Vaga de demissões no Governo e no Parlamento

Três ministros e pelo menos nove deputados libaneses formalizaram a sua demissão, após a violenta explosão no porto de Beirute. A debandada pode não ficar por aqui, perante a relutância do Governo em demitir-se, como se pede nas manifestações populares em Beirute

A violenta explosão no porto de Beirute e os protestos populares que se lhe seguiram exigindo a demissão do Governo está a ter ondas de choque na política libanesa.

Esta segunda-feira, a ministra da Justiça, Marie Claude Najm, apresentou a sua demissão, justificando a decisão não só com a explosão que devastou grande parte da capital do Líbano como também com os protestos antigovernamentais que saíram às ruas de Beirute.

Num momento imediato à explosão, a ministra tinha defendido que demitir-se era “fugir à responsabilidade”. A sua posição mudou após ter tentado juntar-se aos voluntários que limpavam as ruas de Beirute e ter sido atingida com garrafas de água.

Esta foi a terceira demissão no Governo liderado por Hassan Diab. A primeira porta bateu no domingo, no Ministério da Informação. “Peço desculpas aos libaneses, não correspondemos às vossas expectativas”, disse a titular do cargo, Manal Abdel Samad.

Seguiu-se-lhe o ministro do Ambiente, Damianos Kattar. “Amigos dos meus filhos morreram na explosão. Não posso mais continuar com estas responsabilidades no ministério”, disse.

Segundo a Constituição do Líbano, o Governo pode cair em quatro situações: se o primeiro-ministro morrer ou se se demitir (possibilidade extremamente baixa já que Hassan Diab disse que tenciona propor eleições antecipadas, o que pode demorar meses); se o Governo perder um terço dos seus atuais 20 membros; ou no início de um mandato presidencial (o que não se aplica já que Michel Aoun iniciou funções a 31 de outubro de 2016).

Governo descredibilizado

Também no Parlamento libanês, pelo menos nove deputados já formalizaram a sua demissão, enquanto vários outros afirmaram intenção em fazê-lo.

Fortemente descredibilizado e acusado de ser corrupto, o Governo libanês — que rejeitou uma investigação internacional ao caso — está sob forte pressão para se demitir. Para além dos protestos antigovernamentais em Beirute, há vozes internacionais que condicionam assistência ao Líbano à sua entrega à sociedade civil, e não às entidades políticas.

No domingo, uma vídeoconferência de doadores organizada pelo Presidente francês, Emmanuel Macron, e em que participaram vários líderes internacionais, angariou 300 milhões de dólares (254 milhões de euros) em assistência humanitária, que serão “diretamente entregues à população libanesa”.

(FOTO Bandeira do Líbano projetada na Torre Azadi, em Teerão, em solidariedade com os libaneses MAHDI MARIZAD / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui

Golpe de 2750 toneladas

O porto de Beirute desfez-se num cogumelo atómico. Negligência e descontentamento vão fazer rolar cabeças

Marta demorou quase 24 horas para procurar um hospital. “Aquele que existe mais próximo da minha casa ficou muito destruído pelo impacto da explosão. E apercebi-me de que nenhum dos meus ferimentos era grave. Por isso, não quis contribuir para agravar a situação dos hospitais”, diz ao Expresso. “Estavam a receber tantos feridos…”

Foi para casa de amigos, um deles médico, que lhe prestou os primeiros socorros, e só no dia seguinte, com mais calma, dirigiu-se a um hospital. Levou pontos, mas não sabe quantos, porque perdeu-se à conversa com o médico que a atendeu — oriundo de Gaza, nascido no Kuwait e residente no Líbano. Esta diversidade, muito frequente nos cidadãos do Médio Oriente, contribuiu para que esta portuguesa se apaixonasse pela região, onde trabalha desde 2013, grande parte do tempo para o Comité Internacional da Cruz Vermelha.

Marta Abrantes Mendes, de 41 anos, nascida na Costa da Caparica, foi um dos mais de 5000 feridos e 300 mil desalojados de duas grandes explosões, na terça-feira, com epicentro no porto de Beirute. A existência de 2750 toneladas de nitrato de amónio no local — confiscadas a um cargueiro russo abandonado em Beirute e ali armazenadas de forma negligente desde 2013 — conferiu ao rebentamento um efeito de cogumelo atómico. As explosões, que foram sentidas na ilha de Chipre, a 200 quilómetros de distância, provocaram pelo menos 157 mortos.

Era final de tarde, e Marta tinha acabado de entrar em casa, na zona de Geitawi, perto do porto. “Tem havido muitos cortes de luz, devido à situação económica, e eu tinha passado a tarde a trabalhar, sentada num café com ar condicionado. Ao chegar a casa, vi que havia eletricidade e aproveitei para ligar o ar condicionado. Tinha acabado de fechar as janelas quando ocorreu a explosão.” Foi ferida na cara e nos braços pelos estilhaços de um dos janelões da sala.

Resiliência libanesa

Num país habituado a potentes atentados de cariz político, este rebentamento em Beirute foi superior a qualquer outro. Muitos edifícios perderam a fachada e muitos mais ficaram inabitáveis. Marta mudou-se para casa de uns amigos, já a sua senhoria deu guarida a três casais. Foi assim um pouco por toda a cidade, entre famílias, amigos, vizinhos.

Com Beirute arrasada, a população arregaçou as mangas, pegou em vassouras e começou a arejar as casas e a limpar vidros e sangue das ruas. Na quinta-feira de manhã, após uma volta pela cidade, Marta dizia ao Expresso: “É outra cidade. Há muito mais movimento nas ruas, há mais lojas abertas.”

Aos poucos, a resiliência libanesa vai-se impondo. Nas últimas décadas, o povo enfrentou uma sangrenta guerra civil (1975-1990), a ocupação síria (1976-2005), conflitos entre Israel e o Hezbollah (movimento xiita libanês) e a exposição à guerra da Síria, que levou o Líbano (com uma população de 6,8 milhões) a abrir as portas a 1,5 milhões de refugiados. Sempre o país se soube reerguer.

Num país habituado a potentes atentados de cariz político, este rebentamento em beirute acabou por ser superior a qualquer outro

“O Líbano fica nesse pêndulo entre a tragédia e a magia”, diz ao Expresso Guga Chacra, analista de assuntos internacionais e colunista do jornal “O Globo”. Nascido na cidade brasileira de São Paulo e neto de libaneses, vive com o coração tudo quanto se passa no “país dos cedros”, onde tenta ir todos os anos. “O Líbano já superou outros momentos ruins, mas dessa vez será complicado. Em primeiro pelo colapso económico, igual ao que vimos acontecer na Argentina e na Grécia. Some-se a isso uma crise política e a covid-19. O Líbano não está muito afetado pela pandemia, mas como todo o planeta está, e praticamente todos os países estarão em recessão este ano, isso vai dificultar a ajuda ao país.”

Na véspera das explosões, a deterioração da situação económica e financeira do Líbano servia de justificação aos punhos erguidos e aos gritos de dezenas de pessoas que se juntaram à porta do Ministério da Energia em Beirute. Os protestos visavam os cortes de energia diários, o facto de se terem tornado “normais” e de a degradação dos serviços públicos básicos parecer não ser da responsabilidade de ninguém.

Desde junho que o racionamento apertou ainda mais, agudizado pelas restrições da pandemia, passando a haver apenas duas horas de energia elétrica por dia nalgumas zonas. As famílias recorrem a velas e querosene e os hospitais avisam que o combustível para fazer os geradores de eletricidade funcionar está a esgotar-se.

“Viemos e ficamos”, declarava o manifestante Ali Daher, citado pela agência AP, que prometia com os outros libertar o ministério “da corrupção… e da gestão que mergulhou este país na escuridão”.

Pior do que a crise só a guerra

A maior ameaça desde a guerra civil é a crise. Melhor, o conjunto de crises, que parecia ter atingido o cúmulo com a pandemia do coronavírus.

“Emmanuel Macron a visitar zonas onde nenhum líder libanês ousaria ir”, comentava Maha Yahya na sua conta de Twitter a visita que o Presidente francês fez a Beirute na quinta-feira. A economista, diretora do Carnegie Middle East Center, destacava no Twitter o facto de as pessoas abraçarem Macron repetindo em simultâneo o slogan “O povo quer a queda do regime!”.

O Líbano é um Estado altamente endividado e com uma inflação galopante. O poder de compra dos cidadãos reduz-se de dia para dia, o desemprego e a pobreza aumentam. Em 23 de julho, Yahya publicou um artigo no Carnegie em que expunha o colapso dos pilares de sustentação do país. Um dos que desaparece velozmente é a classe média, que costumava ser historicamente uma das mais abastadas, profissionais e com mais recursos da região.

Denunciando a responsabilidade dos líderes políticos pela desvalorização (80% em oito meses) da libra libanesa, pela fuga de jovens para o estrangeiro e por uma inflação que atingiu 90% no mês de junho, a economista congratulava-se, na quinta-feira, pelo apoio de Macron, que prometeu regressar com uma proposta de “um novo pacto político” ao Governo.

A zanga é transversal. Uma futura reconciliação nacional terá de passar por medidas que o povo reconheça como capazes de inverter o caminho que se tornou aceitável. E o diagnóstico parece simples: “Isto não foi um acidente, isto não foi negligência. Isto foi um ataque dos rufias em cargos públicos contra o seu próprio povo”, lia-se na terça-feira num tweet de Jad Chaaban, professor de Economia na Universidade Americana de Beirute.

Na quinta-feira, 16 funcionários do porto foram colocados em prisão domiciliária. Ao mesmo tempo, o Governo deu quatro dias a um comité de investigação para apurar responsabilidades. As autoridades apressam-se a arranjar culpados, mas nas ruas a confiança está tão arrasada quanto a própria Beirute.

Texto escrito com Cristina Peres.

(FOTO Destruição provocada pela forte explosão, no porto de Beirute, a 4 de agosto de 2020 BERNARD KHALIL / FLICKR DA PROTEÇÃO CIVIL E AJUDA HUMANITÁRIA DA UE)

Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui

Que acontece a quem foge da Coreia do Norte, arrepende-se e decide voltar para casa?

Não são muitos, mas há quem decida regressar depois de ter arriscado a vida para fugir do país mais fechado do mundo. Para muitos desertores norte-coreanos, a vida no Sul rico e democrático não correspondeu às expectativas. De volta à terra natal, onde enfrentam o rótulo de “traidores”, tanto os esperam punições exemplares como papéis de destaque na propaganda do regime

Num país tantas vezes descrito como autoritário, repressivo e impiedoso com quem hesita na lealdade ao regime, não se estranha que haja cidadãos que, em contextos de grande desespero, arrisquem a vida para fugir da Coreia do Norte — de onde só se sai com autorização superior. Já é mais difícil compreender que depois de concretizarem a fuga com êxito queiram regressar ao país de onde desertaram e onde têm o rótulo de “traidores”.

Segundo o Ministério da Unificação da Coreia do Sul, nos últimos cinco anos, pelo menos 12 desertores norte-coreanos deram-se mal no próspero e democrático Sul e optaram por regressar ao último reduto do comunismo à face da Terra: três em 2015, quatro em 2016, quatro em 2017 e um a 19 de julho passado. O número pode, na realidade, ser muito superior já que Seul não sabe do paradeiro de outros 891 desertores norte-coreanos.

O caso mais recente foi especialmente badalado. Segundo as autoridades de Pyongyang, um homem de 24 anos — que desertara para a Coreia do Sul em 2017, a nado, numa odisseia ao longo da fronteira mais fortificada e vigiada do mundo que lhe valeu sete horas e meia dentro de água —, é suspeito de ter reentrado na Coreia do Norte infetado com o novo coronavírus, condição que a Coreia do Sul não confirmou. Se até então, o regime norte-coreano não tinha admitido a existência de casos positivos de covid-19 no país, este “caso importado” facilitou a narrativa de Pyongyang sobre o assunto.

“As motivações [para o regresso de desertores norte-coreanos ao seu país] variam, mas no geral isso deve-se ao facto de as suas vidas na Coreia do Sul passarem por momentos difíceis”, explica ao Expresso Go Myong-Hyun, do Instituto Asan de Estudos Políticos, de Seul. “Neste caso recente, o desertor estava a ser acusado de agressão sexual e corria o risco de ser condenado a uma pena de prisão. Isso incentivou-o a regressar clandestinamente ao Norte.”

Há também quem queira regressar à Coreia do Norte porque ficou sem dinheiro, por vezes perdido em esquemas e golpes, ou também porque tem saudades da família. Lee Kwang-baek, diretor do jornal digital “Daily NK”, exemplifica ao Expresso ambas as situações.

“Lee Hyuk-chul, que foi para a Coreia do Sul em 2013, entrou em conflito com o seu irmão mais velho [também desertor] e tornou-se um vagabundo, antes de roubar um barco de pesca e regressar à Coreia do Norte. Já Chae Sung-chan, que entrou na Coreia do Sul em 1996, ficou com saudades da mulher e da filha e voltou para a Coreia do Norte em 2005. Entregou todo o dinheiro que tinha às autoridades norte-coreanas para evitar ser punido e pensa-se que conseguiu voltar a viver com a família.”

Outros ainda optam por voltar depois de verem a família ameaçada pelas autoridades norte-coreanas ou porque não conseguiram adaptar-se à realidade do Sul. “Frequentemente, os desertores da Coreia do Norte, em especial homens mais velhos que tiveram posições de algum poder na Coreia do Norte, tiveram dificuldades de adaptação à vida na Coreia do Sul”, diz ao Expresso Jenny Town, vice-diretora do “38 North”, sítio de análise à realidade norte-coreana.

“Aqueles que chegam ainda crianças conseguem adaptar-se mais facilmente, mas quem chega em idade pós-escolar costuma ter grandes dificuldades para se estabelecer num ambiente drasticamente diferente. Além disso, na sociedade sul-coreana ainda existe um pouco de discriminação contra os desertores norte-coreanos.”

As estatísticas do Ministério da Unificação sul-coreano indicam que desde 1998 atravessaram ilegalmente a fronteira com a Coreia do Sul 33.670 norte-coreanos — 135 dos quais no primeiro semestre deste ano. Mais de metade (19.228) tinham entre 20 e 39 anos quando desertaram e 5095 eram crianças ou jovens em idade escolar. Quase metade do total de desertores (15.140) eram “desempregados” e 13.342 “trabalhadores”.

Talvez o aspeto mais surpreendente do fenómeno das deserções norte-coreanas seja o facto de 72,1% do total de fugitivos (24.266) serem do sexo feminino. Desde 2002 que, anualmente, o número de desertoras é superior ao de desertores.

“A principal razão prende-se com o facto de, na sociedade norte-coreana, os homens terem mais possibilidades de arranjar empregos nos sectores formais — militares e Governo”, explica Jenny Town. Já às mulheres é dada liberdade para desenvolverem atividades económicas. As autoridades permitem que elas vendam nos mercados locais (jangmadang), onde os homens não estão autorizados a fazê-lo.

“As mulheres costumam trabalhar em fábricas ou nos sectores informais, em mercados e como empregadas domésticas, o que facilita a sua mobilidade”, continua Jenny Town. “Isso torna-as também mais bem preparadas para se adaptarem às economias de mercado assim que conseguem sair do país.”

Para as norte-coreanas que se predispõem a desertar para a China — o outro país, para além da Coreia do Sul, com quem a Coreia do Norte tem fronteira terrestre —, o caminho está muitas vezes armadilhado. “Muitas desertoras são vítimas de tráfico de seres humanos por parte de chineses e norte-coreanos”, afirma Go Myong-Hyun.

“Inicialmente, são recrutadas na Coreia do Norte com falsas promessas de emprego na China, mas assim que são traficadas para fora da Coreia do Norte são vendidas a homens chineses à procura de noivas. Algumas acabam por escapar das mãos dos seus maridos sequestradores para a Coreia do Sul.”

Aos desertores arrependidos o regresso à Coreia do Norte reserva destino incerto. “Vai depender das circunstâncias”, explica Jenny Town. “Os desertores capturados enfrentam punições severas, como longas sentenças em campos de prisioneiros. Porém, nos casos em que os desertores regressam voluntariamente, o castigo pode ser menos severo em virtude do potencial valor da situação para a propaganda.”

Em 2017, a desertora Lim Ji-hyun voltou à Coreia do Norte após ter vivido três anos na Coreia do Sul. Se no Sul se tornou um rosto conhecido na televisão por aquilo que representava, regressada ao Norte surgiu num vídeo em que falava na “falsa ilusão” que fora, para si, pensar que podia ganhar muito dinheiro no Sul.

(IMAGEM Mural de propaganda norte-coreana MARK FAHEY / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui

Covid-19 ameaça o país, mas Kim não aceita ajuda

Para os norte-coreanos, a noção de que aceitar ajuda humanitária da Coreia do Sul cria expectativas políticas é inaceitável

A Coreia do Norte admitiu por fim que, como o resto do mundo, também enfrenta a covid-19 e noticiou o primeiro caso suspeito. O anúncio, aliado à previsível disponibilidade da comunidade internacional para ajudar o país, poderia indiciar um desanuviamento na península. Mas Pyongyang tem resistido a aceitar o ramo de oliveira que a Coreia do Sul, sobretudo, lhe tem estendido desde o início da pandemia.

“As relações intercoreanas, sobretudo agora, são altamente políticas. Se estivessem boas, como em 2018 [quando os líderes se encontraram três vezes], e houvesse otimismo no sentido da cooperação económica e das negociações de paz, a Coreia do Norte provavelmente teria aceitado a cooperação na frente covid”, diz ao Expresso Jenny Town, vice-diretora do site de análise norte-coreana “38 North”. “Mas a Coreia do Norte encara os dois últimos anos de negociações com a Coreia do Sul como algo de que regressou de mãos vazias. Os compromissos otimistas nas declarações de Panmunjom e Pyongyang [2018] não foram cumpridos, exceto cedências menores na zona desmilitarizada.”

Ajuda humanitária sem a perspetiva de cooperação substancialtorna a oferta pouco atrativa para os norte-coreanos

O real impacto da pandemia num território tão fechado como a Coreia do Norte é impossível de avaliar, mesmo para pessoas atentas ao que se passa no país, como Rachel Minyoung Lee, ex-analista do Governo dos EUA. “No início do ano, a Coreia do Norte não aceitou a oferta de cooperação da Coreia do Sul em matéria de covid e agora não há provas de que a situação epidemiológica esteja pior do que nessa altura”, diz ao Expresso. “Julgo que a Coreia do Norte [ao fazer o anúncio] sentiu a necessidade de alertar para uma potencial ameaça à saúde pública o mais depressa possível. Isto está em linha com as medidas de quarentena que tem tomado.”

Uma frustração maior

Vizinha da China, de onde partiu a pandemia, a Coreia do Norte começou a impor restrições logo em janeiro. A 22 limitou a circulação de pessoas, mercadorias e embarcações e a 31 suspendeu os voos de e para o país. A 25 de julho, após reunião de urgência da cúpula do partido único, convocada pelo líder Kim Jong-un, a cidade costeira de Kaesong foi colocada em confinamento, após ser identificado um caso suspeito “importado do Sul”: um homem de 24 anos que tinha desertado para a Coreia do Sul em 2017 e reentrara ilegalmente na Coreia do Norte a 19 de julho.

Seul confirmou a fuga do homem, acusado de violação no país, mas não a infeção pelo novo coronavírus. “Penso que a Coreia do Norte pode ter-se referido à Coreia do Sul para desviar a culpa por um surto de covid-19 que possa já ter ocorrido no país ou por quaisquer futuros surtos”, explica Rachel Lee.

Apesar dos apelos a Sul para que as duas Coreias assumam o seu desígnio comum e cooperem em matéria de covid, da perspetiva da Coreia do Norte há uma frustração maior que o inviabiliza. “Embora benéfico para a Coreia do Norte, o simbolismo de aceitar este tipo de cooperação humanitária sem qualquer perspetiva de obtenção da cooperação substancial que o regime quer torna esta oferta pouco atrativa”, analisa Jenny Town.

Os norte-coreanos sabem que, por si só, a Coreia do Sul não tem autoridade para levantar as sanções internacionais. Mas têm expectativas em relação ao desenvolvimento de linhas férreas entre os dois países, à reabertura do complexo industrial de Kaesong, à cooperação militar e a uma declaração de fim da guerra que evolua para um tratado de paz entre as Coreias (oficialmente em guerra desde 1950).

“Seul tem sido incapaz de forçar a cooperação dos Estados Unidos para avançar nalgum ponto desta agenda e não tem mostrado vontade de seguir por conta própria”, diz Town. “Além disso, o Governo [sul-coreano] de Moon Jae-in politiza constantemente este tipo de gestos humanitários, fazendo declarações públicas que os vinculam à esperança do regresso às negociações. Essa noção de que aceitar ajuda da Coreia do Sul obriga ou cria expectativas em relação a certas ações políticas recíprocas é inaceitável para os norte-coreanos.”

(ILUSTRAÇÃO SECURITY MANAGEMENT)

Artigo publicado no “Expresso”, a 1 de agosto de 2020 e no “Expresso Online”, a 31 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui