No Líbano, o sectarismo político também entra nos campos de futebol

Num país pequeno e tão fragmentado em termos religiosos como é o Líbano, o futebol não escapa à rivalidade entre fações. Nos últimos anos, o clube dominante é apoiado pela comunidade xiita e pelo Hezbollah

Futebol de rua em Beirute por entre a destruição causada pelas explosões no porto, que devastaram parte da capital do Líbano, a 4 de agosto AFP / GETTY IMAGES

Num dos raros textos que dedicou ao desporto, George Orwell não foi brando nas palavras. “O desporto à séria não tem nada que ver com jogo limpo. Está ligado ao ódio, ao ciúme, à arrogância, ao desrespeito por todas as regras e ao prazer sádico de testemunhar a violência: por outras palavras, é a guerra sem o tiroteio”, escreveu o escritor inglês num artigo intitulado “O espírito desportivo”.

Publicado no semanário “Tribune” em dezembro de 1945, o texto foi escrito na sequência de uma digressão a Inglaterra da equipa de futebol do Dínamo de Moscovo. A Segunda Guerra Mundial terminara, havia feridas abertas e amizades por consolidar. Dentro das quatro linhas, o périplo saldou-se por ‘um passeio’ dos soviéticos, que saíram invictos da ‘pátria do futebol’. “Se uma visita como esta teve algum efeito nas relações anglo-soviéticas, só pode ter sido torná-las um pouco piores do que já eram”, concluiu Orwell.

Num artigo de 2011, Danyel Reiche, estudioso do desporto em contexto político, recuperou a tese de Orwell para descrever o panorama desportivo libanês. “Os clubes desportivos profissionais desempenham um papel único no sistema sectário libanês. Não há outro sector com tanta competição, não só dentro das fações, como acontece na política, mas também entre fações. Não há outro campo com tanto confronto direto entre os diferentes grupos sectários e políticos como o desporto. No Líbano, o desporto pode ser descrito usando uma citação de George Orwell: é ‘a guerra sem o tiroteio’.”

A tese central deste professor da Universidade Americana de Beirute é a de que no Líbano o desporto é usado para dividir (ainda mais) a sociedade. O Expresso perguntou-lhe se no atual contexto de crise generalizada, em que o sectarismo é apontado como estando na origem da fragilidade do país, o desporto — e o futebol em particular — pode contribuir para a unidade nacional.

“A situação no Líbano é dramática: a crise económica, a covid-19 e a recente explosão [no porto de Beirute, a 4 de agosto]. Acredito fortemente que o futebol (e também o basquetebol, que é muito popular no país) tem potencial para contribuir para a união. Se o Líbano se qualificar pela primeira vez para um Campeonato do Mundo, em 2022, isso pode dar alguma esperança às pessoas nestes tempos difíceis”, diz o coautor do livro “Sport, Politics, and Society in the Middle East”, de 2019.

Orgulho na seleção

“A seleção nacional é fonte de orgulho para os libaneses e até um sinal do potencial para uma comunidade libanesa unida”, acrescenta ao Expresso Yehuda Blanga, professor na Universidade Bar-Ilan (Israel).

Em novembro passado, em plena Revolução de Outubro, como os libaneses chamam aos grandes protestos antigovernamentais só interrompidos pela pandemia, a seleção libanesa recebeu a Coreia do Sul, de Paulo Bento (dia 14), e a Coreia do Norte (19) em jogos à porta fechada por receio de contágio dos protestos às bancadas do Estádio Camille Chamoun.

Ao estilo de uma trégua, a Praça dos Mártires, principal centro das manifestações, fez uma pausa nas reivindicações para assistir às partidas.

Expectativa e sofrimento na Praça dos Mártires, em Beirute, durante o jogo de futebol entre as seleções do Líbano e da Coreia do Norte, a 19 de novembro ANDRES MARTINEZ CASARES / REUTERS

Com 18 fações religiosas oficialmente reconhecidas, o Líbano é o protótipo de um Estado confessional, onde o poder político é distribuído de forma proporcional pelas várias comunidades consoante o seu peso demográfico. “A maioria dos clubes de futebol está associada a diferentes grupos sectários. Há clubes sunitas, xiitas, drusos e cristãos. Poucos são neutros, só encontrei dois”, diz Yehuda Blanga.

O principal campeonato é disputado por 12 equipas. Todas já sentiram o sabor de ser campeão mas, como em Portugal, há “três grandes” que se destacam. O Ansar, o mais vitorioso (13 campeonatos) e dominador entre o fim da guerra civil e o início do século XXI, é popular entre os sunitas.

O Nejmeh é o clube com mais adeptos, entre sunitas, xiitas, drusos e arménios. Fundado em 1945, foi o primeiro clube não-cristão. Em 2003, foi comprado pela família Hariri (muçulmana sunita) que nos últimos 20 anos já contribuiu com dois primeiros-ministros: Saad, que se demitiu em janeiro na sequência das manifestações, e o seu pai, Rafiq, assassinado em 2005, que dá nome ao estádio do Nejmeh.

Grande rival do Nejmeh, o Ahed é o campeão em título. Preferido dos xiitas, foi fundado pelo movimento islamita Hezbollah no início deste século. É o clube dominador da última década. Em 2019, tornou-se a primeira equipa libanesa a vencer uma competição internacional, a Taça da Confederação Asiática de Futebol.

A ascensão do Ahed tirou do pódio o Homenetmen, fundado por arménios, comunidade que dominou o futebol libanês nas décadas de 1940 a 1960.

Euforia entre jogadores e “staff” da equipa libanesa do Ahed, após a conquista da Taça da Confederação Asiática de Futebol, a 4 de novembro passado, em Kuala Lumpur. O amarelo e verde dos equipamentos é o mesmo da bandeira do Hezbollah MOHD RASFAN / AFP / GETTY IMAGES

Falta de profissionalismo

“O problema não é tanto uma subordinação sectária, como é política. A maioria das equipas está relacionada com partidos políticos por vários motivos”, explica ao Expresso o jornalista desportivo libanês Rawad Mezher. “Uma das razões mais importantes prende-se com a falta de profissionalismo ao nível da gestão desportiva, o que se traduz num problema para garantir orçamentos.”

Num país com sensivelmente o dobro do tamanho do Algarve e cerca de quatro milhões de habitantes (excetuando os refugiados), as receitas provenientes da bilheteira, merchandising, publicidade e direitos televisivos são insuficientes para assegurar o concurso de jogadores talentosos. A isto acresce a instabilidade que, de tempos a tempos, paralisa o país. Entre 2006 e 2010, a presença de adeptos nos estádios foi interdita após episódios de violência sectária entre apoiantes de vários clubes dentro e fora dos estádios.

Este panorama torna os clubes permeáveis a quem está disposto a injetar dinheiro em nome de interesses próprios e na expectativa de total lealdade. Não raras vezes, as cores do clube são as de partidos, nos estádios há grandes fotografias de políticos e os seus nomes são invocados nos cânticos das claques. Nos seus primeiros anos de vida, o patrocinador das camisolas do Ahed era a Al-Manar, televisão por satélite do Hezbollah.

A pandemia de covid-19 não para o futebol de rua, em Beirute, junto ao Estádio Camille Chamoun. E as máscaras não atrapalham GETTY IMAGES

Estas especificidades tornam o mercado libanês pouco atrativo para os investidores estrangeiros. Danyel Reiche recorda que, há uns anos, a Coca-Cola demonstrou interesse em financiar um clube libanês. Para evitar associações sectárias e ser acusada de favoritismo, acabou por patrocinar… três equipas: uma sunita, outra xiita e uma terceira cristã.

A 6 de abril de 1975, quando o Líbano estava prestes a implodir numa guerra civil que duraria 15 anos, a chegada a Beirute de Pelé parou o país e apartou as tensões. “Pelé veio jogar pelo Nejmeh um amigável com uma equipa de estrelas do campeonato libanês. O estádio encheu-se com 40 mil pessoas”, diz Yehuda Blanga.

“Os anos de 1974 e 1975 são considerados os mais importantes do futebol libanês, por dois acontecimentos importantes: a vitória do Nejmah sobre o campeão soviético, o Ararat Yerevan, e a visita da estrela brasileira.” Há mesmo quem defenda que a presença de Pelé no Líbano adiou o início da guerra civil, que começaria uma semana depois.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *