Uma portuguesa que ficou ferida e desalojada descreve ao Expresso como recupera a capital libanesa. “Eu e muita gente estamos um bocado sem poiso, dormimos numa casa, depois vamos a outra, andamos sempre de um lado para o outro porque ainda há muito por reconstruir”
Um mês após a grande explosão no porto de Beirute, a capital do Líbano está transformada num enorme estaleiro. Ao som dos vidros partidos, característico dos dias que se seguiram ao rebentamento, que não deixou janela intacta na cidade, sucede-se o barulho das máquinas de construção.
“Neste momento há muito barulho na cidade, por causa das obras”, descreve ao Expresso Marta Abrantes Mendes, portuguesa de 41 anos que ficou ferida na explosão. “Quanto mais perto do porto, mais estruturais são as obras. Na zona onde estou agora, os estragos são sobretudo ao nível de portas e janelas.”
A casa onde Marta vivia, no bairro de Ashrafiyah, ficou inabitável. Nos dias seguintes à explosão, com ferimentos no corpo, foi acolhida por um casal amigo, na zona de Hamra. Há quase três semanas, mudou-se para casa de outra amiga, que também sofreu estragos.
“A minha amiga decidiu viajar. Estou em regime de house-sitting, a abrir a porta, a acompanhar as obras, a trazer flores, a dar um jeitinho à casa”, diz. “Eu e muita gente estamos sem poiso, dormimos numa casa, depois vamos a outra, andamos sempre de um lado para o outro porque ainda há muito por reconstruir.” Estima-se que 300 mil pessoas tenham ficado desalojadas por causa da explosão de 4 de agosto.
Um grande nível de destruição
Com a vida de muitos habitantes virada do avesso, aos poucos, Beirute reergue-se. “Com muita dor”, acrescenta Marta. “Nos dias seguintes à explosão, houve uma mobilização enorme da sociedade civil, muitos voluntários, as pessoas uniram-se muito, sobretudo jovens, que se dirigiram às zonas mais afetadas e ajudaram na recolha do lixo, dos detritos.”
“Isso é fantástico”, continua, “mas, por outro lado, expôs as pessoas a um grande nível de destruição. Estes jovens já nasceram depois da guerra civil, ou têm pouca memória dela. Em muitas destas zonas havia restos mortais. Foi uma constatação muito dura da realidade.”
A 24 de agosto, no Twitter, a jornalista Rania Abouzeid, que vive em Beirute, denunciou um entrave à tarefa da reconstrução e, implicitamente, do funcionamento do país. “A arquidiocese maronita de Beirute está a substituir janelas de graça — mas apenas para maronitas em áreas afetadas pela explosão, e outros grupos religiosos estão a fazer a mesma coisa. E então as pessoas que simplesmente se identificam como libaneses e rejeitam rótulos sectários? Temos de pagar. O Líbano não é um país para laicos.”
Marta diz não ter reparado neste tipo de ajuda sectária. “Para ser honesta não. É óbvio que vai sempre haver a história da ajuda que é canalizada por um cristão para outro cristão. Mas acho que houve muitos mais exemplos de uma solidariedade que aconteceu com base no sofrimento da pessoa e não com base religiosa. Vi de tudo, estrangeiros, emigrantes, refugiados, toda a gente a ajudar. Até as senhoras da Etiópia…”
As mulheres a que se refere são centenas de etíopes que emigraram para o Líbano para trabalharem como empregadas domésticas e que, neste contexto de crise e pandemia, foram abandonadas pelos seus empregadores e ficaram sem meios para regressarem ao seu país de origem. Um drama paralelo a muitos que o Líbano enfrenta.
Esta sexta-feira, num artigo de balanço sobre um mês após a tragédia, o jornal libanês “L’Orient-Le Jour” escreve: “Um mês após o cataclismo, reina o caos na gestão da ajuda. Muitos moradores e comerciantes da capital estão a lutar para fazerem reparações e lamentam a ausência do Estado no local”.
Fortemente pressionadas, pelas ruas e por parceiros internacionais para realizarem reformas e se credibilizarem, dentro e fora de portas, as autoridades libanesas nomearam, segunda-feira, um novo primeiro-ministro. Mustapha Adib, de 48 anos, era até agora embaixador libanês na Alemanha. No próprio dia em que assumiu o cargo, visitou a zona de Gemmayzeh, fortemente devastada pela explosão.
“A situação política é o assunto mais explosivo — enfim, a comparação é má, mas é verdade —, é o mais preocupante”, diz a portuguesa, natural da Costa de Caparica. Licenciada em Relações Internacionais, já trabalhou durante anos para o Comité Internacional da Cruz Vermelha.
“Neste momento, preocupam-me muito mais as tensões internas e a falta de gestão delas. A situação pode derrapar muito rapidamente, não diria para uma guerra civil, mas uma guerra civil também não acontece de um momento para o outro, um fator leva ao outro e assim sucessivamente. Já vivi na Síria, onde toda a gente viu isso acontecer.” No rosto dos locais, a portuguesa diz sentir nervosismo.
Que alternativa ao sistema confessional?
O sistema confessional que tem governado o Líbano desde 1943, assente numa divisão do poder por confissões religiosas segundo um critério de representatividade demográfica, está sob fogo. “Qual é a alternativa?”, questiona-se Marta. “Não há resposta para esta questão. As pessoas querem um fim, mas a alternativa não foi ainda articulada. Faltam debates e discussões para averiguar que outras possibilidades existem.”
Marta foi um dos quase 6000 feridos das explosões — morreram pelo menos 191 pessoas. “Os meus ferimentos estão praticamente todos sarados, já não preciso de ir ao hospital. Fui sempre muito bem atendida, acho que houve uma espécie de pudor em relação aos feridos estrangeiros, foram extra delicados”, recorda. “Fico com algumas cicatrizes, mas isso é o menos.”
(FOTO Destruição provocada pela explosão no porto de Beirute MEHDI SHOJAEIAN / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui