali árabes e judeus vivem em regime de apartheid.

Desde 2016 que este ativista da resistência não-violenta, de 40 anos, está a ser julgado num tribunal militar israelita por, entre outros, “protestos ilegais”. Não tem dúvida que a anexação trará “mais apartheid e segregação”, diz ao Expresso. “Eles vão roubar mais terras e vão forçar a comunidade internacional a reconhecer os colonatos ilegais, ao anunciar que fazem parte de Israel.”

FRONTEIRA MÓVEL

1947 — O Plano de Partilha do mandato britânico da Palestina é aprovado na ONU. Os judeus ficam com 55% e os árabes com 42%. Jerusalém fica sob administração internacional

1967 — Na Guerra dos Seis Dias, Israel conquista a Cisjordânia e Jerusalém Oriental (à Jordânia), a Faixa de Gaza e a Península do Sinai (ao Egito) e os Montes Golã (à Síria). Jerusalém Oriental é anexada a seguir

1979 — Israel devolve a Península do Sinai ao Egito, no âmbito do Tratado de Paz bilateral

1981 — Israel anexa os Montes Golã

1993 — Nos Acordos de Oslo, os palestinianos abdicam da exigência de 78% do território da Palestina em troca de um Estado independente

2005 — Israel retira unilateralmente da Faixa de Gaza, que fica para a Autoridade Palestiniana

Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui