Covid-19 ameaça o país, mas Kim não aceita ajuda

Para os norte-coreanos, a noção de que aceitar ajuda humanitária da Coreia do Sul cria expectativas políticas é inaceitável

A Coreia do Norte admitiu por fim que, como o resto do mundo, também enfrenta a covid-19 e noticiou o primeiro caso suspeito. O anúncio, aliado à previsível disponibilidade da comunidade internacional para ajudar o país, poderia indiciar um desanuviamento na península. Mas Pyongyang tem resistido a aceitar o ramo de oliveira que a Coreia do Sul, sobretudo, lhe tem estendido desde o início da pandemia.

“As relações intercoreanas, sobretudo agora, são altamente políticas. Se estivessem boas, como em 2018 [quando os líderes se encontraram três vezes], e houvesse otimismo no sentido da cooperação económica e das negociações de paz, a Coreia do Norte provavelmente teria aceitado a cooperação na frente covid”, diz ao Expresso Jenny Town, vice-diretora do site de análise norte-coreana “38 North”. “Mas a Coreia do Norte encara os dois últimos anos de negociações com a Coreia do Sul como algo de que regressou de mãos vazias. Os compromissos otimistas nas declarações de Panmunjom e Pyongyang [2018] não foram cumpridos, exceto cedências menores na zona desmilitarizada.”

Ajuda humanitária sem a perspetiva de cooperação substancialtorna a oferta pouco atrativa para os norte-coreanos

O real impacto da pandemia num território tão fechado como a Coreia do Norte é impossível de avaliar, mesmo para pessoas atentas ao que se passa no país, como Rachel Minyoung Lee, ex-analista do Governo dos EUA. “No início do ano, a Coreia do Norte não aceitou a oferta de cooperação da Coreia do Sul em matéria de covid e agora não há provas de que a situação epidemiológica esteja pior do que nessa altura”, diz ao Expresso. “Julgo que a Coreia do Norte [ao fazer o anúncio] sentiu a necessidade de alertar para uma potencial ameaça à saúde pública o mais depressa possível. Isto está em linha com as medidas de quarentena que tem tomado.”

Uma frustração maior

Vizinha da China, de onde partiu a pandemia, a Coreia do Norte começou a impor restrições logo em janeiro. A 22 limitou a circulação de pessoas, mercadorias e embarcações e a 31 suspendeu os voos de e para o país. A 25 de julho, após reunião de urgência da cúpula do partido único, convocada pelo líder Kim Jong-un, a cidade costeira de Kaesong foi colocada em confinamento, após ser identificado um caso suspeito “importado do Sul”: um homem de 24 anos que tinha desertado para a Coreia do Sul em 2017 e reentrara ilegalmente na Coreia do Norte a 19 de julho.

Seul confirmou a fuga do homem, acusado de violação no país, mas não a infeção pelo novo coronavírus. “Penso que a Coreia do Norte pode ter-se referido à Coreia do Sul para desviar a culpa por um surto de covid-19 que possa já ter ocorrido no país ou por quaisquer futuros surtos”, explica Rachel Lee.

Apesar dos apelos a Sul para que as duas Coreias assumam o seu desígnio comum e cooperem em matéria de covid, da perspetiva da Coreia do Norte há uma frustração maior que o inviabiliza. “Embora benéfico para a Coreia do Norte, o simbolismo de aceitar este tipo de cooperação humanitária sem qualquer perspetiva de obtenção da cooperação substancial que o regime quer torna esta oferta pouco atrativa”, analisa Jenny Town.

Os norte-coreanos sabem que, por si só, a Coreia do Sul não tem autoridade para levantar as sanções internacionais. Mas têm expectativas em relação ao desenvolvimento de linhas férreas entre os dois países, à reabertura do complexo industrial de Kaesong, à cooperação militar e a uma declaração de fim da guerra que evolua para um tratado de paz entre as Coreias (oficialmente em guerra desde 1950).

“Seul tem sido incapaz de forçar a cooperação dos Estados Unidos para avançar nalgum ponto desta agenda e não tem mostrado vontade de seguir por conta própria”, diz Town. “Além disso, o Governo [sul-coreano] de Moon Jae-in politiza constantemente este tipo de gestos humanitários, fazendo declarações públicas que os vinculam à esperança do regresso às negociações. Essa noção de que aceitar ajuda da Coreia do Sul obriga ou cria expectativas em relação a certas ações políticas recíprocas é inaceitável para os norte-coreanos.”

(ILUSTRAÇÃO SECURITY MANAGEMENT)

Artigo publicado no “Expresso”, a 1 de agosto de 2020 e no “Expresso Online”, a 31 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui

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